Manifesto chama a atenção para os rumos da universidade pública brasileira

Documento elaborado pelo Colegiado do Bacharelado em História da UFPR questiona medidas e posições tomadas pelo governo federal, que estariam prejudicando o ensino superior gratuito no país

As medidas que vêm sendo adotadas pelo governo federal em relação às universidades públicas brasileiras, principalmente após a nomeação do ministro da Educação, Abraham Weintraub, têm preocupado professores, servidores e estudantes das instituições de ensino federais.

Corte de recursos para pesquisas e para bolsas de estudo; a decisão de suspender a eleição para reitores das universidades, que serão nomeados pelo ministro; e as acusações infundadas feitas por Weintraub, entre outras ações, repercutiram negativamente no meio acadêmico.

Para chamar a atenção para o atual momento, o Colegiado do bacharelado em História – Memória e Imagem, da Universidade Federal do Paraná, grupo por formado por professores e representantes dos estudantes do curso, divulgaram um documento, intitulado “Manifestação pela Discussão Acerca dos Rumos da Universidade Pública Brasileira”.

Leia o documento na íntegra

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarava que o Planeta se encontrava em uma crise pandêmica. Após algumas semanas de disseminação mundo afora, o vírus Sars-Cov-2, responsável por causar a doença COVID-19, é colocado no centro dos debates relacionados às questões sanitárias por quase todos os governos estatais. A crise se agrava e provoca a desaceleração global dos processos econômicos, obrigando governos e instituições a medidas que vão do distanciamento social a fechamentos (lockdowns) de cidades ou regiões. No Brasil, o presidente da República minimiza os impactos da pandemia enquanto os Estados, Municípios e mesmo entidades públicas ligadas à União, como as universidades federais, optam por paralisar atividades com vistas a diminuir as possibilidades de contágio.

No âmbito das universidades federais, a opção geral é por, seguindo os dados apresentados pelas entidades científicas e de saúde, paralisar as atividades presenciais e suspender o calendário do primeiro semestre de 2020. Apenas 6 dias depois da declaração de pandemia pela OMS, o MEC, em contradição com a minimização do problema pelo presidente, publica a portaria 343/20, na qual autoriza a substituição, em caráter excepcional, das “disciplinas, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação” (o chamado EaD), dando o exíguo prazo de 15 dias para que as instituições de ensino que optassem pela alternativa pudessem se manifestar junto ao MEC.

A celeridade e iniciativa do ministro Abraham Weintraub para supostamente auxiliar na diminuição do problema seria da ordem absolutamente comum das questões administrativas, não fosse o histórico de desagravos e ataques desferidos pelo ministro às instituições públicas de ensino superior brasileiras. De fato, esse primeiro e rápido gesto em prol da “resolução”, mesmo que parcial, do problema que iria se impor por conta da pandemia, deve, no mínimo, levantar algumas suspeitas.

Não custa lembrar que 2019 foi um ano marcado por “dissonâncias” entre os altos escalões da administração educacional na esfera federal e as universidades federais. Apenas a título de exemplo, lembremos as palavras do ministro no dia 29 de abril de 2019 (que respondia a uma declaração do presidente da República de 26/04), quando anunciava suas intenções de corte de repasses às universidades: “as universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas. (…) A universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo. (…) Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus.” Sem especificar que eventos ridículos seriam esses e sem dar nenhum exemplo concreto da balbúrdia e da gente pelada, o ministro continua: “A lição de casa precisa ser feita: publicação científica, avaliações em dia, estar bem no ranking.” Cinco dias depois, era declarado o contingenciamento de 30% dos orçamentos de todas as universidades públicas federais.

Dez dias depois, em 15 de maio de 2019, em meio à crise gerada pelas declarações do Ministro e aos protestos contra os cortes que começaram a se espalhar por todo o país, o MEC, num gesto que parecia ir em direção ao clamor dos estudantes em protesto, lança em sua página na internet a seguinte notícia: “Weintraub quer dinheiro recuperado de corrupção na Petrobrás investido na educação.” De fato, mais de um bilhão de reais foram direcionados ao MEC, mas nunca foram utilizados pelo Ministério e nem ao menos alocados para o orçamento de 2020. Ainda no contrapé das ondas de protestos que se estenderam por todo o mês de maio de 2019, como que querendo mostrar serviço, Weintraub também apresenta o programa “Future-se”, uma medida provisória para mudar todo funcionamento das instituições superiores públicas  de ensino brasileiras, com claros intuitos privatistas e de desmonte estrutural. A proposta foi submetida a uma consulta pública e, após ter tido um rechaço quase que completo das instituições, permaneceu dormente até dia 27 de maio de 2020 – não para nossa surpresa, em meio à pandemia –, quando é encaminhada, com algumas alterações (e agora em formato de Projeto de Lei), ao Congresso Nacional.

