Podcast: O sangue do cordeiro

Daniel Medeiros, no novo episódio do podcast Sine Ira et Studio, fala sobre a Páscoa

A Páscoa  nunca foi uma data leve para mim. Mas creio que esse sentimento é, na verdade, algo  que incorporei já na vida adulta e depois emprestei à memória da infância. E a razão disso está nas histórias e nas minhas reflexões pessoais sobre os acontecimentos que cercam a páscoa judaica e cristã.

No tempo tudo começa bem antes, com a passagem bíblica que conta o quase sacrifício de Issac, por seu pai Abrãao. Na minha lembrança, a história é mais ou menos assim: um dia aparece o mensageiro de D’us e diz: Abrãao, pega teu filho, leva ao monte Moriá e o sacrifica para o Senhor. E Abrãao assim o fez, sem nem piscar, num zás-trás, num salto para a fé, como diria Kierkegaard , sem hesitação ou pudor. Simplesmente pegou o filho e o levou para matar.

Nessa hora, nunca deixo de me perguntar: onde estava a mãe desse menino que não impediu o pai de leva-lo em uma viagem tão longa e perigosa? Onde ficou o famoso sexto sentido materno que não percebeu no olhar vazio e distante de Abrãao a intenção radical de seus gestos?  Depois lembro da apreensão do menino ao perguntar ao pai: “onde está o cordeiro para o sacrifício”?

E o pai responde: D’us proverá.

Também fico pensando:  Abrãao, o que terá pensado durante o longo trajeto? Algo como: “Então D’us me deu, D ‘us vai me tirar? Está certo isso?” Mas depois, resoluto: “É preciso crer, é preciso crer. Que mais me resta fazer?” E lá chegando, o patriarca prepara o cenário para o sacrifício e amarra o filho e levanta contra ele a faca assassina. Parem a cena e pensem nela, por um segundo.

Pergunto: qual era o rosto que o menino Isaac fitava?

Muito tempo depois, o sangue do cordeiro ( de novo!)  salvou os judeus, desta vez  da décima praga. D’us avisou: as portas que tiverem marcadas com o sangue do sacrifício, Eu passarei por elas. A Páscoa judaica relembra esse momento dramático e fundamental: a passagem do anjo da morte, que ceifou os primogênitos egípcios e levou, enfim, o faraó a liberar os hebreus para sua longa peregrinação pelo deserto, para sua volta para casa. Sacrifício, novamente, sangue derramado para um fim que era um recomeço.

E mais uma vez muito tempo depois, temos Jesus sendo crucificado nos dias da comemoração da Páscoa judaica. Disse João, o apóstolo: “é o cordeiro de D’us”.

Essa tem sido a mensagem do Oriente para o Ocidente, há milhares de anos. Devoção e sacrifício como os caminhos para a realização dos projetos, para a salvação das almas. Cordeiro, cordeiros mortos para que homens e mulheres continuem sua jornada pelo deserto.

Não sou religioso. Não pretendo aqui, em absoluto, fazer uma  interpretação com pretensões religiosas. Destaco apenas a impressão que tive, minha vida inteira, com essas histórias. Menino, apavorava-me com a história do pai que levava o filho para sacrificar no alto do morro; com os meninos que morriam dormindo com a peste a devorar-lhes o futuro; com o jovem palestino sendo condenado a ficar pregado na cruz no alto do outro morro, sofrendo e perguntando: “Pai por que me abandonaste?”

Isaac carregou a lenha para o sacrifício, sem saber que deveria ser ele o cordeiro a ser imolado. Jesus carregou a própria cruz sobre a qual sofreu e expirou. Eu, criança, não sabia o significado de nada disso. Só ficava impressionado. Até hoje essas histórias me perturbam.

Comemoramos a Páscoa. Os judeus, pela liberdade. Os cristãos, pela ressurreição. Ambos oram e contam histórias. O ovo, símbolo do nascimento, da esperança – aquilo que virá , mas ainda está protegido por uma casca de mistério – tornou-se, como sabemos,  atração e razão para as crianças esperarem esse dia com ansiedade.

Também recebi ovos de páscoa na minha infância e também fiz essa festa para meu filho. Também contei as histórias do povo escolhido e também falei do salvador. Contaram-me, contei, contam, como um telefone sem fio estendendo-se para o infinito.

E é Páscoa de novo.  E mais uma vez os judeus se sentarão em torno da mesa e ouvirão a história do êxodo. E os cristãos ficarão contritos na sexta e expansivos no domingo.

Não é a regra, mas  algumas  vezes as celebrações das duas páscoas ocorrem no mesmo fim de semana. Celebram-na milhões de judeus, centenas de milhões de cristãos. Celebrar é lembrar que somos responsáveis pela manutenção dessa memória, dessas histórias de identificação e de responsabilidades.

Mas confesso – e que só vocês me ouçam: ás vezes penso se não deveríamos esquecer e reinventar. Às vezes me pergunto se de fato as novas gerações precisam crescer carregando lenha ou cruzes, imolando cordeiros.

Prefiro, sinceramente, as festas de improviso. Aquelas que você entra de penetra, faz melhores amigos e sai com uma namorada nova.

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