Eliana Brasil é talento do Sítio Cercado

A artista visual Eliana Brasil, moradora do bairro Sítio Cercado, atua em seus trabalhos com performance, instalações têxteis e pintura, nos quais remete às questões sobre memória, afetividade e pertencimento, com destaque à construção de identidade e autoafirmação das mulheres […]

A artista visual Eliana Brasil, moradora do bairro Sítio Cercado, atua em seus trabalhos com performance, instalações têxteis e pintura, nos quais remete às questões sobre memória, afetividade e pertencimento, com destaque à construção de identidade e autoafirmação das mulheres negras. Em sua poética artística, a ideia é a de promover a intersecção entre a arte têxtil com a escultura e a pintura. Também realiza pesquisas sobre a presença e visibilidade da arte negra no Brasil, com foco no Paraná.

A artista conversou com a reportagem em um bosque no Sítio Cercado, no qual há uma representação de intervenção urbana bastante significativa. A artista Eliana Brasil (Eliana da Silva) nasceu em Belo Horizonte e se mudou para Curitiba em 1997. Segundo ela, ficou muito encantada com a cidade, dentro de uma visão de turista, achando tudo muito incrível. Dentro desse olhar percebeu um contraste muito grande na geografia Curitiba, em relação à sua cidade natal, o que lhe interessava muito. “Para mim
a visão de Curitiba era como se fosse um shopping a céu aberto. Eu achava tudo muito organizado, tudo muito bonito, tudo muito perfeito. Isso me encantava naquele primeiro momento”, conta Eliana.

Chegando em Curitiba morou na região central, entretanto, foi quando se mudou para um bairro de periferia que começou a perceber as diferenças existentes entre as realidades das regiões. Porém, segundo ela, não tinha ainda uma maior percepção como uma pessoa inserida na sociedade e naquele espaço, permanecendo ainda por muitos anos o olhar encantador de quem vai para o centro da cidade.

Sua visão e seu gosto pela arte já vinham desde a infância, contudo foi aos 40 anos de idade que conseguiu ingressar no curso universitário de Artes Visuais da UFPR. Foi nesse período que começou a entender de forma mais aprofundada algumas questões sobre quem realmente ela é, ou seja, “uma mulher negra que tinha que sair todos os dias do Sítio Cercado para ir ao Batel estudar, ir do Batel ao Mercês trabalhar e fazer esse caminho de volta e observando tudo”, diz. Para Eliana, foram as diferenças desses espaços que acabou interferindo na sua formação como profissional das artes visuais e influenciando toda a sua percepção de mundo. Segundo ela, existem muitas nuances entre
a margem e o centro que são bem visíveis, mas que podem passar despercebidas. “E o quanto é necessário a gente entender e interferir e se posicionar, seja politicamente, seja de qualquer maneira. Por meio da arte, por meio da política, por meio da história”, afirma a artista.

Para Eliana, a arte é de alguma forma inerente aos seres humanos, que pode começar na infância e se expandir, como aconteceu com ela, que iniciou fazendo desenhos. No contraturno da escola na qual estudava, as crianças aprendiam atividades artesanais, nas quais aprendeu a fazer crochê e a bordar. Então levava para casa as sobras dos materiais, como fios de crochê e de tricô e continuava as atividades, que para ela na época era como se fosse uma brincadeira. “Eu só fazia brincando com as cores ali, misturando cores dos fios, e até então eu não tinha consciência de que isso era arte. A gente não tinha essa formação cultural para desenvolver esse olhar cedo. Mas eu já estava ali fazendo arte sem entender e isso eu trago para a vida adulta, entendendo que sim, isso é uma maneira de fazer arte também, criando essa relação de arte e artesanato”, relata.

As obras

As obras artísticas de Eliana Brasil tratam de memória, afetividade e pertencimento, com foco na construção da identidade e autoafirmação de mulheres pretas. E ela realiza esse trabalho por meio de instalações têxteis, performances, esculturas e pinturas, com a ideia de intersecção dessas formas de arte. Dessa forma, conta que sua inspiração parte das mulheres de sua própria família, em uma volta ao passado de sua infância e da “reobservação” de como se movimentavam para estruturar a base familiar. A artista explana que tem lembranças de uma família muito pobre, majoritariamente constituída por mulheres, todas empregadas domésticas, na qual foi criada e educada por uma tia que era responsável pela estruturação de toda a família, pois perdeu sua mãe quando tinha apenas 2 anos de idade. “Eram todas empregadas domésticas, desde a infância, e a minha tia sempre pontuava sobre a importância dos estudos. Que era muito importante que eu permanecesse estudando, que eu cuidasse dos dentes, eu me lembro muito disso”, informa.

