No João Gueno, alunos se dividem entre presente desafiador e o sonho do futuro

Escola na divisa de Colombo e Campina Grande do Sul lida com as mudanças no ensino médio

A cada início do ano letivo, as escolas públicas retomam as atividades e se veem desafiadas a lidar com as mudanças constantes no modelo de trabalho. Com a ascensão das plataformas digitais no estado do Paraná, surgiram equações complexas que se multiplicaram e resultaram em tendências e questionamentos nas salas de aula. De um lado, as queixas de sobrecarga, desmotivação e cansaço; de outro, o esforço conjunto para manter o ambiente acolhedor e formativo.

A dezoito quilômetros do centro da capital, cerca de 700 estudantes caminham rumo ao João Gueno, um colégio estadual que fica em São Dimas, bairro periférico de Colombo. Na entrada, uma rua de terra com pedras soltas e um muro de cor de cinza. Ao lado do portão elétrico, um mural preto identifica a escola, com uma escrita e um brasão em branco. No entorno, ladeiras e morros com casas simples mostram o final da cidade no limite do mapa. Poucos metros ao leste está Campina Grande do Sul, outra cidade da região metropolitana.

O Gueno, como é popularmente conhecido, é uma entidade que transcende as fronteiras do bairro São Dimas. Nos últimos 12 anos, a instituição passou a ser valorizada e reconhecida pelas abordagens pedagógicas que a diferenciavam. Isso se deu em 2012, quando se formou um elo com a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e passou a integrar projetos que visavam aprimorar a relação com a educação. Foi através da Érica Rodrigues, professora de Língua Portuguesa, que a escola começou a ocupar as páginas dos jornais locais. Não demorou muito para alguns prêmios serem conquistados. Em 2014, a escola foi contemplada com o Prêmio Vivaleitura, elaborado pelos ministérios da Cultura e da Educação.

Érica Rodrigues nota que os alunos estão se sentindo preocupados com as demandas do calendário letivo. Foto: Eric Rodrigues

Durante os 13 anos lecionando na mesma escola, Érica integrou uma série de atividades que permeou o João Gueno e o bairro de São Dimas, quando o Núcleo de Educação e Comunicação Popular (NCEP), projeto de extensão do setor de comunicação da UFPR, selou a parceria em 2018. A união gerou dois livros de crônicas, duas revistas, uma série de podcasts e um portal de notícias. Todos os materiais foram produzidos pelos alunos do Gueno e do NCEP, que se organizaram nas reuniões de equipes e nas oficinas técnicas.

O Gueno News, de 2019, foi uma das iniciativas que apresentou o jornalismo aos estudantes do colégio. Como repórteres mirins, exerceram o ofício jornalístico a partir de fatos e eventos do bairro no modo raiz da profissão: gastando sola de sapato, olhar atento, caderneta e caneta nas mãos. “Foi muito legal. Eu me recordo de que organizamos uma exposição de conhecimento e os estudantes expuseram suas criações no blog para colegas e pais. Eles encontram ali um lugar de expressão da comunidade e começaram a reconhecer as residências, as pessoas, os problemas com a pavimentação e outras questões”, afirmou a professora.

A influência da professora Érica e a parceria com o NCEP possibilitaram que Emanuelle Viana de Freitas, de 18 anos, conhecesse o mundo da comunicação e participasse de todos os materiais elaborados. Estudante do Gueno entre o 6⁠º ano do fundamental e o último ano do ensino médio, Emanuelle desenvolveu aptidões pela comunicação e escolheu o jornalismo nos vestibulares de 2023. O caminho já estava traçado. Tornou-se caloura na UFPR, a primeira da sua família. Deseja ser uma repórter que percorre as ruas em busca de pautas e personagens. 