O rápido gesto – a portaria 343/20 (e a sucessiva portaria 395, de 15/04/20, que prorrogou os prazos) – de Weintraub no suposto auxílioda gestão da crise da COVID-19 pelas universidades públicas, ganha mais inteligibilidade se lido à luz desses eventos, nos quais, além do já exposto, também estão incluídos os declarados desejos do ministro pela “autorregulação das universidades privadas” e pela disseminação de EaD no âmbito das universidades públicas federais. Nesse sentido, como mostra da contraditoriedade desse gesto de ajuda na gestão da crise, basta lembrar que, no dia seguinte à portaria que concedia a autorização para as atividades EaD, a Capes (órgão subordinado ao MEC) publica a portaria 34/20, na qual anunciava um expressivo corte nas bolsas de pesquisa no âmbito da pós-graduação nacional.

A gestão dos problemas ocasionados pela pandemia de COVID-19 pelas universidades deve ser lida tendo em vista esse cenário. Aliás, com a suspensão do calendário neste primeiro semestre de 2020 em boa parte das instituições e com a prerrogativa aberta pela portaria 343/20, as discussões a respeito da implementação das atividades remotas mostraram-se incontornáveis em todas as universidades públicas federais. A questão é premente, mas é preciso que a comunidade universitária tenha cautela diante disso que, rapidamente (como rápida foi a proposta do ministro da Educação), se mostra como alternativa para evitar a parada ou desaceleração dos processos de formação e dos trabalhos de pesquisa, os quais, pelo menos nos últimos 20 anos, têm sido afetados pelo inquestionável processo hiperacelerador das métricas do mercado, sob o imperativo das dinâmicas neoliberais. Em outras palavras, além do necessário trabalho que busque os melhores meios para a manutenção das atividades das universidades durante a pandemia (algo que os conselhos universitários, as reitorias e pró-reitorias, as faculdades, os setores, os departamentos e coordenações de curso têm se empenhado, com exaustão e a duras penas, procurado pensar e estruturar), também é preciso que a comunidade universitária volte a tocar em problemas de fundo que, com esta parada involuntária, saltaram às vistas com uma clareza estarrecedora.

Num primeiro momento, poderíamos chamar a atenção para as disparidades internas no corpo estudantil de uma universidade pública brasileira na atualidade, advindas de algumas políticas públicas que, de certo modo, possibilitaram maior ingresso de estudantes (e também de pesquisadores no âmbito da pós-graduação) oriundos de estratos sociais que outrora não tinham acesso aos bancos universitários. Nesse sentido, a operacionalização e disseminação de atividades online teria que lidar, de antemão, e caso não queira implementar um corte a priori classista, com o problema da inclusão digital. De fato, trata-se de algo pelo qual as universidades têm se esforçado muito, porém, como é notório, que esbarra nos claros problemas de faltas de investimentos – que podem ser confirmados com uma análise do orçamento destinado ao MEC nos últimos 7 anos – e, além disso, nas propensões à concretização das dinâmicas neoliberais por parte dos agentes de governo.

Num segundo momento, é fundamental atentarmos para os problemas econômicos, oriundos ou agravados pela irrupção da pandemia, que afetam os estudantes e pesquisadores das universidades públicas. Conforme os dados do IBGE, houve uma queda de 5,2% no índice da população ocupada entre fevereiro e abril de 2020 e uma taxa de desemprego de 12,6%, com uma tendência ao agravamento ainda maior. Além disso, é necessário ressaltar que os processos econômicos de famílias inteiras (desde, pelo menos, 2014, com a estagnação econômica, passando por dois anos de recessão e mais três em moderada estagnação; além, é claro, dos processos de destruição dos direitos sociais, previdenciários e trabalhistas) encontram-se, muitas vezes, dependentes da nova economia de plataformas: os aplicativos de entrega, transporte etc. que têm produzido uma massa de trabalhadores desprovidos de direitos e extenuados por longas jornadas. Nesse sentido, é preciso que a universidade pública leve em consideração essa precariedade, que em muitos casos é parte da realidade cotidiana de seus estudantes. Essa precariedade, aliás, também é fonte de preocupação quanto ao acesso necessário e fundamental para estudantes que se encontram nessas condições: restaurantes universitários fechados, bibliotecas indisponíveis, serviços médicos e psicológicos paralisados etc., tudo isso é óbice no desenvolvimento de um programa de formação inclusivo, republicano e universalista.

