Luta por indenização em caso de violência obstétrica esbarra em lei e falta de provas

Histórias de sofrimento no parto ou no puerpério nem sempre resultam em indenizações para a família que foi vítima de más condutas na maternidade

A advogada Luciane Mezarobba diz que a cena já se repetiu inúmeras vezes em seu escritório. Uma mulher que passou por um parto entra, muitas vezes com seu companheiro ao lado, e tomada pela tristeza e pela indignação começa a narrar a violência que sofreu. “As mulheres chegam com muita tristeza, revolta, raiva; muitas suportam sequelas semelhantes às vítimas de estupro, incluindo depressão pós-parto, rejeição ao bebê, quadro de ansiedade”, conta Luciane.

Embora se trate de um escritório de advocacia, nem todas vão até lá certas de entrar com um processo contra a a maternidade ou o médico. A impressão, conta a advogada,é de que muitas delas demoraram para perceber que viveram uma violência e que agora precisam de uma validação. Por isso muitas vão com o marido ou namorado, como se a ideia fosse garantir que eles também ouçam de alguém que, sim, aquilo não podia ter acontecido.

A decisão por judicializar a questão depende de vários fatores, que começam por saber se a mulher quer mesmo enfrentar uma disputa sobre o caso, o que pode levar a mais estresse e revitimização. Um outro fator importante tem a ver com as provas que será possível apresentar, já que em geral as únicas testemunhas da cerna pertencem à equipe médica e não sobram marcas visíveis do que aconteceu.

Mas as características da legislação brasileira tornam a indenização por casos der violência obstétrica ainda mais rara. O país ainda não tem uma legislação específica definindo o que é a violência no parto e no puerpério, o que leva os tribunais muitas vezes a só enfrentar o problema pelo viés do erro médico,que não se aplica totalmente aqui. “Se a mulher e o bebê estão fisicamente bem, entende-se que o parto foi um sucesso”, diz Luciane. “É que a dor não aparece em uma foto.”

Consciência

Especializada em ações indenizatórias, a advogada Márcia Nunes diz que a consciência das mulheres evoluiu muito nos últimos anos, e que embora ainda não tenha mudado na mesma velocidade, o Direito vem reagindo. “Hoje há muitas mulheres, dependendo do grau de instrução e de informação, que se rebelam quando se fala em episiotomia, por exemplo, uma coisa que não acontecia poucos anos atrás”,diz ela, fazendo referência e um corte no períneo (a região entre o períneo e o ânus) feito por vários obstetras para apressar o parto.

“Os juízes acabam encaixando o caso como erro médico muitas vezes, mas já há alguns expedientes da obstetrícia que não são mais aceitos. É o caso da manobra de Kristeller, que em geral fica registrada no prontuário e portanto fornece provas. Esse é um dos casos em que vem sendo possível obter mais êxito no processo”, diz Márcia. A manobra de Kristeller é aquela em que o médico pressiona a parte superior do ventre da grávida para expulsar o bebê – algo criticado pela Organização Mundial de Saúde, pelo CRM e pelo Coren, mas que continua sendo praticado.

A advogada Vanessa (o sobrenome será omitido por razões de privacidade) é uma dessas mulheres que teve consciência imediata de que estava passando por uma violência, mas que acabou decidindo não entrar com um processo – até por saber da dificuldade que teria em convencer um juiz sobre o tema.

Ao chegar à maternidade, Vanessa passou por uma série de abusos. Um deles teve a ver com o método de parto escolhido por ela – a banqueta. Trata-se de uma espécie de cadeira especial em que a grávida pode fazer o parto em posição sentada, considerada mais natural e melhor para o bebê do que a posição deitada. A médica que a atendeu disse que não havia banqueta na sala de parto, o que ela sabia ser mentira. “Quando fiz um escândalo e exigi a banqueta,milagrosamente ela apareceu. Mas a médica foi cruel. Disse que estava lá do outro lado e que se eu quisesse, teria que ir andando até lá, sendo que eu estava com dez centímetros de dilatação”.

Depois do parto, Vanessa conta que ela e o bebê continuaram sendo vítimas de abuso. Ela exigiu que não oferecessem fórmula para o bebê, pois queria dar apenas leite materno para a filha. “O médico veio tentar me convencer de que eu não sabia o que estava fazendo e foi extremamente rude. Disser que eu teria que assinar um documento dizendo que neguei a fórmula, e eu respondi que assinaria na hora. Precisei me impor o tempo todo”, diz ela.

Parto domiciliar

Juliana (nome fictício) foi uma que decidiu levar o processo adiante. Ela e o marido tiveram três bebês em parto domiciliar planejado. Sempre houve críticas indiretas por parte dos médicos, mas no caso da segunda bebê, o caso foi mais grave.

Depois de um parto bem-sucedido, Juliana e o marido foram ao hospital para os testes de praxe. “Trataram o caso como se eu tivesse negligenciado o bebê. A médica abusou da autoridade e forçou uma internação desnecessária da criança”, conta ela. Como não era ela a internada (caso que ocorreria num parto hospitalar), Juliana foi classificada como acompanhante da criança, e para amamentar a bebê precisou ficar no hospital por 48 horas, ainda em processo de pós-parto, sem as acomodações que seriam oferecidas a uma mulher internada.

“Passei dois dias de meu pós-parto sentada em uma cadeira, sendo que a minha filha estava bem e nem precisava estar ali”, conta ela.

Lei e gênero

Para Luciane Mezarobba, uma lei específica sobre violência obstétrica seria fundamental no Brasil. “Ainda que várias dessas práticas já possam ser enquadradas em crimes previstos na legislação brasileira, como lesão corporal e importunação sexual, e de no âmbito cível acarretarem dano moral indenizável, a previsão em lei federal de punição à violência obstétrica será valiosa ferramenta inibidora desse tipo de conduta.”

Mas há outra mudança igualmente importante e que tem a ver com a composição do Judiciário. “A representatividade de gênero nos espaços de poder, por si, lança luzes sobre temas afetos às mulheres. A violência obstétrica é uma face da violência de gênero, e precisa ser assim compreendida. Juízas, promotoras, advogadas não estão imunes à violência obstétrica.”

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