Eliana lembra dos sacrifícios de sua tia para a levar à escola e conciliar com o grande tempo gasto no transporte entre a casa e o trabalho e vice-versa. “Então ela pegava dois, três ônibus, andava mais ou menos uns quarenta minutos a pé para poder chegar no trabalho e nesse meio do caminho ela ainda me deixava na escola, e depois ia me buscar. Era uma mulher muito sofrida”, conta Eliana. Assim, o trabalho da artista Eliana Brasil remete a esse lugar, todas mulheres negras com uma grande ausência de relação com a própria identidade. Um ambiente no qual não se discutia questões raciais, pois aprendiam que somente tinham que sobreviver, ou seja, precisavam se alimentar, viver e conviver com os desafios diários, o que gerava muitos atritos. “Não tinha uma relação afetiva de carinho, de troca, de afeto, de palavras amorosas. Então, tudo isso acaba interferindo na maneira como hoje eu construo meu trabalho, por isso eu falo da importância hoje da gente se valorizar enquanto mulher preta, se reconhecer primeiro, dizer que somos mulheres negras, mulheres pretas em movimento”, diz.

Na obra “Quando o gesto vira poesia”, a artista apresenta fotografias bordadas sobre crochê. Foto: Arquivo pessoal

Eliana completa destacando que é muito importante apresentar dentro de seu trabalho a valorização umas das outras dentro dessa estruturação, o que remete ao feminismo negro, de seguir sempre em uma corrente. A artista hoje entende que traz em suas obras uma memória ancestral, que vai além da memória física destas mulheres. Contempla o espaço de tempo das ancestrais que se movimentaram para que as mulheres negras da atualidade possam estar aqui hoje, trilhando seus caminhos.

Interseção artística

Os trabalhos artísticos de Eliana Brasil são voltados à relação entre o desenho, a pintura, a escultura e a arte têxtil, sendo que a intervenção urbana expressa toda essa intersecção. No bosque no qual aconteceu esta reportagem, está exposta uma de suas obras de arte, em formato de intervenção urbana. Trata-se de um crochê sobre a estrutura de uma árvore, o qual valorizou sua forma e a paisagem do local.

Essa arte demonstra toda a relação da obra com o espaço ambiental, na qual a artista faz a interseção da arte têxtil com o desenho natural da árvore. Por meio desse exemplo, a artista se manifesta sobre a importância da cor para o desenvolvimento de seus trabalhos, pois, segundo ela, o colorido está muito relacionado ao ato de pensar a pintura e o espaço físico. “A árvore com o crochê em volta remete a uma escultura, um presente, uma estrutura colorida”, destaca a artista, com animação.

A artista informa que pretende ocupar mais espaços com essas intervenções urbanas. No caso do bosque, que está repleto de árvores, ela idealiza que vários exemplares dessas árvores poderiam ser cobertos com crochê, para fazer um conjunto, uma composição urbana. Para ela, esse tipo de ação valoriza o lugar e as pessoas que residem ao redor podem se sentir como parte desse espaço, ou seja, oportuniza uma sensação de pertencimento à comunidade. A artista completa ao afirmar que a apropriação do lugar se pode tornar um cuidado afetivo. “O local deixa de ser um espaço de periferia aonde você vem para dormir e migra para o centro todos os dias, por exemplo, para trabalhar, como a maioria de nós acaba fazendo. Mas é a ideia de pertencer a esse lugar mesmo, e à medida que essas árvores vão sendo cobertas com o crochê, a minha proposta é que de alguma maneira acabe envolvendo a comunidade para participar”, diz Eliana.

A universitária

Eliana Brasil se formou no curso de Artes Visuais da UFPR no ano de 2019, porém enfrentou muitos desafios na vida de universitária. Como mulher, preta e periférica, destaca que, assim como muitas, também teve suas histórias e experiências dentro do ambiente acadêmico, as quais têm uma relação muito próxima com as de outras mulheres pretas. Eliana afirma que, de maneira geral, o espaço universitário não foi construído e pensado para formar pessoas negras. Para ela, com as cotas houve um maior acesso às pessoas nesse espaço, mas não definitivamente uma inclusão, pois muitas vezes os cursos são em períodos diurnos e há gastos com a aquisição de materiais essenciais para o bom rendimento acadêmico durante o curso. Segundo Eliana, esse contexto interfere na inclusão de estudantes pobres, negras e negros, ficando inviável a permanência no curso, o que faz com que, diante das dificuldades, acabem desistindo.