“O meu interesse pelo jornalismo foi aumentando enquanto conhecia mais sobre a profissão, participava de oficinas, projetos de escrita e audiovisual no Gueno, com o NCEP e meus colegas da escola.” Foto: arquivo pessoal

Para a caloura de jornalismo, a universidade representa um passo crucial na formação pessoal e profissional. Espera que esta conquista seja um ponto de referência para outros secundaristas das escolas periféricas, e quer vê-los nos campus universitários. Em breve, poderá retornar com uma camisa laranja do NCEP e desenvolver a educomunicação no colégio em que cresceu.

Além de Emanuelle, outras três alunas do Gueno passaram no vestibular da federal: Victória Avila entrou em Terapia Ocupacional, Rafaella Andrelini vai cursar Farmácia, e Luana Napoleão Valdera — participante dos projetos do NCEP — começou a estudar Ciências Contábeis. 

Desafios reais 

Única escola com ensino médio na região, o João Gueno funciona 15 horas por dia e acolhe alunos do fundamental ao 3º ano nos três turnos. Devido à falta de espaço, o colégio consegue oferecer vagas para o 1º ano dos secundaristas no turno da manhã. Já os estudantes do 2⁠º e 3⁠º ano, não têm outra opção senão o turno da noite. Diante disso, alguns pais optam pela retirada os filhos no 9⁠º ano do ensino fundamental. 

“O nosso grande problema é que muitos pais têm esse receio do noturno, e a gente perde muito estudantes no final do ensino fundamental. Há uma quebra de continuidade. Então, muitos alunos bons, no sentindo de aprendizagem, saem para procurar outra escola que tenha outros turnos, que os pais acham que são mais seguros”, disse Vanessa Cotrim, vice-diretora do João Gueno.

Ainda sobre espaço físico, para atender mais alunos, a metragem da biblioteca foi drasticamente reduzida para uma nova sala. As atividades de leitura foram adequadas e dezenas de livros foram remanejados. É o que dá para fazer. Além disso, não há quadra esportiva no mesmo prédio, usa-se o ginásio no outro lado da rua. A rede elétrica da cancha foi furtada, e os alunos não podem utilizar a quadra à noite. Os estudantes até se reuniram e fecharam uma vaquinha para comprar o necessário. Logo depois, um novo furto aconteceu e desfez o plano.

Quadra de esportes fica em outra rua, a poucos metros da escola. Cancha fica disponível para os alunos dos turnos da manhã e tarde. Foto: Eric Rodrigues

Apesar dos pesares, os funcionários reportam que a relação interna é harmoniosa, com um profundo senso de coletividade. É nesta perspectiva que, nas primeiras semanas de aula, o corpo docente propôs uma recepção sincera para demonstrar acolhimento e segurança do ambiente escolar. 

“É um olho no olho. Essa empatia é simples, mas vejo que alguns lugares não dão certo, sabe? Aqui no Gueno é tudo família, eu e os outros professores conhecemos os alunos desde o sexto ano. Dessa forma, priorizamos esse afeto e respeito mútuo”, afirmou a vice-diretora.

Em outros tempos, os estudantes se viam entre a cruz e a espada, tendo que conciliar o ensino médio com o mercado de trabalho. Os últimos anos foram proveitosos e a evasão escolar, que era um problema, diminuiu para cerca de 10%.  Resolvido este assunto, os docentes encaram os outros entraves que assolam os estudantes do terceirão: sobre como será da vida no depois do ensino médio. 

Conforme os professores apontam, muitos estudantes não sabem o básico sobre as universidades, ENEM e coisas do gênero. Em conversas com alguns alunos do 3º, percebe-se a curiosidade que eles têm sobre o que fazer no futuro. Há aqueles que não têm a pretensão de ingressar na universidade e preferem os cursos técnicos. Outros, no entanto, não conseguiram responder sobre o que querem fazer no próximo ano. Incerteza e juventude caminham de mãos dadas, mas, para os professores, há uma onda de conformismo que precisa ser enfrentada.

