Falta transparência no socorro às empresas de ônibus de Curitiba

Afirmação é de especialistas e opositores, que apontam relação histórica entre poder público e empresários do setor

A prorrogação do regime emergencial de custeio do transporte coletivo da Capital foi aprovada ainda em dezembro pelos vereadores. A proposta de Rafael Greca (DEM) é estender por mais seis meses o auxílio dado pela Prefeitura às empresas de ônibus, em função da pandemia de Covid-19. O custo da prorrogação do auxílio é de R$ 102 milhões e gerou críticas de opositores e especialistas. Segundo eles, falta transparência e detalhamento no projeto, reflexo de uma relação histórica entre o poder público e empresários do setor. A Urbs alega economia, já que o custeio terá valor menor do que o normalmente repassado.

A atual gestão municipal vem fazendo repasses para as concessionárias de ônibus desde maio (Lei 15.627/2020), quando a pandemia começou a causar diminuição no número de passageiros no transporte. Entre maio e dezembro, o valor total repassado por meio do regime chegou a R$ 120 milhões. A Prefeitura alega que, sem essa medida, as empresas quebrariam e isso sairia mais caro para o município, que precisaria pagar R$ 40 milhões mensais em reequilíbrio econômico-financeiro, uma prerrogativa prevista no contrato com as concessionárias.

A rapidez na viabilização do novo auxílio às empresas de ônibus frente a poucas movimentações da Prefeitura para ajudar outros setores é criticada pelos que votaram contra a prorrogação do regime emergencial. De acordo com a vereadora professora Josete (PT), líder da bancada da oposição da Câmara, falta transparência nos dados apresentados pela prefeitura e pela Urbanização de Curitiba (Urbs). “A questão é que não há diálogo. O projeto é simples, porque ele só prorroga o que foi aprovado em maio, mas a nossa crítica é que os dados que foram repassados para justificar o auxílio são muito genéricos”, comenta a vereadora, criticando a votação do tema em regime de urgência.   

“Nós entendemos que é uma questão de transparência, porque é muito fácil colocar números fechados em uma tabela, sem as variações referentes a cada linha, período ou quanto ao número de carros que estão sendo disponibilizados. O próprio sistema de bilhetagem, que contabiliza o número de passageiros é questionável, como já apontou uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE), em 2013”, reforça Josete.

Em nota, a Urbs justificou que o regime emergencial de custeio terá um valor menor do que o que corriqueiramente seria repassado às empresas em período de normalidade. De acordo com a Urbs, durante o período emergencial estão excluídos os repasses às empresas que dizem respeito a dois itens da tabela que compõe os custos de operação do sistema: “amortização”, utilizado para renovação da frota, e “rentabilidade” (lucro).

“O projeto prevê que o pagamento por mês será reduzido de R$ 58,7 milhões para R$ 18 milhões, já descontada a receita de passageiros. Assim, ao longo de seis meses, o repasse passará de R$ 352,2 milhões – que seria pago em um período normal, sem pandemia – para R$ 108 milhões aproximadamente. Uma redução de 69%”, argumenta a Urbs.

No parecer jurídico enviado pela Prefeitura à Câmara para votação do regime emergencial, não há maiores detalhamentos dos custos de operação do sistema de transporte coletivo durante a pandemia. Há apenas as estimativas de valor arrecadado com as passagens e dos custos brutos durante os próximos seis meses.

Tabela presente no parecer jurídico enviado pela Prefeitura à Câmara

De acordo com Luiz Calhau, diretor do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge/PR), que entrou com ação contra a Prefeitura por conta dos repasses aprovados em maio e publicou Nota Técnica contrária à medida, o balanço entre oferta e demanda no transporte público da Capital ainda não está claro.

“Falta clareza na divulgação dos dados. Certamente houve queda do número de passageiros durante as semanas mais intensas de isolamento, o que foi acompanhado por uma queda da oferta de ônibus. No entanto, após a normalização do serviço, e a gradual retomada das atividades comerciais no município, não se sabe como ficou o balanço entre oferta e demanda do sistema, até porque também não estão claras as condições de operação”, argumenta Calhau. 

Na visão do diretor do Senge/PR, o próprio regime emergencial aprovado em maio pela Câmara permitiu e incentivou as empresas a reduzirem custos, diminuindo a frota. “Se os custos foram reduzidos de acordo com a demanda, não há prejuízo às empresas, no máximo uma frustração de lucro no ano e uma menor expectativa de lucro no futuro. Se for este o caso, os repasses da Prefeitura estão cobrindo esta lacuna de lucro e não os custos do sistema como alegam”, questiona. “Sem um mecanismo de fiscalização e gestão desses dados, é difícil afirmar que a Urbs tem controle sobre o sistema de transporte”, acrescenta Calhau, mestre em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com a dissertação “O exercício do poder na política de transporte de Curitiba entre 2008 e 2018”.

