A presença de Babette

Uma presença de carinho é um motor que pode mudar o mundo

Há quatro anos convivemos, aqui em casa, com uma cachorrinha chamada Babette. Com os filhos criados, Babette reapresentou-nos a necessidade da presença constante, do cuidado permanente, da atenção contínua a alguém. Correndo por toda a casa, batendo nas coisas, furtando uma meia ou um documento distraído, a cachorrinha vai incendiando nossa rotina com a sua energia e com sua liberdade. Nossa irritação é bem humorada, as ordens são dadas entre risos de graça e encanto pela alegria e intensidade dela.

Penso sobre o que aconteceria se tivéssemos disposição semelhante na relação com os que não estão em nossa casa e não elegemos “da nossa família”. A compaixão que sentimos quando Babette quer beber água e o potinho está vazio ou quando servimos o almoço e ela se alvoroça toda querendo algum petisco da mesa. Ou, com o frio, o espaço que destinamos a ela na cama, entre nós, ou aos meus pés, eu tendo que passar a noite com a perna encolhida e fazendo malabarismos circenses para não incomodá-la em seu sono merecido.

Nas ruas, milhares de pessoas passam frio e fome e, por alguma razão misteriosa, nossa medidor de compaixão, diante delas, também se congela. Quando muito, expressamos essa situação, verbalizamos uns queixumes contra as autoridades que não fazem nada. Nas calçadas da cidade saltamos sobre os corpos deitados e enrodilhados em mantas puídas e finas no começo gelado das manhãs e muitas vezes nem sabemos se são homens ou mulheres, idosos ou crianças. Nossa emoção e urgência em ajudar deixamos em casa, a cachorrinha acolhida em sua mantinha colorida, a comida à disposição, o potinho de água sempre fresca, uns brinquedinhos de pano pelos corredores para que ela possa fazer a sua graça. Na rua, os cães são incômodo e ameaça de ataque e doença. Transitamos por esses sentimentos paralelos sem pudores. Muitas vezes, sem sequer a percepção de que é assim.

O nome da nossa cachorra vem do livro “A festa de Babette”, no qual uma cozinheira parisiense refugiada do massacre da Comuna de Paris é acolhida em uma comunidade norueguesa muito religiosa e quando ganha na loteria, resolve gastar o dinheiro preparando um banquete para aquelas pessoas, para celebrar com elas o acolhimento e o cuidado que tiveram. A minha Babette, igualmente acolhida na nossa casa, “pagou” sua estadia com alegria e carinho. Celebramos todos os dias a presença calorosa dela. Mas não conseguimos aprender inteiramente a lição que fica no ar desde o ingresso dela em nossas vidas: a de que acolher e ajudar é a fonte maior da alegria. Acolher e ajudar as crianças, os adultos necessitados, os idosos nas ruas, asilos e hospitais, os cães abandonados, os presos sem culpa formada, os pobres nos casebres de periferia, os doentes, os solitários.

Quando falamos em cidadania, em direitos, esquecemos que a operação para tornar concreta uma sociedade justa é a ação diária de cuidar dos seus e de destinar um mínimo de energia para os outros. Imaginar que doemos um pouco da alegria que recebemos das Babettes, um pouco da afeição, do calor, da energia, para a comunidade, da forma que pudermos, com dinheiro, presença, trabalho, tempo, apoio. Por que isso é tão difícil de fazer com os outros se o que ganhamos de um simples animalzinho de estimação é tão fácil e tão intenso e recompensador?

No conto de Karen Blixen, a personagem Babette é uma grande artista e dividiu com as senhoras sisudas e reservadas que a acolheram um pouco da sua arte de unir aromas e temperos, carnes e legumes, texturas e sabores e garantir um dia inesquecível em suas vidas.

Imaginem se, na nossa vida, tomássemos a tarefa de tornar um dia, apenas um dia na vida dos outros inesquecível, com a nossa presença, celebrando a vida digna que todos deveríamos ter. Sei que isso não eliminaria as injustiças e misérias do mundo, a avidez e a insensatez que nos cerca, como bem sei que a presença de Babette não altera os rumos da minha vida cotidiana. Mas sei que essa graça torna-me um devedor, um depositário fiel de alegrias que são de todo mundo.

Uma presença de carinho é um motor que pode mudar o mundo. Todos temos esse potencial de acolher e de ajudar, de olhar com a intensidade de um cão ao seu protetor, de balançar o corpo sem medo de dizer-se feliz, de festejar cada encontro, mesmo que com diferença de minutos.

Obrigado, Babette. Um beijo no seu focinho lindo.

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