Plataformização

Com o uso de metodologia em plataformas digitais, mais de 20 sistemas foram incorporados na rotina escolar, pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná (Seed-PR), em 2022, na segunda gestão do governador Ratinho Junior (PSD). O leque de programas abrange lista de presença, videoaulas, provas e outras atividades. A prática determina o registro de informações que vão para o banco de dados geral de avaliação do governo estadual. 

Na opinião da Emanuella, a insistência neste modelo representa um atraso prático na educação e uma produção de dados contraditórios. A ex-aluna do Gueno aponta alguns problemas que observou durante seu ensino médio, como dados incorretos nas plataformas, falta de didática, questionários divergentes do conteúdo, interferência pedagógica, falha de rede, problemas nos computadores e outros aparelhos, entre outros.

Todas as salas têm uma tela com as plataformas e uma webcam instalada. O método foi implantado em todas as escolas estaduais em 2022. Foto: Eric Rodrigues

Para além do João Gueno, nos diálogos pelos corredores de outras escolas, as queixas dos alunos e professores são similares, ambos reclamam da falta de eficiência deste sistema, e de uma transformação da educação em negócio estatístico. “Atrapalha o processo na aprendizagem porque a gente poderia fazer avaliações, atividades de outra forma que não nos é permitido porque a gente tem que esse gerar números”, relatou Nicolle Camillo, professora de Sociologia na regional do CIC, em Curitiba.

O sistema de leitura do Leia Paraná apresenta uma divisão indicativa para cada nível de ensino, que inclui autores clássicos, como Machado de Assis, José de Alencar, Lima Barreto e outros, além de novos escritores e abordagens, como Djamila RIbeiro e Ailton Krenak. No total, são 107 e-books disponibilizados. A maioria das obras está na seara da literatura clássica. No acervo, há oito títulos que tratam do empreendedorismo e da inteligência emocional. Das oito obras obrigatórias da UFPR, apenas duas estão disponíveis para os estudantes do ensino médio: “Casa de Pensão” (1884) e “O Uraguai” (1769).

Segundo a secretaria, “os objetivos desta ferramenta são fomentar o gosto pela leitura, desenvolver competências leitoras, fortalecer o hábito de ler nas diferentes áreas do conhecimento e contribuir para o desenvolvimento da cultura digital”, e complementa, “as obras selecionadas vão de best-sellers aos clássicos da literatura universal”.

Reformada no último ano, a biblioteca do João Gueno teve o espaço reduzido e teve que remanejar grande parte dos livros. O espaço era utilizado para atividades e reuniões. Foto: Eric Rodrigues

Como método avaliativo, indica-se a leitura de uma obra a cada trimestre e o preenchimento de questionários que treinam a análise critica e compreensão da leitura. Em contraste, algumas das críticas da comunidade apontam que os questionários são simplistas e que anulam o processo de aprendizagem entre professores e alunos.

Passando o bastão

De volta ao João Gueno, trago uma câmera fotográfica para documentar o dia a dia do colégio. Às 18h, o pátio é ocupado por camisas pretas com a logo da escola; às 18h30, o sinal convida os alunos para a sala de aula.  

Enquanto aguardava a movimentação nos corredores para uma foto típica do jornalismo, uma estudante se aproximou e pediu uma foto. Em seguida, outros adolescentes reagem solicitando o registro. No fundo da sala, mais seis meninos sorriem ao ouvir o disparo da câmera e retornam para os seus respectivos lugares.

É hora de me despedir. Agradeço as contribuições para a matéria e digo que vou enviar o link do texto com as imagens. Antes, Manoel, aluno do terceirão que conversei na primeira visita, veio até mim e perguntou se jornalista faz foto. Respondi que sim. O número de perguntas não parecia se esgotar, Manoel estava extremamente curioso desde o primeiro encontro. Por fim, com os olhos brilhando de entusiasmo, me disse que fará o vestibular no final do ano. Ele quer ser jornalista.

Este texto faz parte do projeto Periferias Plurais, em que o jornal convida jovens periféricos de Curitiba e região para falar de suas vidas e suas comunidades.

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