Jovem denuncia racismo em fantasia e é processada criminalmente

Após denunciar ato racista, Thalita Bastos foi processada, mas juiz negou as acusações e condenou autor a pagar custas

Em 2018, a foto de um casal em uma festa à fantasia nos Jogos Jurídicos do Paraná viralizou e incitou o debate sobre o uso de adereços e fantasias com conotações racistas. O motivo: um casal universitário se fantasiou de Aladin e Jasmine, mas além de representarem personagens da Disney, os jovens usaram um boneco negro para representar Abu, o macaco de estimação de Aladin.

O registro foi publicado na página oficial dos Jogos Jurídicos Paranaenses e imediatamente a imagem começou a repercutir nas redes sociais. Thalita de Oliveira Bastos, foi uma das pessoas que compartilhou a foto. Na legenda, ela, em conjunto com o Grupo de Estudos Raciais (GER), do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), denunciou o ato racista e cobrou um posicionamento da organização do evento.

“A gente tinha um grupo de debates raciais, então quando um colega mandou essa publicação ninguém precisou falar nada, ficamos todos chocados em ver que aquela situação havia acontecido”, diz Thalita. “Uma boneca preta é algo significativo, não achamos uma boneca preta para comprar igual encontramos qualquer outra. Então, foi horrível, me senti muito ofendida”, conta.

O uso de adereços e fantasias racistas não são raros no Brasil. Em 2016 uma família utilizou a mesma caracterização em um bloco de carnaval e provocou um intenso debate sobre as questões raciais implícitas nessas atitudes. Neste caso, os pais fantasiaram o filho adotivo, um menino negro de dois anos, de macaco.

Para o professor Dennis de Oliveira, membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (Neinb), da Universidade de São Paulo, o fato da fantasia ser apresentada como piada não isenta o teor racista, pelo contrário, reforça e torna-a ainda mais perigosa. “Adereços e fantasia que reforçam estigmas e estereótipos são manifestações de racismo sim e o fato das pessoas colocarem nessa dimensão da brincadeira, do recreativo, dá a impressão de que aquilo não tem uma conotação política, mas tem, pode ser risível para alguns, mas é brutalmente ofensivo para outros”, comenta o professor.

Após compartilhar a fotografia do casal de universitários, Thalita não esperava que sua publicação tivesse tanta repercussão. “Não imaginava de forma alguma que tivesse aquele alcance, inclusive quando vi que estava tendo muitos compartilhamentos eu tampei o rosto das pessoas envolvidas para não expor ninguém”, fala Thalita.

O caso teve alcance nacional, no Facebook foram cerca de seis mil compartilhamentos, com repercussão em grandes páginas como o Quebrando o Tabu, além disso a publicação também contou com a repostagem de uma atriz global.

Além da denúncia nas redes sociais, a jovem também registrou uma notícia-crime junto ao Ministério Público, o fato foi encaminhado para a delegacia de Umuarama, cidade onde ocorreu a festa, para apuração. Thalita afirma que já tentou entrar em contato com as autoridades competentes para saber como estava o andamento da investigação, mas não obteve nenhuma informação. 

Processada por denunciar racismo

Após expor a fantasia nas redes sociais, Thalita foi procurada pela mulher da foto, que assumiu o erro e pediu desculpas pelo acontecido. O homem fantasiado de Aladin, entretanto, nunca se pronunciou. “Apenas o advogado entrou em contato e pediu a retirada da foto, eu disse que tiraria sem problemas, desde que ele fizesse alguma retratação quanto à fantasia”, fala Thalita.

Mas a retratação não veio, em vez disso, ele entrou com duas ações contra Thalita, a primeira civil, pedindo que a publicação fosse retirada da internet e a indenização de aproximadamente R$ 40 mil, e outra na criminal – que foi negada pelo juiz – solicitando que Thalita Bastos fosse condenada penalmente pela prática de injúria, difamação, calúnia e incitação ao ódio. 