Eliana conta que teve oportunidade de entrar na universidade aos 40 anos, o que para ela são 20 anos depois da maioria das pessoas das turmas iniciais. Também era na época a única estudante negra do curso, ofertado então no período da tarde. Para ela, o que atenuou os problemas foi o fato de trabalhar no período noturno, diferente de muitas pessoas que tiveram que desistir do curso por causa do turno vespertino no qual eram ministradas as aulas. “Eu falo, de certa maneira ironicamente, que eu tive o “privilégio” de trabalhar no período noturno e com isso consegui conciliar o estudo com o trabalho. Porque infelizmente eu vi muitos colegas entrando e não podendo ficar porque tinham que trabalhar e não conseguiam conciliar”, afirma.

Como única estudante negra e com mais idade do curso, Eliana afirma que passou por situações muito chocantes, que quase a fizeram desistir. Entre elas, o fato de que não conseguia compreender muitos conteúdos por passar muitos anos distante da vida estudantil. Destaca que foi desafiante ser estudante e estar dentro da universidade, afirmando que conseguiu se manter por meio do Auxílio Permanência para aquisição de materiais que eram obrigatórios para a realização dos trabalhos em artes visuais. “Para poder apresentar os trabalhos e receber nota tinha que adquirir. Então fui receber esse auxílio permanência a partir do segundo ano e isso também colaborou para que eu desistisse de trancar o curso ou talvez até de não permanecer”, desabafa.

As conquistas

Em seu trabalho final de graduação, Eliana pesquisou sobre a presença ou ausência de artistas mulheres negras, principalmente no contexto paranaense. Eliana informa que, mesmo sendo poucos, há artistas negros até então conhecidos em Curitiba, mas todas figuras masculinas. E em todos os espaços ligados às artes, sempre eram apresentados esses mesmos artistas, o que a incomodava pelo fato de não haver referência de mulher negra nas artes, na cidade e no estado.

A pesquisa de Eliana gerou um recorte geográfico dentro da cidade de Curitiba, contudo a fez despertar em todo o estado do Paraná, pois quando iniciou seu trabalho de conclusão de curso pesquisou a presença de artistas visuais no Brasil e encontrou algumas referências, como Rosana Paulino, de São Paulo. Essa artista já tinha uma grande projeção e defendeu sua tese de doutorado por questionar trabalhos artísticos e fazer uma leitura histórica da presença negra nos espaços culturais, desde o Brasil Colônia até hoje. “A arte é responsável pela ocupação social, pelos lugares sociais. E até então ela sempre apresentou corpos negros naquele lugar de subalternidade, ou era mulher objetificada sexualmente ou a mulher colocada no lugar de subserviência. Apresentadas como trabalhadoras domésticas ou escravizadas”, afirma Eliana, que reforça sobre a importância do protagonismo das mulheres negras como críticas de arte.

Segundo a artista, ela não havia identificado no Paraná nenhuma discussão nesse sentido, sobre produção de artistas negras, e como já era uma artista negra em formação, teve essa percepção e começou a desenvolver suas pesquisas. A partir das conversas sobre essa invisibilidade, foi organizado um grupo de mulheres negras para levar os trabalhos produzidos para outros espaços culturais e, em 2018, essas artistas ocuparam o Museu Paranaense com suas produções. Ao todo, foram três exposições em lugares diferentes no mês de novembro daquele ano, dentro da agenda do Mês da Consciência Negra.

Eliana expõe sua obra “Ciclo Contínuo”, em crochê, tricô e costura sobre conduíte flexível. Foto: Arquivo pessoal

Com um currículo que apresenta exposições notáveis, a artista aponta que a mais relevante entre elas foi a primeira exposição de artistas mulheres negras que aconteceu com a organização do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR), em julho de 2019, mês da Mulher Negra Latina-Americana e Caribenha. Essa exposição parte da pesquisa de seu trabalho de conclusão de curso, a qual Eliana destaca como a mais importante e marcante, pois repercutiu muito nos espaços culturais paranaenses, fato que marcou a produção e a presença de artistas negras. Foi a exposição “Ero Ere: negras conexões”, que reuniu trabalhos do Coletivo Ero Ere, formado por artistas visuais negras que residem em Curitiba.

Segundo Eliana, essa exposição aconteceu como resultado da construção que começou com sua pesquisa e cresceu politicamente quando a artista se filiou à ONG Rede de Mulheres Negras do Paraná (RMN-PR). Destaca que aprendeu muito sobre o posicionamento enquanto mulher negra com as mulheres que já faziam parte dessa organização. Então, para ela, surgiu a partir desse momento de integração à RMN-PR, a artista politizada, que começou a atuar, inclusive, no Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR), levando a proposta de sua pesquisa de promoção de visibilidade de trabalhos artísticos produzidos por mulheres negras.

