Uma das principais formas de organização da Atenção Primária à Saúde (APS), a Estratégia de Saúde da Família (ESF) perdeu espaço em Curitiba. Entre 2014 e 2019, a modalidade, considerada porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), viu um quarto de suas equipes serem eliminadas na Capital. Entre as causas, a redução de recursos para o programa. Não fosse o desmoronamento, afirmam especialistas, os índices da pandemia poderiam ter atingido com menor força Curitiba, onde as mortes por Covid-19 passa de 1,1 mil.
Um dos eixos da Estratégia de Saúde da Família é justamente controlar dados epidemiológicos por meio do contato direto com a comunidade e evitar o adoecimento das pessoas. Ao tirar o foco da saúde pública de dentro dos hospitais, e priorizar ações de promoção da saúde, o modelo assume a lógica de prevenir para não remediar – essencial em um contexto de crise, como a de agora. Contudo, 25 anos depois de ser implementada, o subfinanciamento por parte dos governos federal e dos municípios está asfixiando a proposta em todo o país. E em Curitiba não é diferente.
Levantamento do portal Informação e Gestão da Atenção Básica (e-Gestor), do Ministério da Saúde, mostra que, nos últimos cinco anos, um quarto (26%) das equipes de Saúde da Família foram cortadas do serviço de saúde pública de Curitiba. Em 2014, 239 equipes chegaram a atender em Unidades de Saúde específicas, número que começou a cair gradativamente a partir de 2015, até chegar a 176 em 2019.
Na prática, a redução diminuiu a cobertura da população da Capital de 43,2% para 31,6% e afetou 217,3 mil curitibanos, conforme indicam os parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde – que prevê uma equipe para 3.450 pacientes. Por outro lado, os números mostram que não houve compensação com o fortalecimento de equipes da Atenção Básica, as que atendem nos tradicionais Postos de Saúde em fluxo distinto.
Para especialistas, o enfraquecimento da ESF – que já foi considerada a mais importante mudança estrutural na assistência à saúde no país, e é capaz de resolver cerca de 85% dos problemas de saúde da população – tem registros com nome e data. Um deles é a Emenda Constitucional 95/2016, que congelou os gastos da União por 20 anos em despesas essenciais e freou a transferência de repasses do SUS para os municípios.
Na outra ponta está Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), aprovada em 2017, sob a gestão do Ministério da Saúde pelo paranaense Ricardo Barros (Progressistas). O novo programa acabou com a modalidade de financiamento que estimulava a manutenção e criação de novas equipes da Saúde da Família. Não demorou muito para os curitibanos sentirem o impacto. A passagem de 2017 para 2018 foi quando houve a maior redução das equipes: de 211 para 181.
Foco nos bairros
“Depois desta PNAB, a gente tem visto uma focalização da Estratégia de Saúde da Família nos bairros mais periféricos de Curitiba”, observa o médico e professor da UFPR Rogerio Miranda Gomes, doutor em Medicina Preventiva. “Em comunidades mais fragilizadas, tirar as equipes da Saúde da Família pode ter um grande impacto, tanto em relação à insatisfação da população quanto nos próprios indicadores de saúde. E nos bairros não tão periféricos, as equipes vêm sendo retiradas, numa lógica de que se trata de uma política só para pobres.”
Diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), o médico de família e comunidade Ricardo Heinzelmann acrescenta que a nova dinâmica de repasse da PNAB de 2017 também deu carta branca para que os municípios passassem a investir mais fortemente em outros níveis de atenção à saúde que não os da prevenção. O novo formato voltou a fomentar o modelo “hospitalocêntrico”, responsável pelo acúmulo de atendimentos na Rede Emergencial, e minguou a atenção primária.
“O modelo da estratégia da família não é uma barreira, mas uma porta de entrada. Ele consegue guiar melhor o paciente diante da Rede porque é muito complexo que o usuário do SUS, sozinho, consiga saber quando é o caso de ir para um especialista, a um hospital. E já estamos vendo o desfinanciamento impactar nisso”, observa Heinzelmann. “A gente já vê muito mais casos que antes eram atendidos na Atenção Primária e que, por falta de acompanhamento correto, vão parar no Pronto Atendimento. Só que muitos estudos mostram o contrário, que para mudar resultados na saúde é necessário mais investimento na Atenção Básica.”
Barreira contra Covid-19
Estudos mostram que ampliação do acesso ao SUS e a seus serviços fundamentais, diminuição do número de internamentos e melhoria nos indicadores gerais da saúde (como os da mortalidade infantil e materna) são apenas alguns dos ganhos obtidos com a Atenção Primária centralizada na Estratégia da Saúde da Família.
A estruturação dos serviços em um modelo que aproxima profissionais e a comunidade viabiliza o acompanhamento contínuo da população e a adesão a tratamentos propostos – duas premissas fundamentais em contextos de crises epidemiológicas, como a do coronavírus. Na prática, isso significa que uma Rede de Saúde da Família mais forte poderia ter sido uma arma contra o avanço descontrolado das contaminações e mortes pelo Sars-CoV-2.
“Durante essa pandemia tem prevalecido o discurso de que o fundamental para reduzir a mortalidade é ter leito de UTI e respirador. De fato, é importante, mas não é o mais importante. Para reduzir mortalidade tem que fazer prevenção e isso envolve a medidas gerais de distanciamento físico, lockdown, garantir condições de trabalho, moradia, transporte e saneamento. Envolve ações de atuação mais específicas que exigem uma Atenção Primária mais forte”, garante o médico e professor da UFPR, Rogério Gomes.
