Os cachorros de Schopenhauer

A filosofia nunca prestou muita atenção aos cães, mas há boas exceções. Diógenes, certamente. Outra é Schopenhauer

“Todo o conhecimento, a totalidade das perguntas e respostas, se encontra nos cães” (Franz Kafka)

Existe uma longa literatura sobre a relação dos seres humanos com os cães. Entre os livros que mais gosto, estão os recentes “Il cane secondo me: vi raconto quello che ho imparato dai cani”, do filósofo italiano Roberto Marchesini; o curioso “Dogs”, do filósofo inglês Mark Alizart; o maravilhoso “Flush”, com o qual Virginia Woolf se aproxima de forma originalíssima das questões feministas que lhe são próprias; depois dele o “Timbuktu”, fábula da amizade entre um vira-lata e um poeta indigente, bem aos moldes do antigo personagem de Diógenes, o cínico – palavra, aliás, que remete precisamente à vida canina. Ah… e tem ainda o “Memórias de um cão”, de Peter Mayle e o maravilhoso “Dog”, de Susan McHugh, que está entre a história e a mitologia. E aquele mais do que politicado “O homem que amava os cachorros”, de Leonardo Padura, referência ao assassino cinófilo de outro livro homônimo, de Raymond Chandler. O cão também está presente na literatura brasileira de diversas formas, a começar por “Confissões de um vira-lata”, de Orígenes Lessa, que tematiza o drama do animal diante do tratamento que humanos dedicam uns aos outros. E quem haverá de esquecer a Baleia de Vidas Secas?

A filosofia nunca prestou muita atenção aos cães, mas há boas exceções. Diógenes, certamente. Outra é Schopenhauer. Quando escreveu o seu curioso livro “A escada dos fundos da filosofia”, Wilhelm Weischedel, junto com destacar a misantropia do filósofo alemão chamado por Nietzsche de “o cavaleiro solitário”, lembra que ele tinha “apenas o amado e fiel poodle como companhia” (2004, p. 247). Na verdade não era apenas um. Como lembra Allan de Botton, no seu “As consolações da filosofia” (2001, p. 204) Schopenhauer se muda, em 1833, para um modesto apartamento em Frankfurt-am-Main – cidade que tinha, à época, cerca de 50 mil habitantes, que ele tratava como “caipiras bairristas, esnobes e debochados” – e passa a reservar seu afeto para “uma sucessão de poodles”, raça de cães que eram considerados por ele como cândidos e humildes. Schopenhauer teria adotado, inclusive, a moda de chamar seus cães de “Sir” (pronome reservado a pessoas). Isso é confirmado pelo biógrafo Rüdiger Safranski, que lembra de um depoimento do compositor Xaver Schnyder von Wartensee, que afirma que quando Schopenhauer “queria repreender seu cãozinho poodle, que o acompanhava ao restaurante, embora em geral fosse bem comportado, o chamava de ‘Tu, Gente’ (du Mensch), ao mesmo tempo que lançava olhares malignos a seus vizinhos”. (2011, p. 523). Sim: o cão era único verdadeiro merecedor de um tratamento digno, mas ao mesmo tempo, quando fazia suas trapalhadas, era advertido porque agia como “gente”. Os cães, diferente dos humanos, eram bondosos e amáveis. Certamente Schopenhauer concordaria com o que Kundera escrevera em “A insustentável leveza do ser”: “Nenhum ser humano pode oferecer a outro o idílio. Só o animal pode fazê-lo, porque não foi expulso do Paraíso. O amor entre o homem e o cão é idílico. É um amor sem conflitos, sem cenas dramáticas, sem evolução”.