Para Juliana Mittelbach, Coordenadora Executiva Adjunta da RMN-PR, Eliana Brasil é uma artista visual, pesquisadora e militante do Movimento de Mulheres Negras (MMN), que realiza performances com debates sociais relevantes e corajosos. “Esse ano, no Julho das Pretas 2023, produziu a linda arte têxtil que homenageou a Iyagunã Dalzira, repleta de significado e afetividade”, afirma. Juliana também destaca que como pesquisadora, Eliana Brasil foi responsável por resgatar a memória de Anita Cardoso Neves, mulher negra que foi invisibilizada como “Maria Lata D’água, da escultura “Água pro Morro” (1944), de Erbo Stenzel, exposta na Praça José Borges de Macedo. Segundo Juliana, essa pesquisa trouxe o debate sobre o racismo estrutural e relembra as palavras de Lélia Gonzalez: “negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido…ao gosto deles”.

“Eliana é um exemplo que as mulheres negras podem estar em qualquer atividade, uma referência paranaense nas artes visuais que mostra para as futuras gerações que não queremos só comida, mas também diversão e arte que nos represente e resgate nossa memória ancestral, afirma Juliana.

Eliana destaca também que o dia da exposição se tornou um megaevento, pois coincidiu com uma homenagem realizada às mulheres negras pelo COMPIR, e sobre a importância do lugar. “A exposição foi realizada no espaço físico do Museu do Olho, o qual possui projeção internacional. Então, olha a importância do espaço físico desse lugar”, explana. A abertura da exposição foi o maior recorde de bilheteria que o Museu Oscar Niemeyer (MON) teve, de janeiro a julho de 2019. “Pessoas negras de todas as idades estavam presentes naquela abertura de exposição. Isso mexeu muito comigo. Com todas nós, lógico. Éramos sete mulheres artistas naquele momento. Mas particularmente comigo porque eu estava muito envolvida com toda essa pesquisa e essa repercussão para mim foi um presente gigantesco porque tinham senhoras de idade muito avançada, que familiares levaram para poder ver a exposição dos trabalhos de mulheres negras”, conta Eliana.

Nessa mesma noite, Eliana realizou a performance “Carne Nobre”, a qual questiona o lugar da mulher negra na sociedade. A ideia foi a de representar uma noite de gala, na qual uma mulher negra entra caminhando sobre um extenso tapete vermelho, carregando uma bandeja com um equipamento de prata. “Porque até então a sociedade vê essa mulher negra presa nesse espaço unicamente, de subserviência. Então é uma dicotomia, uma noite de gala, uma mulher protagonizando”, conta. Foi a primeira performance de projeção realizada por uma artista negra, a qual foi premiada no 67º Salão Paranaense.

Ao final da conversa, Eliana, que se considera uma pessoa reservada, afirma que o poder da fala é importante e destaca o ativismo da poetisa americana Audre Lorde, que quebrou o silêncio se manifestando como mulher lésbica e intelectual. “A gente vive dentro de uma cultura mundial de silenciamento, mesmo. E às vezes não fala por medo de morrer. Só que se a gente não fala, não enfrenta esse medo e vai morrer do mesmo jeito, e com o medo. Porque se você não se posiciona, você está apanhando do mesmo jeito. E o racismo faz isso com a gente, se não se manifestar vai apanhar e vai morrer o tempo todo, por isso precisamos nos manifestar sem medo de sermos julgadas.”

No vídeo abaixo é mostrada uma ação urbana de Eliana Brasil intitulada “Patchwork”: Tecendo uma Identidade”, realizada ao lado da escultura “Água pro Morro”.

Este texto faz parte do projeto Periferias Plurais, em que o Plural convida jovens de Curitiba a falarem de suas vidas e de suas comunidades. O projeto tem apoio do escritório de advocacia Gasam

Sobre o/a autor/a

3 comentários em “Eliana Brasil é talento do Sítio Cercado”

  1. Em Buenos Aires, existe um bairro, o Carminito, que tinha lá suas precariedade, até que um artista mudou e transformou o local num ponto turístico bastante frequentado
    Acho que a Eliana, com o apoio da comunidade, poderá seguir seu trabalho, belíssimo diga-se, transformando a paisagem do Sítio Cercado.

  2. Joyce Muzi (JoyLua)

    Muito feliz por conhecer está grande artista. Faltou colocarem uma forma de encontrá-la nas redes sociais pra seguir acompanhando seu trabalho!

  3. Show, show!
    Maravilhosa, um talento que esbanja sensibilidade e pertencimento através dos seus trabalhos cheios de expressividade.
    Um show de colorir a alma.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima