Sem lugar para ficar, indígenas Kaingang passam noites desabrigados em Curitiba

A família veio na última segunda-feira (26) para vender artesanato, mas encontrou a Casa de Passagem da prefeitura fechada

Uma família indígena está em situação de vulnerabilidade social há cinco dias em Curitiba. Os Fykag são Kaingang, uma das três etnias indígenas presentes no Paraná, além da Guarani e da Xetá. Eles viajaram quase 400 km da Terra Indígena Rio das Cobras, em Nova Laranjeiras, para o centro da capital, com o objetivo de vender o artesanato da família. Mas, com a Casa de Passagem Indígena (CAPAI) fechada, os Fykag estão passando as noites debaixo do Viaduto Colorado, próximo à rodoviária da cidade.

No momento, eles são quatro: Cleverson Fykag Barão, de 21 anos, a esposa, a tia desta e sua filha. Mas, de acordo com Cleverson, mais familiares devem chegar nas próximas semanas, entre eles seu pai, para ajudar na comercialização do artesanato no centro da cidade, principal fonte de renda das famílias Kaingang.

Cleverson, que vende artesanato em Curitiba desde os 16 anos, conta que aprendeu a produzir os artefatos ainda criança. “Tem muito valor para nós. Quando saímos para vender, é para mostrar um pouco do nosso trabalho, porque a gente não quer perder a nossa cultura. A gente está aí nas cidades grandes para mostrar isso”, relata.

Quando chegaram na capital na segunda-feira (26), no entanto, encontraram as portas da CAPAI fechadas. Segundo Cleverson, nesta semana, o único contato que o grupo teve com a prefeitura foi truculento. “Eu tenho orgulho de ser indígena. A gente queria um pouco de respeito, mas isso não está sendo possível aqui na cidade grande.” 

Foto: Emerson Nogueira

Inaugurada em 2015 como uma espécie de centro de acolhimento e suporte para as pessoas que saem de suas aldeias em busca de renda com a venda de artesanatos pela cidade, a CAPAI foi fechada em março de 2020 por conta da pandemia, mas até agora não retomou as atividades.

Em resposta ao Plural, a Fundação de Ação Social (FAS) informou que está em tratativa com o Governo do Paraná “para avaliar parceria para a contratação de uma Organização da Sociedade Civil (OSC), por meio de Chamamento Público, que assuma o trabalho da unidade de acordo com a especificidade do público nela atendido”.

Como não existe previsão de abertura da Casa, o Governo do Estado e a Fundação Nacional do Índio (Funai) têm disponibilizado alimentos para evitar que os indígenas saiam de suas aldeias, de acordo com a FAS. “Aqueles que já vieram relatam extrema vulnerabilidade social e, quando necessário, estão sendo atendidos pela FAS por meio de passagem para retorno e encaminhamento para unidade de acolhimentos. Eles também estão sendo acompanhados pelo Governo do Estado, que mantém comunicação contínua com os municípios de origem para providências.”

Questionada sobre a situação dos Fykag, a FAS informou que no dia 5 de julho foram abordados seis indígenas no Viaduto Colorado, sendo quatro adultos e duas crianças de Rio das Cobras. Na data, eles foram encaminhados “para pernoite emergencial em unidades oficiais da FAS”. No dia seguinte, foram mandados de volta para a aldeia mas, de acordo com a FAS, “três mulheres não aceitaram o retorno e permaneceram em Curitiba para a venda de seus artesanatos se recusando a aceitar acolhimento e permanecendo embaixo do Viaduto”. Como confirmado por Cleverson, dois dos adultos eram ele e sua esposa.

Após alguns dias, o casal, que havia retornado à aldeia no dia 6 de julho, voltou à Curitiba sem as crianças, “e permaneceram com as outras três indígenas no viaduto também resistentes a qualquer encaminhamento”. A partir desta quarta-feira (28), a FAS afirma que as equipes que vem monitorando a região não avistaram mais a família.

Ministério Público

Procurado pela reportagem, o Ministério Público do Paraná (MPPR), por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos e da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos de Curitiba, informou que está acompanhando a situação e que foi expedida nesta quinta-feira (29) uma recomendação administrativa à prefeitura Curitiba para que “sejam asseguradas as condições de atendimento a essa população, bem como adotadas as providências necessárias para a reativação da Casa de Passagem Indígena da capital”.

No documento, o MPPR orienta que seja providenciado imediatamente um imóvel adequado para realocação e reativação dos serviços da Casa, de modo a garantir o devido acolhimento aos indígenas que estiverem na capital. “A resolução do problema tornou-se ainda mais urgente com a atual condição do tempo no estado, a partir da chegada de uma intensa massa polar que provocou fortes quedas nas temperaturas em diversos municípios desde a quarta-feira (28)”.

