Multar a quem alimenta pobres vira desastre diplomático para Greca

A proposta prevê multa para quem distribuir alimentos à população em situação de rua sem autorização

Colaborou Rafaela Moura

Um projeto relacionado à população de rua se transformou num desastre diplomático para o prefeito de Curitiba, Rafael Greca (DEM). Ao tentar aprovar uma multa para quem dá comida aos necessitados fora dos parâmetros da burocracia municipal, Greca desagradou esquerda e direita, comprou briga com parte de sua própria base na Câmara, levou uma invertida de associações de direitos humanos e foi parar como destaque negativo na mídia nacional. Acabou tendo de recuar e tirar a urgência do projeto.

O Projeto de Lei 005.00103/2021, enviado à Câmara na última terça-feira (30), regulamenta a distribuição de alimentos para a população em situação de vulnerabilidade e risco social. A proposta integra o Programa Mesa Solidária e prevê multa de R$ 150 a R$ 500 para quem “distribuir alimentos em desacordo com os horários, datas e locais autorizados pelo Município de Curitiba”. De acordo com o líder do governo na Câmara, Pier Petruzziello (PTB), o regime emergencial foi suprimido porque “polemizaram de forma desnecessária”. 

O objetivo do PL, segundo a prefeitura, seria organizar o serviço. Na justificativa, Greca alega que a distribuição feita “por instituições de caridade diretamente em logradouros públicos do Município, com ausência de parâmetros organizacionais,” tem resultado em desperdício ou escassez de alimentos e acúmulo de resíduos orgânicos e rejeitos nas vias públicas. 

Em carta assinada por 56 entidades, o Movimento Nacional da População de Rua – MNPR e o Instituto Nacional de Direitos Humanos da População de Rua — INRua criticam a atuação da prefeitura no atendimento às pessoas em vulnerabilidade social durante a pandemia. Desde março de 2020, as organizações da sociedade civil estiveram em contato com o governo municipal, colocando as reivindicações dessa população frente aos desafios gerados pela Covid-19 e a auxiliando diretamente com alimentação, roupas, cobertores e itens de prevenção à contaminação pelo coronavírus, como máscara e álcool em gel.

Dentre as solicitações do movimento, estavam a abertura dos restaurantes populares para oferta de alimentação gratuita para a população em situação de rua, a abertura dos banheiros públicos existentes na cidade, oferta de água potável em pontos estratégicos e ampliação de vagas para possibilitar a condição de resguardo e quarentena ao maior número de pessoas possível. Nenhuma foi atendida. 

“Em meio à crise generalizada e o aumento grotesco da demanda, em virtude do fato de cada vez mais pessoas procurarem os mesmos serviços destinados à população em situação de rua, a crise se estabeleceu em definitivo. As filas aumentam cada vez mais, as organizações e movimentos sociais não dão conta dessa demanda, muito menos a prefeitura municipal. […] Em meio a tantos problemas, tantas demandas não cumpridas, tantas possibilidades efetivas de resolver de forma eficaz o problema, a atitude é esta: proibir e penalizar quem faz”, diz um trecho da carta.

Foram dois sustos. Os movimentos sociais se surpreenderam de um lado, com a proposta repentina e em caráter de urgência, e o governo, do outro, com a resposta da sociedade organizada. “A gente achou que seria uma coisa simples, porque era só para regulamentar. Virou uma polêmica total, aí a gente tirou”, diz Petruzziello. Uma nova proposta, chamada de “Rede de Proteção Social e Familiar”, será criada e deve “englobar vários outros partners não previstos no projeto”.

Tomás Melo, antropólogo e integrante do INRua, entende a iniciativa da prefeitura como um escárnio, diante da “situação aterrorizadora e brutal vivenciada pela população em situação de rua”. “Por que não gasta seu tempo produzindo um programa municipal que tenha como objetivo produzir estratégias eficazes para superação da situação de rua, com previsão orçamentária, cronograma de aplicação, objetivos em médio e longo prazo para resolver permanentemente a questão? Por que a Prefeitura não gasta um tempo para se informar e se alinhar aos esforços internacionais que têm demonstrado eficiência e assim produzir políticas públicas baseadas em evidência e não em achismo e preconceito?”, questiona o antropólogo nas redes sociais.

Para o deputado estadual Goura (PDT), signatário da carta, “o projeto tem suas virtudes, a ideia de regulamentar, mas propõe de forma autoritária uma punição para as pessoas que buscam fazer um ato de solidariedade”. 

