Ninguém será como era antes: a saúde mental no retorno à “vida normal”

Há quem esteja ansioso pelas festas, mas os especialistas são menos otimistas: ainda há muito desconforto pela frente

Quando foi entrevistado pelo El País, em sua confortável casa em Bordeaux, na França, o neuropsiquiatra Boris Cyrulnik entregou previsões preocupantes sobre o futuro de quem sobreviveu à pandemia. Para ele e outras pessoas abastadas, o período de isolamento foi agradável, mas aos 84 anos, o estudioso tem noção de que seus privilégios não representam a totalidade da população mundial.

“Tenho vergonha de ter sido feliz quando muitos eram infelizes”, ele disse em sua conversa com o repórter Marc Bassets. “Em um país em paz, 12% dos adolescentes ficam deprimidos. Em um país depois da Covid, segundo uma avaliação, são 39%. Aqueles que pagaram mais caro o preço da Covid são adolescentes. Alguns não recuperarão o que perderam, para outros lhes custará.”

De acordo com o especialista, a realidade é que diante das telas, o cérebro dos adolescentes, que está aprendendo a aprender, fica entorpecido. É por isso que, em sua avaliação, quando adultas, essas pessoas estarão fadadas à depressão crônica. “Terão pequenos ofícios que não os interessarão. Aprenderão que a sociedade se encarregará deles. Perderam um período sensível do seu desenvolvimento. Para se reconectar, terão de trabalhar dez vezes mais.”

Matheus Vieira, professor do curso de psicologia da Universidade Tuiuti do Paraná, corrobora as impressões do francês. “Estamos vivendo um período de transição, então não existem estudos sobre o pós-pandemia, apenas previsões, mas faz muito sentido o que ele diz”, resume. Para o psicólogo, é inegável o quanto o isolamento resultou em ansiedade e fixação pelas telas, não somente para os mais jovens.

Maria Virgínia Filomena Cremasco, professora do departamento de psicologia da Universidade Federal do Paraná, menciona um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul publicado no ano passado. Ele aponta que 80% da população brasileira apresentou sintomas de ansiedade depois do início da pandemia. “Há um consenso de que as pessoas foram afetadas em termos de ansiedade em algum nível, com aumento significativo de quadros depressivos.”

“A gente só sabe se tem recursos psíquicos para enfrentar algo grave quando alguma coisa grave de fato acontece”, explica a professora. “Com a retomada à presencialidade, quem se descobriu sem recurso para lidar com a gravidade da pandemia, da perda, da doença ou das sequelas, está se perguntando como vai ser voltar a interagir com as pessoas, porque a alteridade é convocada de modo muito mais radical na presença. É claro que existe alteridade na virtualidade, mas ela também permite fechar a câmera.”

Efeito rebote

Para algumas pessoas, o isolamento nunca foi uma realidade. Para outras, houve confinamento com mais ou menos recursos. Na clínica, Matheus atende muita gente que faz parte desse segundo grupo e vem notando o que chama de “efeito rebote do isolamento”.

“No começo da pandemia, as pessoas tinham que ficar isoladas mas não queriam. Elas não estavam acostumadas com isso. Hoje essas pessoas têm a possibilidade de ir a um barzinho ou uma baladinha, e diferente de outros tempos, quando ficavam até mais tarde e bebiam muito, agora estão se estranhando. Esse comportamento é mais forte entre os jovens adultos, entre 20 e 30 anos. De alguma forma, eles aprenderam a se sentir mais seguros em casa”, conta.

Também existem aqueles empenhados em recuperar o “tempo perdido”, nas palavras de Matheus. “Eles vão beber, vão usar drogas e vão fazer festa, mas diferente do passado, quando chegavam na sessão, na segunda-feira, dizendo que o fim de semana foi legal, agora bate uma ressaca moral do tipo: por que que eu fiz isso? Faz sentido?”

Por essas e outras, Maria pontua: não vamos encontrar ninguém como era antes. “Ter passado por tudo o que a pandemia nos impôs, com o número de mortes que tivemos no Brasil, e estar bem seria muito fora da realidade. Eu acho que é humano estar voltando receoso.”

Para a psicóloga, a negação não é saudável. A verdade é que ainda vamos precisar lidar com os efeitos da crise sanitária por bastante tempo. “Quando a gente fala em recuperação, parece que vamos voltar ao que era antes. Eu não acredito nisso. Mas para voltar a estar confortável, sentir bem estar de novo, o panorama socioeconômico-cultural precisa melhorar”, assegura. “Em termos de educação, alguns falam de um impacto de dez anos. Pra economia, a gente não tem uma previsão de melhora para os próximos dois anos…”

Depois de tamanho caos, o nosso psiquismo segue conectado a uma realidade pouco romântica. “Tem gente em luto, tem gente que perdeu a casa, tem gente que perdeu o emprego… Coletivamente, estamos inseguros – e as pessoas são acolhidas de formas diferentes de acordo com os privilégios de classe. Infelizmente, a população vulnerabilizada, como sempre, vai sofrer muito mais”, diz. “Então, sim, o que se espera do retorno à presencialidade é estarmos abalados emocionalmente, o que me parece bastante adequado.”

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