Minha vida sem cachorro

Chamava-se Carlota. Chegou na nossa casa numa tarde de sábado, ainda recém-nascida, um bebê que qualquer pessoa acharia adorável: pequenina, gorducha, olhos brilhantes e um pouco assustada. Prometi, em silêncio, que a amaria como nunca antes havia amado alguém da sua espécie.

Seria fácil. Ao contrário de Vinagre e Xerife, os dois perdigueiros que meu pai teve quando éramos crianças, Carlota viveria conosco desde os seus primeiros dias. Daria pra criar uma intimidade que não tive com os outros. Também ao contrário dos perdigueiros, ela era bem pequena, a ponto de caber numa concha feita com as mãos – não seria uma ameaça.

Eu seria uma dessas pessoas alegremente lambidas por cachorros quando chegam do trabalho. Largaria a bolsa no sofá e rolaria no chão com o bichinho, sentindo-me a mais humana das criaturas, até que a mãe chamasse para jantar.

Com essa imagem em mente, dei o que seria o primeiro passo para ingressar no maravilhoso mundo do afeto animal. Obedecendo aos comandos da minha irmã mais nova – que era o que hoje se chamaria de “mãe” da Carlota –, primeiro passei uma das mãos, meio trêmula, pela pelagem da filhotinha de pequinês. Deve ter durado meio segundo, mas achamos que dava pra ir para o segundo estágio. Então, minha irmã me orientou a juntar as duas mãos, e cuidadosamente depositou a cachorrinha no espaço côncavo que se formou. Aterrorizada, instantaneamente apartei uma mão da outra, ouvindo quase ao mesmo tempo o baque do animalzinho contra o chão.

Na queda, Carlota fraturou a cauda, que carregou torta para o resto da vida, como um símbolo vergonhoso da minha incapacidade de vencer o medo. Não tentei de novo. Passei os anos seguintes, até deixar a casa da minha mãe, fugindo dela como o diabo da cruz, das formas mais ridículas que se possa imaginar. Voltei para a vida de vexames que conheci desde pequena.

Já tinha, por exemplo, subido de um salto na geladeira da casa de uma costureira cujo cachorro apareceu de repente na cozinha onde ela tirava as medidas de uma amiguinha de escola que eu acompanhava. Outra vez, já bem mais grandinha, me refugiei no banheiro do jornal onde eu trabalhava quando uma estagiária com deficiência visual chegou na redação com o cão-guia – e de lá só saí para ajudar uma colega, também pouco afeita a bichos, a montar uma trincheira com cadeiras em torno da nossa ilha de trabalho.

O ponto alto dessa carreira de papelões deu-se num sábado de carnaval, quando cheguei em casa de um plantão para arrumar as coisas e ir ao encontro do resto da família, que já tinha viajado. Meu infortúnio foi, quase na hora de sair, ter decidido pegar uma peça de roupa na lavanderia. Abri uma fresta de porta e tentei alcançar a roupa sem entrar no cômodo, mas algo deu errado e quando vi já não tinha mais uma cachorrinha na lavanderia.

Corri para a sala em estado de pânico, subi no sofá e lá fiquei, sentada no encosto, enquanto a cachorrinha corria alucinada pelo apartamento minúsculo, indo da sala para a cozinha, de lá para um quarto e depois para o outro. Só na área de serviço é que a miserável não ia.  Quando vi que não ia ter jeito, arranjei uma coragem que só o medo de perder o carnaval explica, desci do sofá, esperei que ela entrasse num quarto e, num golpe de mestre, fechei a porta, partindo em seguida para a segunda parte do plano: fui até a cozinha, abri a geladeira e procurei alguma coisa que pudesse servir de isca para a fujona.

Encontrei umas vinas, que cortei em pedacinhos e fui jogando no chão, formando um caminho entre a porta do quarto e a lavanderia. E então fui para o tudo ou nada: abri a porta do quarto e soltei a mocinha, que na hora nem viu o carreiro de vina. Retomou a corrida desabalada por mais um tempo, saltando e arfando de um jeito que, na minha lente de pessoa com pavor de cachorro, a fazia parecer um tigre, um urso ou algum outro animal muito ameaçador.

Eu já estava chorando de desespero quando ela finalmente decidiu parar pra comer. Não seguiu o caminho como eu tinha planejado; foi abocanhando os pedaços de vina de forma desordenada, até engolir o último. Apostando todas as fichas na suposição de que ela queria mais, peguei uma vina que tinha sobrado e, segurando minha última esperança numa altura segura para não ser alcançada pela cachorrinha, fui em direção à lavanderia e arremessei a salsicha inteira no chão. Assim que a Carlota entrou, fechei a porta e desabei exausta numa cadeira.

A saga toda durou mais de uma hora e por sorte a viagem seria de carro, e não de ônibus ou avião. Não ousem me perguntar por que simplesmente não peguei a bichinha no colo e a levei de volta para a lavanderia. Se eu fosse capaz disso, não teria quebrado o rabo da coitada.

Com o passar dos anos, minha situação nesse campo só foi piorando. No começo, o máximo de reação que meu pavor provocava eram frases do tipo “não se preocupe, ele não faz nada”, ditas com uma displicência que sempre me irritou. Não raro, a pessoa falava isso enquanto o cachorro me olhava com a pior cara possível ou pulava em mim de um jeito que eu nunca soube distinguir entre perigo e brincadeira, até porque estava ocupada em tremer e perder a voz.

À medida que os cachorros foram ganhando status de membros quase humanos das famílias, e que começaram a aparecer estudos e reportagens dizendo que pessoas que gostam de animais são mais confiáveis, mais tolerantes e outras virtudes do tipo, a coisa ficou mais séria. Comecei a receber aqui e ali olhares de desprezo ou de pena por ser alguém tão insensível, fria, desapiedada, desumana mesmo. Uma espécie de pária numa sociedade com mais cães do que crianças e um pet shop em cada esquina.

Pensei mesmo em fundar uma associação do tipo “Humanos pelo direito de ter medo e viver sem cachorro”. Mas fiquei com medo de ter a sede apedrejada.

Em minha defesa, informo que chorei quando a Carlota morreu.

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