Num terceiro momento, cabe à comunidade acadêmica a solidariedade necessária e fundamental em relação aos estudantes que porventura se contagiem com o Sars-Cov-2 ou que tenham parentes adoecidos, casos que, eventualmente, também poderiam impedir a participação nas atividades remotas – que, óbvia e necessariamente, devem ser relegadas pelo estudante que passe por tal situação.

Num quarto momento, também é crucial chamar a atenção para a dependência técnica que as universidades públicas têm de agentes privados no que diz respeito à estruturação das atividades remotas (online). Já é notório que o mercado da educação tem sido o novo campo de exploração dos conglomerados tecnológicos denominados Big Tech, as grandes empresas de tecnologia que detêm o domínio quase absoluto dos meios comunicacionais no âmbito da internet (basta lembrar dos acordos firmados por universidades públicas com empresas como Microsoft e Google para provimento de e-mails e sistemas de gerenciamento de dados). As dinâmicas comunicacionais não são meios neutros sobre os quais é possível se imprimir uma marca pública, a despeito das boas vontades de seus usuários. Pelo contrário, na estruturação do capitalismo informacional contemporâneo, é dominando os meios – apreendendo e vendendo informações – que as empresas de tecnologias ganham valor de mercado (que no vocabulário neoliberal corrente também aparece, em certas circunstâncias, sob o título de monetização) e força política. No caso das universidades federais, em se tratando de aulas públicas e, muitas vezes, de conteúdos de pesquisas que estão sendo desenvolvidas, critérios de segurança de informação devem ser assegurados para além do ingênuo apoio em garantias jurídicas esboçadas em contratos e convênios (basta lembrarmos das denúncias de Edward Snowden; ou mesmo das revelações de Julian Assange sobre as espionagens digitais). 

Colocado o problema, resta imperiosa à comunidade universitária uma reflexão que guie seus próximos passos durante a pandemia e que também prepare, com cautela, os movimentos para o que vem depois. Não se trata de pensar um novo normal, como com frequência se tem noticiado e postulado, tampouco apenas de justificar as medidas excepcionais diante da excepcionalidade da pandemia, mas de também colocarmos questões ao velho normal, de modo a compreendermos melhor como e por que os processos de aceleração neoliberais há tempos (e cada vez mais) têm afetado e, no limite, reconfigurado modos de funcionamento nas universidades e na produção dos saberes. Trata-se de recolocar questões fundamentais como: qual o sentido da constituição dos saberes no âmbito da universidade? Quais os propósitos de continuar a aceleração – isto é, apenas operando o processo de formação dos estudantes com vistas à disponibilização de mão-de-obra ao mercado de trabalho – num contexto de esgotamento tanto de postos de trabalho quanto de horizontes possíveis para um planeta que se encaminha a um colapso ambiental?

Frente à métrica do mercado que hoje tem se imbricado cada vez mais nas funções da universidade (quase como seu princípio de legitimação e realidade), frente a governos que apenas funcionam como agentes facilitadores de processos de concentração de capital e riquezas (e no caso do atual governo brasileiro, isso é patente), perguntas fundamentais outrora no seio das inquietações da universidade passaram a ser obliteradas. O sujeito crítico que deveria ser formado, o cidadão que se questiona e que também se importa com a dimensão da vida em comum, tem dado lugar ao consumidor de saberes (aprende-se habilidades) e ao investidor de si mesmo que apenas visa a vencer a guerra por melhores postos num mercado cada vez mais enxuto e concentrado. E, por certo, essa dinâmica da formação é reflexo do que tem acontecido no interior das universidades: sob o imperativo da produção e da qualidade, professores e pesquisadores tornam-se empreendedores fabricantes de artigos – agora chamados produtos – que boa parte das vezes figuram apenas como números nas métricas de ranqueamentos, liberação de fundos e credenciamentos em programas de pós-graduação.