Consta que Schopenhauer adquiriu, em 1840, um poodle branco que chamou de Atma e foi um dos seus cachorros mais famosos. Ele vivia um momento de grande interesse pelas religiões orientais e esse nome foi inspirado na tradição védica que o autor tanto admirava. Para os védicos, Atma significa alma, convertida, na cultura hinduísta posterior, em um princípio subjacente de tudo o que existe, algo que se identifica com o brâman, ou seja, com a essência do universo. Atma é, por isso, a alma do mundo, o princípio comum de tudo o que vive – e, por viver, de tudo o que sofre. O cão, nesse caso, com seu nome, traduz um dos princípios mais fundamentais da filosofia schopenhaueriana, marcada pelo pessimismo e pela melancolia diante do mundo, considerado um lugar de misérias e sofrimentos tanto para os humanos quanto para os animais. Atma passa a ser um dos seus companheiros de jornada do filósofo alemão e sua fama para a posteridade foi certamente motivada, entre outras coisas, pelo famoso desenho “Schopenhauer caminhando com seu poodle Atma”, feito pelo poeta e caricaturista alemão Wilhelm Busch.

Consta ainda que Schopenhauer tenha se mudado de casa, pela última vez, em 1843 devido a um desentendimento com a sua locatária por causa de Atma. Rüdiger Safranski anotou: “Em 1843, ocupou a casa número 17 da ‘Schönen Aussicht’ [Bela Vista], perto da ponte sobre o rio Meno, quase na esquina com a Fahrgasse [Travessa das Barcas]. Viveu muitos anos nessa residência, até 1859, quando teve umas desavenças com a proprietária por causa do comportamento de seu cãozinho poodle (pertencente a Schopenhauer), quando se mudou para a casa do lado, ‘um alojamento muito maior e mais bonito’, segundo registrou.” (2011, p. 521).

Atma morreu em 1850, e depois disso, o filósofo comprou um poodle marrom cujo nome era Butz, que passou a ser o seu companheiro preferido, apelidado pelas crianças da vizinhança como “o pequeno Schopenhauer”. Botton lembra que, nessa época, Schopenhauer costumava acomodar o cão junto à janela para assistir a passagem das bandas de regimento de cavalaria e que nessa época era muito comum encontrar o filósofo caminhando com seu cão às margens do Rio Meno, como parte da rotina rígida que ele adotara e que fora, certamente, suficiente para que, depois da fama repentina que o filósofo conquistou nos últimos anos de vida, a população local tenha desenvolvido o costume de também ter poodles como companhia doméstica. Isso é confirmado por Safranski: “Mesmo a gente do povo que jamais chegou a ler os escritos do filósofo, o conhecia agora bastante bem e todos os respeitam durante seus longos passeios com o cachorrinho. Ele começou a ser imitado e em Frankfurt​-am​-Main surgiram muitos andarilhos e se tornou moda adquirir os pequenos, mas fiéis cãezinhos poodles para servirem de companhia”. (2011, p. 643).

Safranski descreveu assim a rotina do filósofo com seu cão: “Após a leitura de seus jornais, saía todos os dias para dar um longo passeio pelas ruas da cidade, com um passo rápido, embora não tivesse um objetivo fixo, chovesse ou fizesse sol, sem se importar com as condições do tempo e acompanhado por seu cãozinho poodle, com quem conversava, embora parecesse mais que estava mantendo um monólogo em voz alta, sem dar a mínima para os transeuntes que passassem a seu lado ou para as pessoas paradas nas calçadas.” (2011, p. 524) Depois disso, voltando para casa, não recebia nenhuma visita: “lia o que lhe interessasse durante o resto da tarde e depois fazia uma meditação com o auxílio dos Upanixades antes de ir para a cama”. Schopenhauer era mesmo o “Kaspar Hauser da Filosofia” (2011, p. 604).

