Sobre o dia em que montei uma bateria no Rock Camp Curitiba 

Achei que era hora de resgatar esse sonho de infância e, depois de conhecer o Rock Camp Curitiba, comecei a ter aulas de bateria

Eu cresci em um contexto no qual sempre estive exposta à música. Acredito que no Brasil e no mundo, muitas pessoas que cresceram na comunidade formada por uma religião cristã se identificam comigo quando digo isso. Desde muito pequena, presenciei pessoas tocando os mais variados instrumentos. Violão, baixo, bateria, piano, órgão, saxofone e até harpa – uma vez, quando eu tinha uns 10 anos. 

Embora eu fosse ainda muito ingênua sobre a vida e tudo o que acontecia ali na minha comunidade, lembro-me de muitas vezes ter questionado internamente a razão que fazia com que os homens sempre estivessem à frente quando se tratava de fazer música, tocando instrumentos como guitarra, baixo e bateria enquanto as mulheres geralmente estavam envolvidas no ensino, na organização do ato litúrgico, no cuidado com as pessoas. A elas era permitido no máximo participar do coral ou tocar piano, nem se mencionava a possibilidade de uma de nós tocar bateria, por exemplo.

Rock Camp Curitiba

Considerando o contexto no qual minha família vivia, era importante que existissem pessoas envolvidas com ensino e trabalho social, mas será que em toda a minha infância não houve uma mulher sequer com habilidades para instrumentos de corda ou percussão? Hoje, sendo uma mulher de 39 anos não religiosa, eu sei que provavelmente ali havia muitas mulheres que teriam se saído muito bem em qualquer um daqueles instrumentos, mas assim como parte da sociedade de hoje insiste em afirmar, naquele ambiente havia tarefas de homem e tarefas de mulher.

E foi por isso que mesmo com um interesse enorme em qualquer instrumento de percussão, com um sentido de ritmo razoavelmente aguçado e com uma bateria montada num ambiente que eu visitava diariamente, nunca pude aprender a tocar. Veja, não fui proibida de aprender por quem quer que fosse, eu simplesmente nunca fui incentivada, apesar de ter deixado claro muitas vezes que tinha um interesse profundo pelo instrumento.

Potencial

Sem incentivo, com a chegada da adolescência e mais tarde da vida adulta, acreditar no próprio potencial vai se tornando mais e mais difícil. E a gente vai deixando vontades e sonhos de lado, aceitando que talvez aquele sonho não seja para nós. Aceitando que não podemos. Na adolescência, eu até andei arriscando forçar uma entrada naquele mundo de homens, mas o contexto patriarcal e machista dificultava tudo ainda mais e, eventualmente, eu acabei desistindo por cansaço mesmo. Passei anos acreditando em todos que disseram – verbalmente ou não – que eu não podia. 

Participei do Rock Camp Curitiba pela primeira vez em 2019, voluntariando no camp de crianças. De lá para cá, passei por inúmeras transformações, encontrei acolhimento e apoio que foram essenciais em momentos difíceis e passei a fazer parte dessa comunidade de maneira permanente ao integrar a equipe de coordenação do projeto. Depois de repetir tantas vezes que “a gente pode, a gente faz”, achei que era hora de resgatar meus sonhos da infância. 

Bateria

Comecei as aulas de bateria em agosto de 2022 e, após o camp de crianças, em janeiro de 2023, ingressei na minha primeira banda. Para ampliar ainda mais meu conhecimento sobre instrumentos, nesse camp decidi fazer parte da equipe de roadies, responsável por todos os equipamentos utilizados durante o camp. E foi nessa tarefa que uma coisa simples, mas muito simbólica me ocorreu: eu montei uma bateria. Não se trata de uma tarefa glamourosa e nem é algo muito complexo, basta colocar cada item que compõe a bateria na ferragem adequada. Mesmo assim, tive que pedir ajuda várias vezes para pessoas mais experientes do que eu – pessoas generosas que me ajudaram e deram muitas dicas.

Incentivo

Naquela noite, já em casa, eu me lembrei de tantas vezes que admirei os meninos tocando, de tantas vezes que me perguntei “Por que não eu?”. Fiquei pensando o que aquela Lis de 11 anos diria. E percebi que, no final, a sensação de montar a bateria nem foi somente sobre querer tocar bateria, foi sobre cada vez que me disseram que eu não podia, ao longo de toda a minha vida. A cada item montado, o sentimento de que mesmo quando a gente nem tem certeza de como fazer, nós podemos. Porque sempre teremos o apoio de quem montou a bateria antes de nós, porque entre nós sempre teremos aquilo que nos faltou durante a vida toda: incentivo. 

E o mais gratificante de tudo isso é saber que daqui a pouco outras mulheres que sonham em tocar bateria chegarão. E será a minha vez de compartilhar, de mostrar que sim, a gente pode. E dessa forma, de camp em camp, de música em música, aos poucos vamos construindo um mundo mais justo e mais acessível para quem já cansou de ouvir que não pode.

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