Mulheres da vila transformam a vida

Diferentes cidadãs unidas por um mesmo propósito: garantir direitos e resistir à opressão e à violência em suas comunidades

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. Jessica Brasil Skroch é formada pela UFPR

A mulher da vila é uma transformadora. Ela é militante, ativista. Ela é protagonista, líder. Ela é sujeito político. Ela é uma mulher pública que preza pelas condições de vida da esfera privada. Ela é da casa, ela é da rua, ela é o do mundo. A mulher da vila é singular, mas plural e coletiva. A mulher da vila é mãe e pai de todos. A mulher da vila é principalmente liderança comunitária, ainda que ela possa não se sentir muito legítima de ocupar esse lugar de poder. A mulher da vila é, ainda que a sua visibilidade se limite ao espaço onde atua.

Esse projeto trata de mulheres que têm uma história pessoal marcada pela luta social e política em suas vilas na capital paranaense, desempenhada através de variadas ações em busca da defesa e da garantia de direitos, além do combate e da resistência às mais diversas expressões da opressão e da violência. Participando de instâncias do controle social e de movimentos comunitários, seja através de associações, grupos ou organizações não-governamentais, elas trabalham numa perspectiva horizontal a fim de promover a qualidade de vida urbana.

A mulher da vila é uma mulher que luta pela vida

As mulheres que têm as suas trajetórias apresentadas por esse projeto não são apenas moradoras de espaços populares, comunidades vulneráveis que são chamadas de “vilas” na cidade de Curitiba. Elas têm um propósito de vida intenso, constante e incansável de luta para resolver os problemas dos lugares em que nasceram ou viveram. Quem são as mulheres da vila se confunde com quem são os outros e com o que é esse território da favela, da vila, desses lugares onde toda a gente pobre resiste para garantir a própria existência. Elas reclamam por aquilo que é de direito e suas conquistas são reconhecidas por aqueles que estão a sua volta. A mulher da vila luta pelas crianças, pelas mulheres, pelos idosos, pelos homens da sua comunidade. Ela defende as demandas pela educação, pela saúde, pelo lazer, pela moradia, pela segurança, pela assistência social, pela infraestrutura. Ela briga pela creche, pelo acesso ao Bolsa Família, pela educação de crianças. jovens e adultos, pela capacitação de mulheres para a geração de renda, pela cultura.

Mulher e poder são categorias que juntas desagradam a ordem social, a forma como as coisas costumam funcionar na sociedade. Esse site fala não somente de mulheres no poder, mas de uma variedade de subversões de padrões que com certeza incomodam as estruturas sociais, econômicas e principalmente políticas. Vileiras, pobres, em grande parte negras, são mulheres que têm o poder de transformar as suas realidades precarizadas e marcadas pela segregação social.

Quem são elas? Quais são seus nomes, suas trajetórias de vida? O que as motiva lutar, quais são as suas estratégias? De que forma elas se relacionam com o poder público e impactam a sua comunidade?

A mulher da vila é uma mulher de favela

Toda moradora e todo morador da vila conhece a mulher que por lá atua. Seja porque já participou de suas atividades, porque seus filhos frequentam seus eventos, porque aquele problema de infraestrutura foi resolvido pela liderança dela. Todo mundo conhece a mulher de vila porque ela faz diferença naquele lugar. Mas ela não possui visibilidade ou reconhecimento social por parte do Estado, muito menos da sociedade em geral. Ainda que exerçam um impacto relevante em suas comunidades, elas permanecem muitas vezes como figuras anônimas.

Nilza Rogéria Nunes, docente do curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tem o objetivo de ecoar essas vozes. Tanto em seu mestrado, como em seu doutorado, sistematizado no livro “Mulher de favela: o poder feminino em territórios populares” (Editora Gramma, 2018), e ainda nos seus projetos atuais de pesquisa, Nilza tem como objeto central o sujeito político da “mulher de favela”, aqui curitibanamente chamada de mulher da vila.

Um ícone simbólico dessa mulher que vem da favela e faz luta social e política é Marielle Franco. Muitas dessas mulheres não chegam à política partidária, mas todas elas têm em comum a mesma militância local pela garantia de direitos. Marielle fez parte das muitas mulheres brasileiras que poderíamos chamar de “mulher de favela”, um constructo teórico elaborado pela pesquisa de Nilza.

