Indígenas viram “pardos” nas cadeias do Paraná e se tornam invisíveis

Quando presos, indígenas são privados de direitos básicos e, não identificados, desaparecem no sistema carcerário do país

Sem notícias de Pedro* há dois anos, a família acreditava que ele estava desaparecido. Foi só em julho de 2021 que os parentes descobriram que o rapaz, Kaingang de Rio das Cobras, terra indígena no norte do Paraná, estava preso na 16ª Delegacia Regional de Altônia, sentenciado a 12 anos de reclusão.

Pedro foi condenado por estupro de vulnerável e atravessou todo o processo criminal sem entender uma palavra do português. Na ausência de um intérprete de seu idioma nativo, não conseguia se comunicar nem com o próprio advogado, que já era o segundo designado pelo Estado. O primeiro não chegou nem a conhecer o acusado.

Apesar de identificado como indígena no mandado de prisão, nos documentos consecutivos a identidade do jovem passou a ser classificada como “parda”.

Em 2020, dois anos depois da prisão de Pedro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública lançou a Nota Técnica nº 77 com o objetivo de mapear o número de indígenas presos no Brasil. Eram 1.325 homens e 65 mulheres, sendo que, deste universo, apenas 672 seriam autodeclarados. Na nota, o Paraná aparece com zero indígenas encarcerados. Ou seja, ainda que Pedro fosse o único indígena preso no estado, o que é improvável, ele não constava nos dados oficiais.

Indígenas

A descaracterização étnica de Pedro e seu subsequente desaparecimento dos dados oficiais fazem parte de um sistema de invisibilização e violação de direitos dos povos originários dentro do sistema carcerário não só do Paraná, mas no Brasil inteiro, apontam especialistas.

“Há sempre muita tentativa de deslegitimar a etnicidade indígena dentro do sistema penal. É um apagamento étnico e cultural. E essas pessoas acabam desaparecendo entre a população carcerária”, afirma Felipe Kamaroski, antropólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do caso de Pedro.

Identidades invisibilizadas e ausência de direitos

Para Kamaroski, que também atua como perito de laudos antropológicos para a Justiça, entre os principais problemas identificados pelos indígenas submetidos ao estado estão a não identificação, a falta de intérpretes e a incompreensão das especificidades culturais.

Tudo isso, segundo o pesquisador, acarreta em uma subnotificação de casos de indígenas encarcerados, que, por sua vez, mascara a real dimensão do cenário. Na prática, os dados oficiais não conseguem retratar a realidade com precisão pois, como no caso de Pedro, muitos estados não seguem o critério da autodeclaração de forma adequada no decorrer do processo.

“Hoje é impossível precisar esses números com exatidão. Existem diversas problemáticas, como os indígenas que vivem em contexto urbano e a própria autoidentificação. Muitas vezes, os indígenas nem querem se autoidentificar por medo de retaliação ou esse recurso é negado a eles”, diz.

Pardismo

Outro aspecto da identificação dos indígenas é que, geralmente, quando não há esse registro, eles são alocados sob a categoria “pardo”, assim como o caso de Pedro. “Isso que Airton Krenak vai chamar de ‘pardismo’, essa invenção colonial. São as pessoas deixando de ser indígenas, de ser negras, para se tornar pardas. Tudo em nome do embranquecimento da população. Mas esse discurso tem consequências.”

Atualmente, a maior parte da população encarcerada no Brasil é parda. São 289.616 do total de 670.714 presos, o que corresponde a 50%. Enquanto aqueles identificados como indígenas somam 1.313 (1.209 homens e 104 mulheres), representando 0,23% de toda população encarcerada. Os dados são de julho a dezembro de 2021 e estão disponíveis no site do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

No Paraná, segundo o sistema do Depen, são 32.657 pessoas presas, das quais apenas 14 são identificadas como indígenas (12 homens e duas mulheres), o que representa 0,06% da população encarcerada no estado. Já pessoas pardas são 7.950 (36,18%). 

Atualmente, de acordo com a assessoria do Depen/PR, o estado registra 21 pessoas que se autodeclararam indígenas sob custódia em todas as regionais, sendo 20 homens e uma mulher, com idades entre 20 e 69 anos.

Disparidade

A partir da experiência como perito, Kamaroski afirma, no entanto, que, “com certeza são mais de cem [indígenas presos] no Paraná”, estado que conta com 26.559 pessoas indígenas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Conforme a coordenadora do Núcleo de Política Criminal e Execução Penal da Defensoria Pública do Paraná (DPE-PR), Andreza Lima de Menezes, enquanto o Depen fala em 21 indígenas cumprindo pena privativa de liberdade, o Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU), do Judiciário, por exemplo, registra 57. 

