Memórias e entendimentos

Temos música morando na memória, e essa música ganha vida quando nós a tocamos

Sexta-feira passada, tive o privilégio de conduzir um concerto à frente da Orquestra Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo. Foi a primeira vez que conduzi a público desde março de 2020. A vida é completamente outra de lá pra cá: medir a temperatura ao chegar no ensaio, estar de máscara, se preocupar com o pessoal que precisa de transporte público, entre outros pensamentos e práticas, tinham um quê de normal, mas ao mesmo tempo de primeira vez.

Voltar ao palco foi muito caloroso. Mesmo ainda distantes, é muito bom sentir o brilho nos olhos da orquestra, o suor escorrendo (a luz do teatro é quente), a música soando ao vivo. O concerto definitivamente foi muito marcante e importante, mas o que mais me marcou foi o que aconteceu entre a passagem de som e o início do concerto.

Durante a passagem tocamos “Meninos na Praça da Liberdade”, que é o segundo movimento da peça Petrópolis de Minha Infância, de César Guerra-Peixe. Neste movimento, o compositor brinca com melodias de cantigas de roda, entre elas a mais evidenciada é “Samba Lelê”. A harmonia é completamente diferente, “Samba Lelê” soa meio torta e desengonçada harmonicamente, mas está lá para reconhecermos, identificarmos.

Foto: Roberta Mendes Borges/Theatro São Pedro

Finalizei a passagem de som e fui ao banheiro. Quando estava lavando as mãos entrou uma senhora, funcionária da manutenção do Theatro São Pedro – eu a cumprimentei. Ela, ao me cumprimentar de volta, acrescentou: “Maestrina, hoje eu fiquei feliz, eu até entendi uma das músicas que vocês tocaram”.  Abri um sorriso sob a máscara, então perguntei: “Foi mesmo?! Qual música a senhora entendeu?”. Ela, um pouco sem jeito, falou cantarolando: “Aquela do e samba lelê tá doente”. Ali eu ganhei o ano.

Eu não faço ideia de quantas passagens de som essa senhora já ouviu. Muito menos se ela já sentou na plateia do teatro onde trabalha e assistiu a um concerto, ópera ou show. Mas ali ela me contou que tem uma música morando na memória dela, e que essa música ganhou vida quando nós a tocamos. Isso a aproximou de mim, da música, da orquestra, do teatro. Assim a orquestra se fez mais real, concreta, dinâmica e pode ser uma porta de entrada para que ela “entenda” mais músicas, ouça atenciosamente o que soa ao seu redor, e, se ela quiser, esteja cada vez mais perto da música. Talvez isso não aconteça, eu posso estar sendo romântica aqui. Mas fiquei marcada pelo dia em que uma senhora, trabalhadora, essencial para que eu possa fazer a arte que faço, entendeu a música que conduzi.

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