Trecho da Lei 15.627 aprovada em maio

Bilhetagem

Mesmo com relatos dos usuários de que os ônibus seguem cheios, e do relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE/PR) apontando superlotação nos coletivos, a diminuição brusca do número de passageiros é apontada pela Prefeitura como justificativa para prorrogação dos repasses. A contabilização do número de usuários do transporte público em Curitiba, entretanto, é alvo de críticas, ao menos, desde 2013, quando ocorreu uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PR) e a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Transportes, na Câmara de Vereadores.

Na ocasião, o TCE apontou que não havia devida fiscalização da Urbs na contabilização do número de passageiros, uma vez que o órgão havia terceirizado a atividade para o Instituto Cidades Inteligentes (ICI), organização social que gerencia sistemas de informação do município. O ICI, por sua vez, quarteirizou a contabilização de usuários do transporte coletivo para uma empresa privada (Dataprom), o que, de acordo com o Tribunal, reforça a falta de fiscalização da Urbs – além de considerar a operação ilegal.

A Urbs mantém um painel de acompanhamento dos números do transporte coletivo de Curitiba, que pode ser acompanhado aqui.  Também segundo a Urbs, atualmente são 363 mil passageiros por dia em média no transporte coletivo da Capital, contra 754 mil no período pré-pandemia. 

O Plural buscou contato com a Urbs para comentar o atual sistema de bilhetagem eletrônica, a contabilização do número de passageiros, o acompanhamento da planilha de custos das empresas e também como está a oferta de ônibus nas principais linhas, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.

Histórico

Por décadas considerado como modelo, o sistema de transporte público em Curitiba tem uma longa história de relação com o poder público local. Nas décadas de 1970 e 1980, por exemplo, Donato Gulin, patriarca da principal família ligada às empresas de ônibus de Curitiba, foi vereador e presidente da Câmara Municipal. O mesmo ocorrendo com Erondy Silvério, vereador por três mandatos e proprietário de empresas que operavam linhas de ônibus na Capital.

Historicamente ligada às elites locais, a operação dos coletivos foi, por décadas, administrada por meio da prorrogação de contratos firmados ainda nos anos de implantação do serviço na cidade. Foi só em 2009, durante o mandato de Beto Richa (PSDB), que foi realizada a primeira licitação para definição das empresas responsáveis pelas linhas de ônibus existentes. O certame licitatório, que resultou nos atuais contratos de concessão, entretanto, foi alvo de investigação do Ministério Público do Paraná (MP-PR), que apontou favorecimentos aos grupos estabelecidos e que já operavam as linhas em Curitiba e na Região Metropolitana (RMC).

Deflagrada em 2016, a Operação Riquixá do MP-PR, denunciou membros que compunham o quadro diretivo da Urbs na época da licitação, do Sindicato das Empresas de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana (Setransp) e pessoas ligadas à família Gulin, grupo com representantes em todos os consórcios que venceram a licitação de 2009 e atualmente responsável por operar quase 70% das linhas de ônibus locais.

A investigação apontou que a Urbs não submeteu alterações feitas no edital publicado aos pareceres jurídicos exigidos pela Lei de Licitações, e que o processo licitatório como um todo foi, segundo o MP, alvo de direcionamento para favorecer o grupo que já operava as linhas da cidade, conforme trecho da denúncia abaixo:

De acordo com o conselheiro titular do Conselho Municipal da Cidade de Curitiba (Concitiba) e professor aposentado pela UFPR, Lafaiete Neves, a licitação de 2009 teve claro direcionamento às empresas que já operavam as linhas. “Foram imputadas cláusulas que impediram qualquer tipo de concorrência, como a necessidade de experiência na operação de ônibus em canaletas e o alto valor para pagamento da outorga, exigido para participação em cada lote da licitação”, comenta Neves.

“Trata-se de uma questão estrutural, nas entranhas do poder, e que levou as famílias há tantos anos no comando das empresas de ônibus de Curitiba a impedirem qualquer tipo de concorrência, mesmo quando foi realizada licitação”, acrescenta.

Além disso, a CPI dos Transportes da Câmara Municipal de 2013 também constatou indícios de favorecimento na licitação de 2009. Entre outros pontos, o relatório final da CPI aponta que a licitação incluía um critério que atribuía 20 pontos para o consórcio que pudesse adiantar a operação em 90 dias antes da assinatura do contrato e zero pontos para quem adiantasse a operação em menos de dez dias.

“Ora, se as empresas participantes da licitação já operavam o sistema de transporte coletivo, é óbvio que elas conseguiriam antecipar em muito menos tempo que o previsto no edital, o ‘início’ da operação, sendo que a consecução da pontuação máxima seria desta maneira, automática, ou seja, se 100 pontos estavam em disputa e 20 pontos seriam atribuídos de forma automática às empresas que já operavam o sistema, já́ haveria uma vantagem de 20% sobre os concorrentes, caso existissem”, apontou o relatório final da CPI.

Até o momento, segundo o MP-PR, a Operação Riquixá denunciou 19 pessoas, somente em Curitiba: 14 na esfera criminal e cinco na esfera cível. A última denúncia ocorreu em dezembro de 2019 e envolve o crime de lavagem de dinheiro em função de pagamento feito por investigados vinculados ao Setransp para os organizadores das fraudes na licitação.

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