O MPPR ainda ressalta que, a decisão de alteração de local para o atendimento à população indígena tomada pela administração municipal descumpriu a previsão existente na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho “que preconiza que os povos indígenas interessados sejam consultados previamente sobre qualquer alteração em políticas públicas a eles direcionadas”.

A Prefeitura de Curitiba tem 48 horas para encaminhar ao MPPR uma resposta sobre as medidas adotadas para o cumprimento da recomendação.

Confira a recomendação administrativa do MPPR na íntegra:

Os Kaingang de Rio das Cobras

Os quase 19 mil hectares de terra – 85% dos quais compostos por mata nativa – que formam o Rio das Cobras fazem dela a maior Terra Indígena do estado. São 3.500 indígenas das etnias Kaingang e Guarani divididos em 11 aldeias, que ficam em dois municípios paranaenses, Espigão Alto do Iguaçu e Novas Laranjeiras, cerca de 400 km distante de Curitiba.

Imagem: Reprodução/Instituto Socioambiental

Quem conta sobre sua terra natal é Florencio Rékayg Fernandes, indígena Kaingang, escritor e pesquisador pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Florencio deixou Rio das Cobras para estudar e quando voltou, no ano passado, trazia um mestrado e um doutorado nas mãos. Filho de uma família de artesãos, Florencio descreve como a confecção de artesanato é fundamental não apenas para a sobrevivência dos Kaingang, mas para a identidade cultural do povo.

“O artesanato é a nossa marca. Aqueles símbolos que vocês vêem ali tem todo um contexto histórico, não são simplesmente imagens que inventaram. Isso vem sendo passado de geração em geração há 4 mil anos de existência do povo Kaingang. Nós não podemos deixar isso morrer. Essa é minha luta: a valorização da nossa identidade e da nossa cultura perante os órgãos públicos e a sociedade não indígena”, afirma Florencio, que também já foi vendedor e expositor de artesanato.

Foto: Emerson Nogueira

De acordo com o professor do Departamento de Antropologia da UFPR e pesquisador dos povos originários do Sul do Brasil, em especial os Kaingang, Ricardo Cid Fernandes, a confecção do artesanato é uma atividade fundamentalmente familiar: “os homens recolhem a taquara e a atividade de feitura basicamente fica para as mulheres. Tem vários estilos e formatos e usos diferentes, além de um aspecto que é invisível para nós, que são as marcas clãnicas. Enquanto a gente se posiciona no mundo a partir de uma filosofia ocidental de individualismo, eles se posicionam a partir dessa cosmologia [dos clãs]. A cestaria reproduz isso, é uma forma de manter vivo esses símbolos”. 

A população indígena e a cidade: uma questão que não deveria ser novidade 

De acordo com Florencio, atualmente a produção de artesanato no Rio das Cobras é muito alta pois precisa ajudar a complementar a renda e a sobrevivência vinda da agricultura, da caça e da pesca. “Com as mudanças climáticas sofridas pela ação do homem – maioria não indígena – a caça ficou escassa e os rios estão secos, não temos como pescar.” Por isso, cada vez mais, a população Kaingang busca os centros urbanos para comercializar cestas e balaios como forma de complementar a renda da aldeia. No entanto, em Curitiba, eles encontram certa resistência.

“Curitiba ainda tem dificuldade de trabalhar com as populações indígenas. A Casa [de Passagem Indígena] fechada dificulta muito. Eles têm o direito de ir e vir, são artesãos, vendedores, ambulantes. Muitas vezes, eles vão até Curitiba apenas com o recurso para a ida, eles contam com a venda do artesanato para retornar às aldeias”, relata Florencio.

Foto: Emerson Nogueira

Sobre a transitoriedade do povo Kaingang, Florencio conta que eles sempre passaram pela capital do Paraná. Nômades, os ancestrais da população de Rio das Cobras caminhavam de floresta em floresta, passando por Curitiba para chegar a São Paulo ou Brasília. “Até o nome Curitiba é de origem Kaingang. Eles tinham um espaço ali para descansar. Curitiba deveria valorizar e ter um acesso mais facilitado para os povos indígenas.”

“A sociedade ainda vê nós, indígenas, como aquelas pessoas que não tem condições, foram excluídas, que sobrevivem da caça e da pesca. Não nos veem como cidadãos com direitos de ir e vir”, conclui Florencio.

O professor Ricardo Cid Fernandes afirma que a presença indígena sempre esteve relacionada às cidades brasileiras e que, antigamente, eles frequentavam os centros urbanos com muito mais destaque. “Com o tempo, a nossa sociedade foi anulando as diferenças e os indígenas foram ocupando uma posição marginalizada nas cidades, encurralados em suas terras.”

Para o professor, por conta da cultura segregacionista que reverbera no Brasil, as pessoas tendem a recorrer a um imaginário de que as cidades foram construídas em vazios demográficos, quando na verdade foram instaladas em áreas que os indígenas já ocupavam e conheciam. “Todas as cidades brasileiras têm uma origem indígena. Os indígenas, historicamente, vêm para estudar, para eventos culturais, pela política, para vender artesanato, para encontrar parentes. E eles não vão deixar de frequentar. Eles circulam e ocupam e continuarão fazendo isso.”

