Por mais museus de ciências

Quando se fala em museu, pensamos imediatamente em peças únicas, que não existam mais em nenhum outro lugar, o que dá uma sensação de exclusividade ao acervo

Em recente artigo, o professor-doutor Sérgio Luiz Gadini (candidato a prefeito de Ponta Grossa pelo PSol), do Departamento de Jornalismo da UEPG, cobra de vários gestores um destino para o Museu de Vila Velha. O primeiro esclarecimento a ser feito é que o artigo, na avaliação de técnicos e cientistas que acompanharam todo o imbróglio, está eivado de desconhecimento, gerando a falsa ideia de que há um descaso generalizado em relação ao acervo do museu. Não há.   

O artigo nos obriga a uma análise do contexto para que todos possam ser informados sobre assunto burocraticamente complexo e marcado por polêmicas.

Histórico

Comecemos pela origem do projeto.

O renomado pesquisador curitibano João José Bigarella (geógrafo, geólogo, engenheiro químico e professor da Universidade Federal do Paraná) combina com o então governador Roberto Requião sobre a construção de um Museu no Parque Estadual de Vila Velha, que estava sendo revitalizado. Para isso, é constituída de forma legítima uma entidade – a FUNABI: Fundação João José Bigarella para Estudos de Conservação da Natureza. O primeiro limitador é que este museu não ficou sob a guarda de nenhuma universidade, vinculando-se a uma fundação independente que começou a captar recursos de maneira autônoma. Por meio do PRONAC 08-0802, ficamos sabendo que a FUNABI teve aprovada a autorização para levantar R$ 3.953.338,10 para “Dotar o Estado do Paraná de um Museu de Geologia e Paleontologia, inserido em um Parque Estadual, objetivando divulgar essas áreas da ciência, bem como a evolução da história do Planeta Terra”. Conseguiu captar 800 mil reais deste valor e o relatório na Secretaria de Fomento de Incentivo à Cultura permanece pendente – ver Portaria n. 214, de 3 de abril de 2017. Neste documento, a FUNABI é chamada a devolver ao Fundo Nacional de Cultura o valor de R$ 1.073.776,88, por não ter cumprido as exigências da proposta. Até aí, não há a participação de nenhuma universidade.

O prédio no Parque Vila Velha acabou edificado sem a previsão de equipes para conservação e monitoria e teve móveis sob medida fixados e o acervo organizado, mas o museu nunca se efetivou. O que era para ser um projeto exemplar se tornou um problema. Recentemente, o Parque Vila Velha passou, por processo licitatório de concessão, a uma empresa privada, sem qualquer envolvimento com os problemas do Museu de Geologia e Paleontologia, que vinha sendo instalado na área em questão.

A doação

A solução encontrada pela Secretaria de Fomento de Incentivo à Cultura e pela FUNABI foi “doar” o acervo a uma universidade. O termo de interesse foi feito com a Unicentro, que receberia as coleções de rochas e minerais (geologia), conchas (malacologia), insetos (entomologia), fósseis (paleontologia) e animais taxidermizados. Além deste patrimônio científico, seriam transferidos à universidade estantes e armários para guarda de acervo, mobiliários para auditório, para escritório e expográfico e equipamentos de informática. Este conjunto iria para o Parque Natural Municipal das Araucárias, administrado pela Unicentro, em Guarapuava. Em tese, a solução tinha viabilidade.

Estas negociações são posteriores à portaria citada e visavam sanar os problemas de relatórios junto ao Tribunal de Contas da União. O reitor da Unicentro à época sinalizou positivamente quanto à doação em 31 de janeiro de 2018, condicionando a não responsabilização da universidade por atos pregressos. E se dá início ao processo de discussão sobre a transferência.

O problema é que a universidade não pode receber todos os bens e ter a guarda deles, até porque alguns são imateriais e outros não são transferíveis. Registre-se o gasto dos projetos do museu, por exemplo, da ordem de 180 mil reais. Assim, a instituição não pode responsabilizar-se, perante o TCU, pelo passivo de um museu que se encontra em desmobilização. Nenhuma universidade pública poderá assumir ônus sobre gastos com itens que não irão para ela – há aí um impasse legal.

Não se trata, portanto, de má vontade de administradores – do passado ou do presente –, mas de falta de segurança jurídica sobre questões que podem comprometer o gestor. Resumindo: ao acervo se propõe um destino nobre, mas é preciso suspender a cláusula da responsabilidade integral quanto a eventuais deficiências de relatório ao extinto Ministério de Cultura, para proteger quem vai receber o espólio.