“Pelo sistema podemos extrair um relatório dessas pessoas e fazer buscas por etnia. Estão cadastrados todos os povos reconhecidos do Brasil. Só que o problema é que a gente quase não encontra indígena porque o preenchimento disso depende do servidor do judiciário.”

Assim como Kamaroski, Menezes, que faz inspeções presenciais nas unidades prisionais do estado, acredita que o número seja ainda maior. “O sistema diz que não há nenhum indígena da etnia Guarani preso no Paraná, mas nós encontramos, sim. Muito provavelmente essa pergunta sobre a etnia não é feita, mas ela é essencial para sabermos se a pessoa pode ou não ser punida de acordo com os costumes dela”, diz. 

Florencio Rékayg Fernandes, indígena Kaingang de Rio das Cobras, doutorando em Antropologia pela UFPR e intérprete vinculado ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), conta que ainda há muito que fazer para que os indígenas tenham um tratamento adequado no sistema de carceragem. “A falta de comunicação e contato com a família é um dos crimes mais graves que os indígenas têm que enfrentar. Falta equipe para fazer uma análise dos processos, provavelmente nenhum deles teve acompanhamento de um laudo antropológico nem acesso a um tradutor. Fica essa lacuna de falta de atendimento.”

Sistema de encarceramento ignora dados e dificulta compreensão sobre prisões de indígenas no país Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Falta de dados e transparência

A discrepância entre os dados computados pelas entidades governamentais e a falta de transparência fez com que o Instituto das Irmãs da Santa Cruz (IISC), em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), realizasse um levantamento anual das prisões de pessoas indígenas em todos os estados brasileiros.

O objetivo do mapeamento é contribuir para o encontro de medidas desencarceradoras e para um sistema de justiça criminal que leve em consideração os métodos próprios de resolução de conflito dos povos originários.

O último estudo, abordado no relatório “Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil“, mostrou que, em setembro de 2021, o Brasil tinha 1.038 pessoas indígenas presas (968 homens e 70 mulheres). O Acre foi o único estado que não respondeu à solicitação de dados feita via Lei de Acesso à Informação (LAI). Outros dois (Minas Gerais e Pernambuco) não informaram o quantitativo de pessoas indígenas presas ou informaram não ser possível extrair esse dado de seus sistemas. Amapá, Piauí, Rio de Janeiro e Sergipe apresentaram dados zerados.

No Paraná, constavam 14 pessoas presas, 13 homens e uma mulher, mas sem dados sobre o povo pertencente e a língua falada por cada um.

“A gente sempre teve essa curiosidade de entender se dentro do sistema prisional brasileiro, nesse contexto de encarceramento em massa, os indígenas estão tendo seus direitos respeitados ou não”, diz Viviane Balbuglio, consultora jurídica do Programa de Assessoramento, Defesa e Garantia de Direitos (ADD) do IISC.

Para Balbuglio, o trabalho feito pelas organizações desde 2016 é importante para entender a evolução da política de identificação das pessoas indígenas realizada em cada estado, se há uma padronização dos dados e como essas informações são coletadas. “É preciso pensar por que as pessoas indígenas estão sendo presas hoje e por que o judiciário escolhe manter essa pessoas presas. Temos que pensar outros tipos de processo de responsabilização porque a prisão deveria ser a última medida para a pessoa indígena.”

Segundo Caroline Hilgert, advogada e assessora jurídica do Cimi, o levantamento demonstrou que em locais de maiores conflitos, como em fronteiras (Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Roraima, por exemplo) existe uma alta notificação de prisões indígenas, ao contrário de outros estados em que, via de regra, o que se constata é um número subdimensionado. “Em lugares de maior mobilidade urbana, a identidade indígena tende a ser mais invisibilizada. Quando um indígena é preso na cidade, ninguém o considera indígena, ou não sabem que ele é.”

Hilgert cita o massacre de 56 pessoas na rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, em 2017, quando o Ministério Público identificou que dentre os mortos cinco eram indígenas. “Esse é o tipo de informação que poderia ter salvado vidas, porque às vezes esses indígenas nem deveriam estar presos ou deveriam estar em outro regime (como o de semiliberdade), ter outro tipo de tratamento. Esse é o tamanho da importância de uma informação como essa.” 

O Plural entrou em contato com a Fundação Nacional do Índio (Funai), mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

*A fim de evitar retaliações e preservar a identidade dos indígenas, foram utilizados pseudônimos ao longo da reportagem. 

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