“Quando eu fiquei sabendo das duas ações que ele havia aberto fiquei muito mal, porque eu estou na luta do movimento de negritude já faz alguns anos e levar um processo por agir em defesa dos meus direitos e daquilo que eu acredito me deixou bem abalada”, conta Thalita.

Para Giovanni Diniz, Gustavo Moreira e Matheus Gugelmin, advogados de defesa, a intenção do autor da ação era condenar Thalita por ter realizado a denúncia de um ato racista, inclusive o crime de incitação ao ódio nem caberia na situação, uma vez que, tecnicamente, é uma ação pública que apenas o Ministério Público poderia mover.

Duas teses foram as responsáveis pelo encerramento do processo na esfera criminal, a primeira diz respeito à extinção da punibilidade pela decadência, ou seja, a queixa elaborada pelo advogado de acusação não atendeu os requisitos da lei para propor essa ação, após intimado não cumpriu o prazo de seis meses para a continuidade do processo. Então, gerou-se um instituto que se chama decadência, uma questão temporal que acaba extinguindo o direito.

A segunda tese foi o fato de que outras pessoas também compartilharam e comentaram na publicação, muitas delas se manifestaram de forma agressiva, contudo, apenas Thalita foi acusada. Acontece que em uma queixa de ação penal privada, não é possível escolher contra quem você quer entrar. “Essa técnica se chama indivisibilidade da ação penal privada, existindo várias pessoas que fizeram comentários iguais ou similares, ele optou por abrir a ação somente contra a Thalita”, conta Giovanni.

Na  vara cível, o processo permanece em discussão acerca de competência territorial. A próxima audiência de instrução do caso está marcada para abril do ano que vem, a defesa já tentou realizar uma proposta de acordo, mas os advogados de Jorge não se interessaram e preferiram dar continuidade à ação.

Reviravolta

O juiz extinguiu o processo criminal, mas a história ainda não teve fim, já que a defesa de Thalita pediu que o autor da ação seja condenado ao pagamento de honorários advocatícios, um valor de aproximadamente três mil reais – o que foi acatado pelo juízo.

“Nós tivemos uma reviravolta porque a Thalita que estava em uma situação de ré, injustamente ao nosso ver, conseguiu extinguir o processo e condenar a outra parte ao pagamento de custas, que cabe ao caso por ser uma ação de natureza privada”, explica o advogado.

O processo ainda não transitou em julgado, então o autor ainda pode recorrer do pagamento de custas. No entanto, devido ao prazo já ter transcorrido, não é possível recorrer da decisão que encerrou a queixa.

Procurado pela redação do Plural, o advogado do jovem autor das acusações não se pronunciou sobre o caso até o momento de publicação da matéria.

Alívio

“Quando o processo se encerrou eu fiquei muito feliz, era algo que vinha me tirando o sono ao longo desses anos”, desabafa Thalita. “Não foi algo que eu quis atacar os envolvidos, queria apenas expor um ato racista. Às vezes as pessoas não têm posturas racistas no dia a dia, mas isso não isenta ninguém de ter um ato racista”.

Dennis Oliveira diz ainda que o caso abordado deixa evidente a manifestação de racismo. “A fantasia associa automaticamente negros e negras a macacos e isso remonta a uma discussão já antiga de pensar o ser negro como algo não humano, um extrato inferior da sociedade. Qualquer prática que inferioriza homens negros e mulheres negras é intolerável, não tem nenhum tipo de justificativa que ameniza essa prática racista”, diz o professor.

“Hoje em dia as pessoas não podem argumentar que não têm informação sobre o assunto, porque as informações estão explícitas, com linguagens simples e de fácil compreensão”, expressa Thalita. “Já está chato para as pessoas pretas ficarem explicando porque foi racismo, é doloroso se colocar sempre nessa posição”, enfatiza.

Mayala Fernandes, sob a orientação de João Frey

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