À medida que deixamos de lado questões cruciais sobre os fundamentos da universidade e nos empenhamos na manutenção de seu funcionamento (não importando quais seus rumos e projetos), corremos o risco de apenas formar capital humano, ou seja, o indivíduo com habilidades técnicas para competir e sobreviver em meio a outros competidores, o autoinvestidor que, não preocupado em colocar-se na vida pública e em adquirir conhecimentos necessários para atuar na vida em coletividade, procura, por meio da formação universitária, apenas agregar valor às suas práticas de sobrevivência no mercado concorrencial. Como clientes, pouco importam os cursos oferecidos por professores, mas necessários são os créditos que a tais clientes são oferecidos como serviços por parte dos empreendedores de currículos, de modo a acelerar o processo de formação. E, assim, assistimos a uma paulatina renúncia – mesmo que não intencional – dos projetos republicanos e universalistas da Universidade e a sua nova estruturação, sob a égide da gramática neoliberal (qualidade, inovação, empreendedorismo), em forma de maquinaria do capital financeiro, na qual os saberes produzidos flutuam ao sabor das dinâmicas do mercado. É nesse sentido que, ao deixar de lado as perguntas de fundo do projeto republicano e universalista, a universidade pública brasileira, hoje, pode abrir mais um caminho para o que Marina Garcés chamou de “escola do futuro”. Esta não será pensada pelos Estados ou comunidades, mas pelas grandes empresas de comunicação e bancos: sem campi, mas com “plataformas on-line e professores vinte e quatro horas. Não irá fazer falta o fato de ser excludente, porque será individualizadora de talentos e de trajetos vitais de aprendizagem.”

Eis o tamanho do problema, e diante da magnitude e profundidade com a qual a universidade está sendo atingida e alterada por ele, é preciso, por parte da comunidade universitária, atitudes, mobilizações e assunção de riscos que estejam à altura. Esta manifestação se propõe apenas como um chamado ao enfrentamento desses problemas. Trata-se de tarefa árdua que demanda empenho e coragem. Assim, como uma forma – ainda que incipiente – de proposição, elencamos basicamente pontos de partida:

A discussão, em nível local e que almeje desdobramento interinstitucional e arranjos nacionais, acerca dos fins da formação universitária. Em outras palavras, neste momento, em que a pandemia forçada e involuntariamente interrompe o fluxo de produção de mão-de-obra, cabe à comunidade acadêmica, para além dos todavia necessários enfrentamentos das questões operacionais ligadas a sua manutenção e funcionamento, recolocar com vigor questões. De maneira específica, e de antemão, pensar estratégias para lidar com um governo não disposto ao diálogo, mas que tem atuado (mostramos acima) como mais um agente antagônico (para além do vírus que nos acomete) no trabalho de organização da educação. E se não há diálogo possível, como podemos unir forças para afrontar decisões que são perniciosas e destruidoras de qualquer dimensão da autonomia universitária e de uma nova forma de organizar e conduzir os rumos da educação? Além disso, e talvez como condição para essa união de forças, restam algumas questões fundamentais: como sedimentar valores republicanos e universalistas em meio ao imperativo da produção? Como interromper o fluxo acelerador das dinâmicas neoliberais que têm permeado cada vez mais a estrutura acadêmica pública brasileira? Há melhores modos de organizarmos e em nível local discussões de partam da base (cursos e departamentos) e cheguem às instâncias superiores da universidade (setores, pró-reitorias e conselhos) e, daí, possam se articular na rede universitária pública de maneira mais efetiva e capaz de, para além de uma forma de resistência a desmandos de governantes que defendem interesses outros que não públicos, constituir proposições ativas e de enfrentamento? Como colocar essas questões de maneira coletiva e que abarque as pluralidades de objetivos que compõem as diversas áreas do conhecimento? Como imaginar coletivamente novas formas para os valores inclusivos e universalistas da universidade? Como postular um projeto educacional radicalmente novo e que leve em conta não apenas as profundas mudanças das dinâmicas socioeconômicas e políticas, mas que também tenha diante de si o desafio das próprias condições de sobrevivência num planeta ameaçado pelo processo acelerador, do qual nossa atual forma de pensar e agir na universidade faz parte? Tais questões são ambiciosas, mas cabe a nós colocá-las e tentar fazer delas não apenas mais um assunto acadêmico, mas uma condição sine qua non da manutenção de nossa própria existência enquanto professores, estudantes, pesquisadores e, sobretudo, viventes.

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