Como a música da periferia me salva todos os dias

Ouvir musicas de pessoas pretas e periféricas é você entender todos os sentimentos que uma pessoa preta periférica pode ter. A raiva. O ódio. A vontade de chorar de vencer. Viver sobrevivendo e, pra não morrer, ter que falar de vivência

Vozes falando em alto som que vamos sim nos amar. Que nós vamos amar os nossos, cuidar do nosso povo – que é preciso entender que estamos no caminho de sermos livres, fortes. Vulneráveis mas com força de movimentar tudo. E ricas. Que podemos sim viver a vida, e não só sobreviver.

São dores, amores, manifesto, vivência, sobrevivência em cima de um beat. Calmaria em dias que o mundo tá muito alto, resistência dos que são calados todos os dias. Ter jovens pretos, de periferia, falando sobre sua vida, a vida de uma comunidade (ou o que deveria ser a sociedade) e ter pessoas escutando isso e entendendo e se identificando – isso deve assustar eles. Mas eu sinto como se fosse aquela esperança pros nossos e a angústia tirada do peito.

Sair de casa e enfrentar as pequenas batalhas dos dias: o que eu escuto no fone me dá suporte. Por ouvir dos meus o que é a vida e curtir cada batida e frase cantada. O rap ainda tem o que dizer e dar autoestima pros nossos.

O “favela vive” é a voz daqueles que eles esperam que fiquem sempre calados. Ouvir da voz do outro a vulnerabilidade, o afeto que me foi tirado enquanto crescia; ouvir os meus iguais falando da necessidade disso ou do poder de ir atrás e estar tudo bem. É bom demais ver “pretos e pretas se amando”, ver aquilo que eles definiram como minoria se engrandecendo. 

Rap faz parte da minha vida desde que era criança. Meus primos me mostraram e me apresentaram primeiro Racionais. E Emicida. E entendi que cada palavra que eles rimavam ou cantavam era como se tivessem sendo reconhecidos, a confiança vindo e fazendo presença na vida deles.

E conforme fui crescendo meus gostos iam girando em volta disso, de pessoas cantando, rimando sobre a vida, sobre estar vivo, sobre viver e sobreviver na sociedade. Cantar sobre a vivência é para corajosos, porque é preciso ter a vulnerabilidade e a força de escrever e lembrar, relembrar dos momentos ruins; e colocar no papel; e deixar outras pessoas ouvirem isso e sentirem da mesma forma, ou de uma forma adaptada para a vida delas, o sentimento que se quis transmitir. Não só o rap mas a música tem esse encanto, e eu tenho esse sentimento de ser muito mais que resistência ou só palavras. É força sobre um beat. 

Rap, trap, funk. É sobre autoestima, empoderamento, realeza e ter asas pra ir pra onde quiser. E oportunidade. E ir atrás do que quer. É ter a representatividade dos que saíram da vila e conquistam o mundo. É ter letras falando sobre o que todos temem e têm medo de falar. É ver as cicatrizes sendo mostradas – sobre um beat.

Emicida, com o Álbum AmarElo, fez um trabalho falando sobre sobrevivência e com afeto, de cuidar e entender pra si mesmo que as cicatrizes não são a gente. Ou o que a gente sempre vai ser. Mas algo que só está ali como na letra da música AmarElo diz:

 “Permita que eu fale não minhas cicatrizes”

Pra mim a música falando da sobrevivente com afeto se tornou um certo escudo, ou um lugar confortável de se estar. Eu consigo sentir o amor e carinho dos meus pros meus.

Ouço mulheres pretas que tiveram que viver sempre lutando, e que agora mostram sua vulnerabilidade, se amando e amando outros. E também dando empoderamento pras meninas de favela que podem conquistar o mundo e muito além disso – dizendo que seu esforço vale muito mais que cuidar de homem. Ouvir minha música é ouvir sobre afeto, sobre poder se dar o direito de escolha e que viver assim dá certo.

A música que eu ouço é dar autoestima e coragem para que gente como eu siga seus sonhos de vida, contra o sistema branco de ser só um peão no mundo. É fazer os meus irem junto saudando e reverenciando os ancestrais por todo apoio e força que antes eles tiveram. Isso é a música preta, de periferia pra mim.

Sinceramente: quero a música de pessoas pretas, gente que veio de bairros periféricos, falando sobre conquistar o mundo sendo como elas são, e na caminhada de ir evoluindo sempre.

Eu sei: ouvir um favelado cantando pra eles deve ser assustador; eles provocam e começam as guerras, as brigas e as fúrias, mas querem segurar e controlar os efeitos que isso causa.

A minha música tem uma relação muito maior do que só falar sobre coisas, ou sobre o que a pessoa está passando ou pensando. A música que eu ouço fala para o outro sobre autoconhecimento, sobre relações pessoais e interpessoais, sobre construir um legado e fazer que ele sobreviva, sobre ascensão social. É saúde mental na forma de letra. É dar sentido ao sentimento de uma menina preta de vila.  

Ouvir musicas de pessoas pretas e periféricas é você entender todos os sentimentos que uma pessoa preta periférica pode ter. A raiva. O ódio. A vontade de chorar de vencer. Viver sobrevivendo e, pra não morrer, ter que falar de vivência. E entender que não tem como subir sozinho. E ser continuação sem se perder, sem se entregar. É a mistura dos sentimentos de vencer eles destruindo tudo com toda a força e o ódio que eu tenho no peito. E reviver tudo dos meus ancestrais que foi roubado e menosprezado por eles. 

Minha música é terapia. Tudo que evito falar e tento esconder se revela nas músicas que eu escuto. Ali eu entendo muito do que foi roubado de mim e que eu tive que ressignificar.

A autoestima que a escola me tirou.

O receio que eu tenho de entrar e andar normalmente numa loja ou no mercado.



A música das mulheres pretas, ricas, se tornando e falando do quão foda elas são, e quanto o mundo se torna pequeno perto delas.

Escuto duqueza, mc luanna, tasha & tracie, a Amaiz, Nina.

Essas e outras. São muito mais que a “neguinha” que eles falam. E sei que eu sou prata com o valor dobrado do ouro: eles me tiraram o meu real valor mas agora só tentam.  

A música dá essa força. A força para você não se perder – muito. Mas o Rap (e não só o rap, a música de periferia) é o que te faz lembrar do porquê está vivendo. Não é escutar as vozes e mesmo sabendo que eles vão te olhar mas nunca te enxergar. É vencer e conquistar o mundo. 

E nisso tudo, tá tudo bem ser vulnerável, chorar e querer amar e ser amado. 

Este texto faz parte do projeto Periferias Plurais, em que o Plural convida jovens de Curitiba a falarem de suas vidas e de suas comunidades. O projeto tem apoio do escritório de advocacia Gasam

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