Motivações

Segundo a pesquisadora, as mulheres de favela intensificam sua atuação a partir dos anos 1990, num processo chamado de “feminização do poder”. Muitas delas foram influenciadas por um processo de formação da igreja católica, como nos movimentos eclesiais de base e movimentos locais de pastoral. Atualmente, as suas motivações para a atuação são múltiplas: podem ter uma motivação pessoal, através de uma mobilização espontânea. Ainda, algumas se motivam pelas perdas que sofreram, seja de entes queridos para a violência ou perdas materiais, como em enchentes. Há também aquelas que tiveram uma referência familiar que as inspirou a seguir os mesmos passos. Nesse projeto, os perfis das mulheres da vila verificam todas essas formas de motivação.

Existe também a motivação mais urgente que está por trás de todas essas e que é comentada por todas as mulheres que conhecem ou atuaram junto às mulheres de favela: a necessidade. Michele Bravos, diretora-executiva do Instituto Aurora, organização do Terceiro Setor de Curitiba que realiza ações de educação em direitos humanos, vê que a força dessas líderes é “proveniente do descaso social que percebem sobre suas comunidades. São mulheres que possuem uma grande autonomia e que perceberam que alguém precisava encabeçar uma luta por garantia de direitos e melhores condições de vida onde moram”.

Giovana Kucaniz, assistente social que trabalha no Ministério Público do Paraná e que já trabalhou na COHAB Curitiba, explica também que são as mulheres que tradicionalmente sentem a necessidade dos filhos de se alimentar, estudar, se capacitar, usar os serviços públicos: “Essa função cultural de cuidar e administrar a casa faz com que elas juntem força do útero mesmo e se mobilizem para fazer essa pressão na rua. Quem vai peitar o gestor público sobre essas questões sempre é a mulher”.

Ao papel tradicional de gênero de “ser mãe” e cuidar, soma-se à situação que a maioria das mulheres em comunidades vulneráveis sustenta suas casas e filhos sozinhas. Em 2015, segundo dados da pesquisa “Mulheres chefes de família no Brasil: avanços e desafios”, 11,6 milhões de famílias no Brasil eram chefiadas por mulheres. Em 2017, 56,9% dos arranjos familiares em que a responsável era a mulher sem cônjuge e com filhos até 14 anos estavam abaixo da linha da pobreza. Quando se fala de mulheres pretas ou pardas, a proporção sobre para 64,4%. Se a mulher tem maior responsabilidade por tudo o que envolve a casa, ela também pode se sentir responsável por essa casa ampliada que é a sua comunidade.

Gessi Borrher no bazar da ONG Missão Acolher na Vila Jardim União, Curitiba

Mas o “cuidar” não é só zelar por algo, “é construir algo novo”, ressalta Jussara da Silva Gouveia, também uma mulher da vila, que já atuou como conselheira tutelar, foi presidente da Associação Estadual dos Conselheiros Tutelares, e que participa de movimentos sociais desde a adolescência. Para ela, o cuidado é menosprezado na sociedade, mas é através dele que acontece a manutenção da vida. Então, não seria o cuidado também político?

Características

Mulheres de favela (ou da vila) possuem características próprias como moradoras que atuam como gestoras ou mediadoras comunitárias. Entre elas, são mulheres que participam de organizações comunitárias e estão territorializadas em espaços populares.

Porém, elas transcendem o espaço onde vivem e atuam, porque “acessam a cidade e retornam para esse lugar com o conhecimento do caminho das pedras da luta social”, explica a pesquisadora. Elas frequentam conselhos, são militantes de fóruns, participam de coletivos e movimentos sociais a fim de trazer as informações de fora para dentro da comunidade, institucionalizando suas ações nas ONGs, associações, entre outras. “Elas não são pessoas que agem para elas próprias. Elas agem para elas, para as suas famílias e para toda a sua comunidade”, coloca Nilza.

Ao contrário do que pode se pensar, são mulheres que vêm acessando a escolaridade. Na pesquisa de Nilza que está em curso e pretende mapear 200 dessas mulheres nas favelas do Rio de Janeiro, até agora foi possível constatar que 40% delas possuem ensino superior. Ou seja, elas sentiram a necessidade de capacitação para qualificar a sua luta: “Elas transformam a assistência em prática política e de defesa de direito. Pode ser que num primeiro momento ela distribua sopa, mas depois ela vai lutar para que essas pessoas consigam o direito ao Bolsa Família”, afirma Nilza. Como Jussara disse, o cuidar não é apenas cuidar, é transformar.