O diretor da SBMFC avalia que investimentos na ponta final do SUS, como a expansão do quadro de leitos de UTIs, são importantes, mas também acredita que não devem ser concentrados apenas neste nível. Caso contrário, alerta, depender da rede hospitalar voltará a ser uma constante cada vez mais evidente no país.
“Infelizmente, a pandemia chegou no momento em que o Brasil vive, talvez, seu pior momento na construção de política públicas”, pondera Heinzelmann. “Neste momento de pandemia era para investir ainda mais nas equipes de vigilância, para imediatamente poder ofertar para aquele paciente que chega com suspeita o PCR, a avaliação necessária. Sem isso, passa o tempo, o paciente se agrava e só vai descobrir o diagnóstico dentro do hospital. Isso tem sido uma realidade no nosso país e é por falta de investimento na vigilância e Atenção Básica, áreas tão importantes”.
De acordo com o professor da UFPR, as limitações que envolvem as equipes de saúde da família terão impacto ainda no cenário de pós-pandemia. Isso porque o hiato nos atendimentos por causa da crise pode agravar a situação de pacientes que precisam de tratamento contínuo e que, sem uma equipe de condução, acabam sem acompanhamento adequado.
“Com a pandemia, muita gente vai deixar de frequentar o sistema de saúde, e o que a gente vai ver é a o adoecimento e a mortalidade que não são pelo vírus, mas pelo contexto da pandemia. Pacientes crônicos, cardiopatas, hipertensos vão ter condições agravadas. Se tem uma Atenção Primária bem consolidada, a equipe consegue lidar melhor com esses casos, monitorando, ligando para essas pessoas. É o que vem acontecendo em alguns locais”, salienta o docente.
De médicos a agentes
Em todos os municípios brasileiros, a composição de uma equipe da Estratégia de Saúde da Família segue modelo estabelecido pelo Ministério da Saúde, com um médico (generalista, especialista em Saúde da Família ou médico de família e comunidade), um enfermeiro (generalista ou especialista em Saúde da Família), um auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS).
Fora das Unidades de Saúde, são os agentes que se encarregam de intermediar a interlocução entre pacientes e demais profissionais do sistema, avaliando, por exemplo, o cumprimento e os efeitos dos tratamentos que devem ser seguidos por cada pessoa. E apesar de terem responsabilidades estratégicas na Rede de Atenção Primária, também enfrentam um momento difícil.
Dados mais atualizados do portal de Informação e Gestão da Atenção Básica revelam que o conjunto de agentes da saúde de Curitiba encolheu 43% entre 2014 e 2017, passando de 938 para 410. Parte se deve à queda de repasses do governo federal, porém, mais ainda a uma remodelagem do quadro destes servidores, feita em 2015.
À época com contratos terceirizados pelo Instituto Pró-Cidadania de Curitiba (IPCC), 361 agentes tiveram que deixar os trabalhos por terem sido incorporados após a Emenda Constitucional que obrigou processo seletivo para o cargo. A ordem foi cumprida, mas não houve reposição equivalente. Edital lançado em 2016 – e que previa a contratação de pelo menos 200 trabalhadores – chamou, até hoje, apenas 144 novos agentes.
“Foi uma perda muito grande nessa transição que, se não tivesse acontecido, poderia ter salvo muitas vidas”, afirma a agente comunitária Ondna Rodrigues Macedo, presidente do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde do Paraná (Sindacs-PR). A profissional, que já integrou equipes da Saúde da Família, acredita que o trabalho exercido por seus colegas poderia ter feito a diferença se houvesse equipes e condições suficientes.
“Lá fora, em outros países, tinha gente sinalizando que o Brasil tinha um exército do SUS indo de casa em casa, que eram os agentes comunitários. Eles falavam que se fosse feito o treinamento adequado e dessem condições para esses trabalhadores, com EPIs e tudo, eles poderiam agir para salvar vidas. Mas o que vemos é um desmonte, e as pessoas que tomam essas decisões não sabem qual é a realidade do cidadão”, afirma a agente.
Sem respostas
Procurado pelo Plural, o Ministério da Saúde não se pronunciou sobre a queda nos repasses para equipes da Estratégia de Saúde da Família.
Apesar de os repasses do Ministério da Saúde serem fundamentais para a gestão da Atenção Primária, o médico Rogério Gomes, da UFPR, relembra que as cidades também têm responsabilidade pela implementação e manutenção dos programas da área.
“Os municípios, de fato, devem fazer sua parte, garantir financiamento adequado para seu sistema de saúde. Principalmente municípios com orçamento significativo, como Curitiba. No âmbito da Atenção Primária, Curitiba poderia ter equipes de Estratégia da Saúde da Família implantadas no município inteiro, mas, para isso, teria de construir mecanismos eficientes, expandir formas de contratação por vinculo público, garantir financiamento adequado”, declarou.
Hoje, Curitiba tem 111 Unidades de Saúde, das quais 64 (58%) atuam com Saúde da Família. A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) não respondeu, no entanto, qual o total destas unidades em 2014 e 2017, a título de comparação.
Em nota, a pasta se limitou a dizer que, desde o início da pandemia, foram afastados cerca de 1 mil servidores da Saúde que fazem parte dos grupos de risco para contaminação pelo coronavírus e que isso acabou comprometendo a composição das equipes. Por isso, afirmou ser “inviável, neste momento, fazer a comparação com anos anteriores” e acrescentou que “nenhum cidadão teve o atendimento prejudicado nesse período”.
A comparação feita pelo Plural, no entanto, leva em conta dados sobre a Saúde da Família em Curitiba anteriores à pandemia.