Segundo Ricardo, dos cerca de um milhão de indígenas que vivem no Brasil, mais da metade se encontra nos centros urbanos. Em Curitiba, são mais de três mil. “Existe um universo indígena que a gente não vê e quando vê faz de conta que não. A gente os define como um brasileiro vinculado ao passado e a lugares remotos, mas quem faz isso somos nós [ocidentais], eles se definem de outras formas”, afirma. 

Por muito tempo a população indígena foi marginalizada, e ainda é, mas Ricardo olha para o futuro com esperança: “A gente vive uma cultura política de branqueamento, uma política de apagamento das diferenças. Mas hoje em dia há uma mudança em curso”. Porém, o professor reconhece que os brasileiros se idealizam como pessoas distantes dos indígenas. E que eles, os povos originários, são quase como estrangeiros dentro da própria terra.

Reportagem sob orientação de João Frey

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10 comentários em “Sem lugar para ficar, indígenas Kaingang passam noites desabrigados em Curitiba”

  1. Sandra Mara Balera Garcia

    Materia maravilhosa amei conhecer mais sobre os povos indigenas ,devemos ter mais respeito pela cultura deles e tambem pelos seus direitos, afinal somos nós os invasores não eles, eu gostaria muito de adquirir um cestos desse da foto e também saber se a casa de passagem ja voltou a funcionar. se o Rato jr ja viu isso.

  2. GENNARO DE STEFANO NETO

    bom dia, como existe uma feira de artesanatos no largo da ordem em Curitiba deveriam fazer um espaço para esses indigenas expor seu trabalhos, eles lá em suas aldeias que façam um
    posto para que as suas familias façam um revezamentos por uma ou duas semanas para vir a Curitiba expor seus artesanatos . assim acho que seria o certo para não vir tantos pessoas
    a curitiba e ficar a merce do acaso .

  3. Dario Pendragon Weiheimer

    A casa de passagem indigena foi feita pelo antropólogo Ubirajara Zoccoli e fechada sem justificativa pelo Ratinho Jr. A FAS terá já tem inúmeras dificuldades ao realizar os abrigos de pernoite com razoaveis condições humanas, sem chance de lograrem a conjuntura cultural pra atender indígenas nos abrigos.

  4. Alexandre Araújo Fontainha

    A Casa de Passagem Indígena (CAPAI) está fechada desde março de 2020? Meu DEUS ! E eu fui ao cinema no sábado retrasado…

    Pois é… o então candidato à Prefeitura de Curitiba, certa vez, em um programa ao vivo na TV, disse… “que não governaria com o traseiro, mas com o cérebro e o coração!”

    Bem… que cada um de nós agora julgue por si mesmo…

    Lamentável! Deveras lamentável.

    E que belo artesanato!

  5. Viviane K Freitas

    De quando são essas fotos? Ja q os órgãos responsáveis alegam q não viram mais a família? Estão onde agora? Gostaria de adquirir os cestos.

  6. Excelente matéria. Como bem disse o professor da UFPR “os indígenas tem o direito de ir e vir”. Qual a razão do fechamento da “casa de passagem indígena”? Antes de 2015 os indígenas estavam abandonados embaixo do viaduto. Voltaram para o mesmo local. Acho que o MPPR está no caminho certo em cobrar providências. O que me estranha é o fato do espalhafatoso MPF não cobrar providências da FUNAI.

  7. Julio César Moreira

    Muito estranho saírem do isolamento para uma região tão contaminante. São 19.000 hectares que deveriam estar aldeados, uma área maior que a cidade de Curitiba. Mais estranho é não terem calçados e roupas mais adequadas ao frio mesmo sendo provavelmente os mais pobres do Kaigangs daquela região. Posso estar enganado, as creio q a cultura pode ser preservada sem tamanho desconforto e sofrimento mesmo sendo artesãos. Quanto o fechamento da Casa, é bom lembrar q o mundo está uma pandemia. Quanto ao transporte, há passou na hora de institucionalizar a vinda para Curitiba com recursos públicos ou até mesmo deles próprios, devidamente organizados pelos Departamentos de Ciências Sociais Aplicadas das universidades públicas, afinal se deve-se alfabetiza-los, deveria-se também dar-lhe o que a sociedade tem de melhor: planejamento, organização, direção e controle.

  8. Alessandro Franca Quadrado

    Ótima reportagem, como é habitual no Plural, colocando luz nos pontos cegos da imprensa paranaense. Ao contrário do que expõe o senso comum, evidencia a diversidade curitibana – não apenas europeia como se deseja – que diariamente sofre a ação do ocultamento deliberado por parte da mente colonialista local.

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