O que é um museu de ciências?

Quando se fala em museu, pensamos imediatamente em peças únicas, que não existam mais em nenhum outro lugar, o que dá uma sensação de exclusividade ao acervo. De fato, o conjunto heroicamente colecionado pelo professor Bigarella é de grande relevância e amostras de origem natural sempre são únicas – não se repetindo como em produtos industrializados, mas o diferencial neste projeto era a proposta de uma museografia pedagógica e não a excepcionalidade das peças.

Podemos nos fazer uma pergunta: um acervo como este pertenceria mesmo a uma pessoa-biografia específica? No seu ensaio clássico “O que é um autor?”, o filósofo Michel Foucault questiona a individualização por meio da afirmação da força do nome, principalmente na literatura. E lembra que as ciências operaram no sentido inverso, minimizando a função autor e valorizando o pertencimento a um discurso contínuo. O acervo de posse da FUNABI foi colecionado sob a coordenação do professor Bigarella, com amostras e com a contribuição intelectual de vários pesquisadores paranaenses, inclusive da UEPG, em boa medida replicando outros acervos existentes.

Isso não lhe tira o valor, mas ele só funcionará dentro de um projeto conceitualmente apropriado, de pesquisa e extensão, que possa usar o material como roteiros sobre a ciência. Ou seja, só existe no discurso contínuo de coletivos que explorarão, aumentarão ou reordenarão este material.

Não se pode colocar o nome do professor Bigarella, nem de qualquer indivíduo, acima da função colaborativa própria dos discursos da ciência. Não há também um valor de insubstituibilidade do acervo, o que daria outra dimensão ao problema. Seu valor estaria no conjunto instalado dentro de uma narrativa planejada e em local apropriado.

E a parte edificada do museu não é totalmente transferida a nenhuma outra instituição. E que se frise: o acervo da FUNABI deve ser compartilhado tanto aos pesquisadores não nomeados quanto a quem lhe doou o sobrenome. O acervo pertence à comunidade paranaense, conforme proposição à época.

Museu de Ciências Naturais da UEPG

Desde 2018, temos trabalhado com os pesquisadores da UEPG para integrar coleções e abrir um museu muito similar ao que está em questão.

Pesquisadores especialistas da UEPG, como Antonio Liccardo, Élvio Pinto Bosetti e Gilson Burigo Guimarães acompanharam a ideia do museu de Vila Velha em seu início e, hoje, junto a vários outros pesquisadores, buscam organizar os acervos existentes da instituição, criar roteiros de visitação e estabelecer reservas técnicas – temos uma das maiores coleções de fósseis do Brasil, por exemplo, com centenas de publicações associadas e com a curadoria apropriada de um paleontólogo. Em breve, este museu será aberto à visitação pública e integrará projetos de pesquisa e extensão, além de envolver alunos de graduação e pós-graduação, conectando-se diretamente à comunidade.

Ressalte-se que tudo foi feito com esforço pessoal dos pesquisadores, com recursos próprios que a reitoria destinou e com projetos da Pró-Reitoria de Planejamento, aproveitando um prédio subutilizado. A primeira fase, quase mil metros quadrados, já está praticamente pronta e há, ainda, a previsão de uma segunda e uma terceira fases – esta última sendo externa, com um espaço de Ciência Lúdica, que receberá uma emenda do deputado federal Ênio Verri (PT) em parceria com o mandato Josi Mais Coletivo (PSOL), da Câmara Municipal de Ponta Grossa.

Ou seja, acervos similares ao do Museu de Vila Velha estão em funcionamento ou em processo de implantação e a UEPG terá em breve um dos maiores do Brasil, com algo em torno de 2 mil metros quadrados de prédio, incluindo as áreas interna e externa.

Na condição de administrador, creio estar cumprindo, assim como o atual reitor da Unicentro, a nossa função de formar uma cultura científica a partir destas importantes áreas. Tenho o maior respeito pela história do professor Bigarella e atuo para que esta situação se resolva positivamente, com o acervo recebendo a destinação e a curadoria necessárias. Mas sem personalização – o acervo precisa, sim, é estar integrado ao processo contínuo das ações de nossas instituições. Na museologia moderna e nas diretrizes do ICOM (Conselho Internacional de Museus), é muito claro o papel dos museus por sua função social e por serem propulsores de um desenvolvimento sustentável.  É neste sentido que orientamos, com responsabilidade, o planejamento de nossos projetos. Contem sempre com nossas instituições públicas de ensino superior.

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