Como a educação pode combater os fantasmas do nazismo?

Em menos de um mês, duas denúncias de práticas nazistas no Paraná tiveram repercussão nacional

“Ainda hoje há pessoas sem a menor ideia do que foi o Holocausto e o nacional-socialismo”, afirma Juliane Wetzel, do Centro para Pesquisa Antissemita da Universidade Tecnológica de Berlim, na Alemanha. Em entrevista concedida ao Plural na esteira de denúncias recentes de casos de nazismo no Paraná, a historiadora relacionou o aumento de distorções sobre o regime de terror comandado pelos nazistas no século passado ao avanço dos movimentos de extrema direita, mais nítido nos últimos anos.

Ela e outros especialistas ouvidos pela reportagem defendem: educação jamais deve dar espaço à relativização de fatos cujas consequências ainda seguem vivas na sociedade.

Nazismo

A discussão cresce sob o impacto de denúncias recentes reverberadas em mídia nacional. No início desta semana, uma professora de Ponta Grossa (PR), na região dos Campos Gerais, foi demitida por fazer saudação nazista dentro da sala de aula e em meio a dezenas de alunos adolescentes.

O desligamento de Josete Biral foi comunicado pelo Colégio Sagrada Família após um vídeo da cena viralizar. Ao jornal “Folha de S. Paulo”, o advogado da docente, Alexandre Jorge, negou a prática do gesto e se referiu ao movimento como uma saudação à bandeira e à pátria durante “momento de descontração”.

Práticas nazistas

O Ministério Público (MPPR) recebeu pedido de providências para averiguar o episódio. A investigação, sob sigilo por envolver adolescentes, se somará a outro inquérito que apura denúncias de práticas nazistas em andamento no órgão, também em Ponta Grossa.

Nesse segundo inquérito, os trabalhos da Promotoria local miram numa suposta troca de mensagens de conteúdo criminoso entre alunos do curso de Agronomia da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

A denúncia envolve conteúdos nazistas e também racistas e homofóbicos. A reitoria da instituição confirmou uma apuração interna e o consequente afastamento dos envolvidos, embora representantes acadêmicos venham se manifestando pela expulsão dos estudantes, assim como medida inédita adotada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Negação

Em julho, a instituição gaúcha decidiu pelo desligamento de um doutorando em Filosofia que assumiu à Polícia Civil a autoria de mensagens contra o namoro de uma mulher branca e um homem negro e de outras negando a existência do Holocausto, ainda que, conforme o ex-aluno, não tenha havido crime.  

Estudantes são afastados após denúncia de racismo na UEPG. Foto: UEPG/ Reprodução

Responsabilidade

O ambiente escolar e universitário como denominador comum dos episódios não significa uma condescendência da Educação ao revisionismo e ao negacionismo histórico. No Brasil, a abordagem sobre movimentos totalitários está ancorada na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que determina, ainda no Ensino Fundamental, a discussão sobre a ascensão do totalitarismo e o posterior processo de afirmação dos direitos fundamentais e de defesa da dignidade humana violados por movimentos como o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália.

Subestimar os fatos, portanto, não é conteúdo de sala de aula. Mas o que os episódios nos dizem, apontam os especialistas, é que é preciso dar mais atenção ao passado como ferramenta de reflexão crítica ao presente.

Pandemia

“Nós vimos como a própria pandemia afetou a história do Holocausto, por exemplo, e é de certa forma inacreditável ver o que algumas pessoas têm em mente ao se comparar com outras que resistiram a um regime de terror”, diz Wetzel, referindo-se a europeus que usaram a estrela de Davi em movimentos contra a vacina da covid-19.

A estrela amarela é um símbolo do Holocausto. Era usada por judeus como elemento discriminatório a mando dos nazistas e, no ano passado, foi empregada em manifestações antivacina em metáfora deturpada de “liberdade” contra passaporte sanitário. “É tão importante que mais jovens conheçam mais sobre o Holocausto, o nacional socialismo [ideologia do nazismo] e seu contexto. E quando eu digo isso, não significa apenas ir a Auschwitz ou a outros memoriais, mas realmente se aprofundar sobre que foi essa parte da história. Isso não tem nada ver com culpar os mais novos pelo que aconteceu. ‘Ah, eu não tenho culpa porque eu não vivia lá na época!’. Essa não é a questão. A questão é entender a história e ter responsabilidade. É disso que precisamos”, diz a professora Juliane Wetzel, da Universidade Tecnológica de Berlim.