A companhia dos cães, certamente, foi central para que Schopenhauer elaborasse as suas ideias. Chego mesmo a pensar que sem os seus poodles, elas não teriam sido tão convincentes e tão entusiasmadas. Com seus cachorros, o filósofo aprendeu a ouvir o apelo dos animais e distinguir neles a urgência da compaixão. Para Schopenhauer, a dor é o vínculo mais importante entre os humanos e os animais. Nesse ponto, ele talvez concordasse com Olga Tokarczuk que afirma no seu Escrever é muito perigoso: “Para mim, é mais fácil suportar o sofrimento de um ser humano do que o sofrimento de um animal. O ser humano tem uma posição ontológica própria, elaborada e anunciada aos quatro ventos, e assim constitui uma espécie privilegiada. Tem cultura e religião para o apoiarem no sofrimento. Tem suas racionalizações e sublimações. Tem Deus que, enfim, o salvará. O sofrimento humano tem sentido. Para o animal, não há nem consolo nem alívio, porque não existe salvação que o espere. Não há sentido. O corpo do animal não lhe pertence. Ele não tem alma. O sofrimento do animal é absoluto, total. Se procurarmos vislumbrar esse estado com nossa capacidade humana de reflexão e compaixão, desvenda-se todo o horror do sofrimento animal e, em consequência, o terrível e insuportável horror do mundo” (2023, p. 39).

Para Schopenhauer a compreensão da dor animal nos obriga a proteger e evitar o seu sofrimento – porque o homem sabe o quão terrível e indesejável é sofrer ele deve se compadecer. Isso significa adentrar no círculo existencial do outro através da partilha da dor e, uma vez aí, ser capaz de suspender os próprios interesses em função da dor do outro, que nos exige um ato ativo de solidariedade. A compaixão nasce da certeza de que “sofremos COM ele [o animal], portanto EM sua pessoa”. Essa é a regra de ouro de sua ética: o caráter de um ser humano se conhece pelo modo como ele trata os animais, ou seja, quem maltrata um animal não pode ser considerado bondoso ou de bom caráter.

Schopenhauer foi um dos primeiros a ouvir o apelo dos animais, essas “almas flageladas” que rondam pelo mundo, muitas vezes aprisionadas em estreitas celas para alimentação humana ou estendidas em mesas de vivissecção para o bem da ciência. Uma vez ele escreveu: “Apesar de demonstrar grande inteligência e ser considerado como o melhor e mais fiel amigo do homem, o cão é mantido por seus donos em uma coleira! Não consigo ver um cão neste estado sem sentir a mais profunda simpatia por ele e uma profunda indignação por seu dono. Lembro-me com satisfação de uma notícia que li no ‘The Times’ faz algum tempo: um determinado lorde mantinha um cão enorme preso a uma coleira. Um dia, quando passeava em seu jardim, resolveu acariciar o animal, que, ato contínuo, o atacou, provocando ferimentos profundos em toda a extensão de seu braço, e com razão. O que ele quis dizer foi: ‘Você não é meu dono, é um demônio que transforma minha curta existência num inferno!’ Espero que o mesmo aconteça com todos que mantêm seus animais acorrentados.”

Por isso tudo, Schopenhauer testemunha a riqueza afetiva que nos faz exclamar, com o seu conterrâneo Carl Zuckmayer que “a vida sem cachorro é um equívoco” (e talvez, parafraseando Nietzsche sobre a música, que “a vida sem um cachorro é um erro, um exílio”). Mas isso não é tudo: Schopenhauer é a prova de como uma tal convivência é cheia de aprendizados para aqueles que foram capazes de romper a linha divisória (e ilusória) inventada pelo antropocentrismo e pelo especismo. Quem convive com os cães, como ele, sabe como é estar ligado ao âmago da vida.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Os cachorros de Schopenhauer”

  1. Na história o homem elege alguns animais que dele se aproximam para transformá-los em escolhidos “superiores”. Daí aqueles a quem respeitamos, amamos e deixamos nossos cuidados. Os outros? Os outros, não importa seu grau de inteligência e afeto, deles nos distanciamos para o tomarmos como alimento, um produto, uma commoditie cuja única função é nos garantir a sobrevivência. E nessa estranha forma de amor pelos animais descobrimos que muitos daqueles que os amam, têm o âmago de suas vidas ligados a seus próprios umbigos.

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