Invisibilização e criminalização da miséria

A real intenção do governo municipal, de acordo com a presidente do Projeto Mãos Invisíveis, Vanessa Lima, não é a organização. O PL seria uma forma de mascarar a realidade do crescente número de pessoas que vivem nas ruas ou que, mesmo tendo casa, não têm condições de se alimentar: “É como se fosse colocar um band-aid em uma ferida que está muito aberta e é muito grande. O prefeito sempre disse que não gosta das pessoas comendo na rua, porque escancara o número de pessoas que estão ali comendo nas calçadas, as famílias que comem junto com a população em situação de rua, porque não tem como manter um gás de cozinha, uma lenha e não têm o que fazer com a cesta básica”. Colocar as pessoas para comer em lugares fechados, escondidos, é torná-las invisíveis. 

Em defesa, a base de Greca alega que a função do ente público é cuidar da população, mantendo a ordem. A linha que divide o cuidado do controle, no entanto, é tênue, e o time do prefeito dá indícios de tê-la atravessado. “Polemizaram de bobagem. É só para a gente ter a vigilância sanitária por perto, saber o que o morador de rua está comendo, ficar longe do tráfico e não vender a marmita que ele ganha. Porque é isso que está acontecendo. Os caras estão morrendo de fome, pegam a comida, vendem e compram droga” diz Petruzziello. 

A vereadora Carol Dartora (PT) considera a fala preconceituosa. “O vereador precisa conhecer a realidade e as necessidades das pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social. Tem mulher com crianças, mulher grávida, pessoas desempregadas. Eu vi com meus olhos. Acho que ele precisa participar de uma ação dos movimentos que ajudam essas pessoas, para desconstruir essa fala preconceituosa, essa criminalização da fome e da miséria. Se a pessoa diz que está com fome e entra na fila da marmita, eu não tenho direito de julgá-la, mas tenho o dever de dar assistência e ajudá-la a matar a fome. Então, esse discurso é, mais uma vez, a criminalização da miséria”, afirma a vereadora.

Demanda social por alimentos aumenta na pandemia. Foto: Projeto Mãos Invisíveis

Para Lima a ideia de vender uma marmita fria, de comida de ONG, para comprar drogas é absurda. Ainda que fosse verdade, que grau de controle pelo estado é aceitável? “A gente tem essa visão de ter que controlar as pessoas em situação de rua, enquanto o domiciliado faz o que quer, como quer, na hora que quer. Se quiser se encher de uísque dentro de casa, ele pode. Mas uma pessoa na rua, fazendo qualquer coisa que fuja desse princípio de que eles têm que ser ordeiros e ordenados, comer direito etc, é julgada de forma incisiva”, diz Lima, que todo domingo leva café da manhã para 400 pessoas na Praça Generoso Marques e entrega, semanalmente, cerca de 400  marmitas nos bairros Parolin e Boqueirão. 

A solução é moradia 

A melhor forma de lidar com a questão, de acordo com Vanessa, é tratar a superação da situação de rua de forma mais abrangente e profunda: “Esse sistema [de albergagem] não deu certo, fracassou, é ineficaz e não contempla a crescente população. A gente vê isso diariamente no aumento das filas, da população em situação de rua, das pessoas inscritas no Cadastro Único, de pessoas que buscam pelos equipamentos da prefeitura e não são contempladas de maneira nenhuma”.

Já existe proposta nesse sentido. A Lei 14.700 autoriza o Município a criar o Programa Aluguel Social (PAS), que poderia, de imediato, oferecer moradia para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Embora aprovada desde 2015, a lei nunca recebeu atenção da prefeitura. Para Dartora, a superação da situação de rua começa com o diálogo entre o executivo e os movimentos que lidam diretamente com a questão há anos. É preciso ampliar a política para além da propaganda. “O prefeito precisa assumir a sua responsabilidade, promover a soberania alimentar e o combate à fome. Fazer isso de forma efetiva, ao invés de atrapalhar o trabalho realizado pelas organizações sociais. Outra demanda importante é o censo da população de rua. Curitiba nem sabe o número real de pessoas que estão nesta condição. Isso é uma vergonha. Mas a gente sabe que isso faz parte de uma estratégia para invisibilizar o problema e tentar não ser cobrado”, afirma a vereadora.

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2 comentários em “Multar a quem alimenta pobres vira desastre diplomático para Greca”

  1. Com todo respeito consegui compreender o pensamento do Projeto. Se for isto, é claro! Doar comida não é o problema. O problema é doar a comida e a pessoa sofre uma intoxicação alimentar e precisar de um leito, como também irá precisar caso não se alimente. A ideia de se cadastrar para doar alimentos é para prevenir possível intoxicação, pois, assim, a prefeitura teria como fiscalizar o local onde os alimentos são preparados. Pelo que entendi do projeto seria neste sentido, porém, posso estar errado. matéria muito boa de qualquer forma. Obrigado.

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