Para refletir

Apesar das sequelas gritantes, o debate sobre o nazismo, seu contexto e suas consequências nas matrizes curriculares da educação básica alemã ganhou profundidade apenas no fim da década de 1970, quando a exibição de uma série produzida nos Estados Unidos suscitou um amplo debate público na então Alemanha Ocidental. “Pela primeira vez os números do massacre geraram um impacto. Era uma novela, não era a realidade, mas trouxe o debate inclusive para dentro do sistema educacional”, diz Wetzel.

Hoje, a abordagem do tema é obrigatória e definida pelos governos de cada um dos 16 estados federados que compõem o país. Imprescindível, na avaliação de Wetzel, mas uma medida que não se esgota em si. “Nós não podemos concentrar tudo sobre os ombros dos professores porque essa é uma questão de toda a sociedade”, diz.  

No presente

Uma questão que, como um espelho, também reflete muito sobre o presente, afirma a historiadora Anna Viana, uma das coordenadoras do Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (Nepat). Para ela, o nazismo tem de ser superado como um conteúdo datado em sala de aula, já que uma série de questões intrínsecas à ideologia do movimento seguem em movimento e sob alerta.

“A gente tem visto uma série de violência contra outros setores da população não contempladas dentro dessa ideologia, necessariamente, o que também é um absurdo. Um passado traumático com o qual nos relacionamos mais do que Holocausto é pensarmos, por exemplo, na escravidão, na questão do racismo que tem que ser analisada com muito cuidado porque também estamos falando de violência contra uma parte da população”.

Mensagens

Michel Ehrlich, coordenador do departamento de História do Museu do Holocausto de Curitiba, observa que o desafio da convergência entre nazismo e educação hoje não está em quantificar o ensino – dar mais espaço em grades, por exemplo –, mas pensar em como transmitir as mensagens que vertem do conteúdo, incluindo a percepção da gravidade de gestos e declarações como as que ganharam repercussão no Brasil nos últimos meses.

Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), o especialista defende como questão primordial para o ensino do nazismo e do Holocausto dentro das escolas a ênfase na correlação entre o regime e cidadãos comuns, algo que a percepção geral, baseada na teoria da história dos grandes homens, tende a encolher diante da figura monopolizadora de Adolf Hitler.

Engajamento

“Quando a gente narra o nazismo e os crimes nazistas pela perspectiva de que Adolf Hitler fez A, B e C em 1945, para muita gente isso fica no passado porque não estamos mais em 1945 e Hitler está morto. Mas ocorre que o nazismo e seus crimes não partiram da cabeça de meia dúzia que saíram depois executando. Essa execução só foi possível porque houve todo um processo de engajamento das pessoas comuns”, explica. “E quando a gente percebe que tais crimes envolveram amplo setor da sociedade, essa é a compreensão da história que, em termos educativos, vale ter seu aspecto reforçado”.

Museu do Holocausto de Curitiba

Essa é assimilação primordial proposta pela política pedagógica do Museu do Holocausto de Curitiba, cujos acervo e materiais disponíveis se tornaram uma referência para a elaboração de planos de aula sobre a consolidação dos estados totalitários de acordo com as demandas da BNCC. Inaugurado em 2011, o espaço tem em mais de 80% de seus visitantes físicos alunos de escolas públicas e particulares.

“Para os alunos da professora que realizou uma saudação nazista talvez não sirva muito saber todos os detalhes da vida de Adolf Hitler. O mais interessante é expor as experiências na sociedade da época, como a propaganda nazista, a juventude hitlerista, a forma como o nazismo envolveu a sociedade para justificar seus crimes, e mostrar que talvez nossa sociedade não esteja tão distante assim desses fatos”, diz Michel Ehrlich.

Nazismo no Paraná

Para Anna Viana, do Nepat, episódios como os registrados no Paraná no último mês também não podem ser tratados de maneira isolada, tampouco menosprezados. O acúmulo de denúncias, analisa a historiadora, é mais uma chance de dar à discussão a importância que ela merece.

“Nós temos que pensar na história, sobretudo quando falamos de nazismo, de Holocausto, das vítimas, como uma ferramenta para compreender o mundo. Se hoje temos manifestações em muitos lugares de pessoas apoiando esse tipo de ideologia, por definição, genocida, é importantíssimo dar ainda mais atenção especial a esse passado e como ele pode nos ajudar a refletir criticamente o nosso presente”, diz Anna Viana.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Como a educação pode combater os fantasmas do nazismo?”

  1. Bom dia !
    Parabéns Angieli, pelo excelente texto, muito bem construído, explicado, elucidativo, um show de reflexões, de verdades tão necessárias hoje e sempre !
    Adorei a Plural e acompanharei mais seus conteúdos, colaboradores e duas publicações, parabenizando-os também pela publicação da autora, Nobel de Literatura deste ano. Formidável !
    Obrigado e sucesso a todos !

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