Para a pesquisadora, esse processo de transformar a prática solidária em movimento de resistência social se dá através de uma tomada de consciência política. Sobre isso, Jussara opina: “A consciência comunitária vem da necessidade. É preciso buscar alternativas para o sobreviver, então a gente se organiza”. Além disso, a assistente social ressalta a exaustão de cuidar da casa, dos filhos, e ainda se capacitar para mudar a realidade de sua comunidade. “A mulher tem muita energia para estar disponível para tudo isso”, conclui.

Maurina Carvalho na sua sala no Conselho Tutelar Matriz em Curitiba

A mulher de favela é também coletiva, plural por natureza, explica Nilza. Ela vive pelo coletivo e transita por diversas pautas. Como as demandas da comunidade são muitas e variadas, abrem os braços para todas elas. Educação, cultura, capacitação profissional, saúde, sempre plurais.

Estratégias

Ao conhecer o caminho das pedras, as mulheres da vila vão construindo as melhores estratégias para o seu trabalho. Elas sabem com quem falar para cada demanda que surge. Ela sabe orientar a população, ela sabe denunciar uma situação junto às agências públicas, ela sabe por onde reivindicar. Assim, elas tecem teias a partir das relações com os serviços que correspondem às necessidades que ela procura sanar. Nilza relata que muitas vezes as agências públicas já conhecem seus nomes quando alguma pessoa chega em um serviço e fala “eu vim aqui porque a Lúcia do Alemão me indicou”. A pesquisadora ressalta: “Elas fazem uma diferença substancial no lugar onde vivem, onde as políticas públicas chegam de forma muito precarizada e insuficiente. Elas conseguem fazer uma mobilização pela garantia de direito.”

Riscos

Todo líder está exposto a riscos. Mulheres, mais ainda. Giovana conta que já presenciou a vozes das mulheres líderes em comunidades serem desconsideradas em reuniões, as pautas não sendo levadas a sério e a ideia de que aquela luta é apenas caridade. O machismo impera nesses espaços e dificulta as suas movimentações.

Há o risco de saber da vida dos outros, expondo a si própria e a sua família a represálias de toda ordem. O poder é perigoso. Ainda, poucas são as comunidades vulneráveis que não tenham a liderança de facções criminosas, muitas vezes ligadas ao tráfico de drogas. Como as mulheres da vila dizem, existem coisas que não podem ser faladas, se não o trabalho não vai para frente. A respeito disso, Michele expõe: “Se a liderança comunitária prova que seu exercício traz ganhos para toda a comunidade, incluindo os filhos e filhas dos líderes da facção, percebo que os projetos sociais avançam. Se não há uma concordância, infelizmente, eles são encerrados”.

Mulheres da vila são feministas?

Vera Lúcia Peres em frente à Associação de Moradores da 23 de Agosto, no bairro Ganchinho, periferia de Curitiba

O feminismo não é consenso entre as mulheres de favela, aponta Nilza. Nesse projeto, também não. A pesquisadora explica que, em geral, o feminismo é uma luta muito “fechada” para elas. Elas dizem “feminismo é pouco para mim, eu defendo direitos”, ou seja, o feminismo está numa caixinha muito pequena para elas. Nilza explica que isso acontece porque “elas não se sentem representadas por esse feminismo que conhecem, branco e de classe média”.

Porém, para Nilza, suas lutas revelam um protagonismo feminista, ainda que não militem apenas pelo gênero. Ela sugere que é preciso pensar num jeito popular de se fazer feminismo, que se dá através de outras pautas: a pauta da mulher pobre. E a pauta da mulher pobre é a pauta que envolve uma comunidade inteira.

O cuidado é político

Uma mulher faz muita política dentro de casa. Observa, atenta às necessidades de todas as esferas da vida humana, resolve os problemas, divide as funções, gerencia as crises, organiza o orçamento, cria estratégias, faz até consulta pública. Foi criada assim, para cuidar. Não que isso seja algo que vem de fábrica, de jeito nenhum. Mas a prática, de tanto ser absorvida na marra, leva à perfeição. E a casa da mulher é o mundo.

Nesse projeto, escutamos as trajetórias de luta de Andréia de Lima da Vila do Parolin, Gessi Borrher da Vila Jardim União, Maurina Carvalho da Silva da Vila Torres, Vera Lúcia Soares Peres das Moradias 23 de Agosto, e tantas outras que ainda virão.

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