Podcast – Doação

Se você também não consegue tirar da cabeça quem tem fome, pense no que pode doar

Sempre entendi que um presente é a doação de algo seu para alguém. Presente porque você escolhe para alguém que ocupa a  sua memória – ou a sua alma – naquele momento. Presente porque o que se dá é uma extensão de você e , por isso, ficará como uma marca constante de quem você é na vida do outro. É diferente da lembrança, ou da “lembrancinha”, essa invenção contemporânea que se traduz pela fugacidade e rapidez das relações. Por isso sempre tive urticária com os famosos “vale-presente” e também com os presentes com selo de troca. “Se você não gostar…” diz a pessoa que certamente não me conhece, mal sabe quem eu sou, nunca prestou a devida atenção em mim, mas acha que me dar algo com um selo de troca é uma gentileza ímpar. Pode até ser, mas não é. Há controvérsias.

Minha paixão são os livros e por isso dou livros. E, principalmente, dou os meus livros, os que gosto e que me farão falta e, por isso, é um presente. Uma parte de mim agora faz parte da estante de outrem, um meu querido, onde terá boa guarida. Há muitos anos gasto recursos com primeiras edições e garimpo esses livros como quem sonha com um prêmio de loteria. Tenho alguns dos quais gosto muito. Mas a maioria deles foi parar nas mãos de queridos amigos e amigas, que sabem que receber um presente desses de mim é uma manifestação de bem querer mas, principalmente, de desejo de permanência de nossa amizade por meio desse outro bem querer na forma de livro.

Também gosto de comprar coisas que me trouxeram, repentinamente, pessoas amadas à memória, durante uma tarde agitada ou em um passeio melancólico num fim de domingo. Muitas vezes esses presentes são incompreendidos, porque não têm valor material nenhum: uma fita, um anel de madeira, um vidrinho de perfume com tampa de rolha da feirinha, uma revista em quadrinhos, vários saquinhos de figurinhas de álbum, um cartão postal, um doce de banquinha, uma fita de VHS, um aparelho de GPS de carro ( que foi pessimamente recebido), um livro comprado em sebo ( sem o glamour de ser uma primeira edição, mas porque lembrou-me de umas horas boas de conversas em torno de um vinho branco), enfim, coisas assim. Esse tipo de presente manifesta a primeira leitura que faço dos presentes, que é o de ele representar um momento no qual a presença dessa pessoa ocupou-me por completo, encarnado-me a ponto de deixar seus aromas e eu repetir por alguns minutos seus trejeitos de andar ou seus jeitos peculiares de falar.

Há um que de doação em todo presente e é o que estou querendo defender aqui. Quando tenho muito e dou cem é muito diferente de quem tem bem pouco e dá cinco. Os cem estavam perdidos na carteira de um e os cinco eram o último achado da carteira do outro. Um dá e sente uma leve e rápida brisa de satisfação, dever cumprido talvez, prestação a mais naquela vaguinha com paisagem no céu; outro não dá, divide. Divide-se, porque fará falta para ele.

Doar é, de alguma forma, dividirmo-nos. Se o mundo fosse justo e todos tivessem o que lhe é de direito, esse tipo de doação nem faria sentido. Mas, como diria o bom e velho Maquiavel, o mundo não é assim e devemos agir de acordo com a verdade efetiva das coisas. Por isso doar é necessário, urgente e uma espécie de moral mínima para esses tempos difíceis.

Doar não implica recompensa, como presente bom é aquele que você recebe por acaso, porque foi lembrado por ser importante para o outro e não pela obrigação social imposta pelas datas comemorativas. As datas festivas são uma espécie de chamamento compulsório para demonstrar afeto. Por isso, desculpem-me os que se lisonjeiam com seus aniversários, mas não dou presente nessas datas. Aqui em casa, isso já foi assimilado, não sem esgares e rangeres de dentes. Mas compenso com o que eu acho que é o conteúdo mais bonito de qualquer presente: minha lembrança diária e meu afeto verdadeiro.

Por isso, agora, apelo: para todos os que não conseguem tirar da cabeça o sofrimento de quem está passando fome, que, aliás, não sei porque não é um mandamento explícito de D’us – embora sempre foi assim que eu li o quinto mandamento d’Ele – ou então o sofrimento de quem está passando todas as outras ordens de necessidades, sem gás em casa, sem fralda pras crianças, aluguel atrasado ou morando nas ruas, sem sapato pros filhos, para todos os que se sentem diminuídos em sua humanidade diante dessa existência que deveria ser apenas uma imagem nos livros de história de tempos distantes, apelo: doem. Não somente o tanto que sobra em nós, embora se for assim, já será de ótimo tamanho. Mas também devemos dividir o que consideramos importante para nós. Para mim, meus livros de primeira edição; meu trabalho; meu tempo. Para você, o que é possível dividir?

Muitas vezes, estive em lugares distantes, para os quais nunca mais ou muito dificilmente eu retornarei, e vi algo que derramou em mim a lembrança de um querido ou querida. E em muitas vezes contei meus caraminguás e disse, “não, deixa pra lá, se der, antes de ir embora, eu compro”. E hoje, passados dez, vinte anos dessas desistências, ainda revejo a cena que nunca existiu: o sorriso de alegria do presente dado, o abraço apertado, não porque ganhou algo de valor , mas pelo valor expresso naquele algo, o de que não estamos sós mesmo quando estamos distantes.

Busquemos esses sorrisos, esses abraços, mesmo que eles não sejam dados em nós. Aliás, isso não é importante. Uma doação é importante porque desperta a potência da alegria e da esperança em meio ao nevoeiro da realidade injusta. Porque anima, como o sopro criador, que insufla vida, e viver não é outra coisa que dividir nossas existências, inspirados pelos outros e inspirando quem pudermos com nossas parcas qualidades. Não se enganem: não haveria espécie humana na solidão. Somos o que somos porque há pluralidade no mundo. Esse é o nosso presente diário. E também é a única chance de um futuro melhor.

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