Um estudo realizado pela Rede Penssan mostra que a fome atingiu 19 milhões de brasileiros durante a pandemia. Em Curitiba e na sua Região Metropolitana, a situação não é diferente: famílias dependem do baixo valor vindo do auxílio emergencial e da caridade. Além disso, é possível ver que os principais atingidos pela fome são mulheres e são negras.
Um dos pesquisadores, Nilson de Paula, economista e professor do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirma que “a fome tem cor, gênero e endereço”. Ele diz que a falta de alimento acompanha não só os mais miseráveis. “A fome não está ligada só a extrema pobreza, como também ao empobrecimento. Falo de uma dificuldade para se alimentar quem está também na classe média e na classe média baixa”.
Os dados mostram que no Brasil, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres, os habitantes passam fome, contra 7,7% dos domicílios chefiados por homens. Também, em 10,7% das residências habitadas por pessoas pretas e pardas a fome está presente, enquanto isso acontece em 7,5% na mesa das pessoas brancas.
Porém, outro dado preocupante é que 116,8 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar no Brasil nos últimos meses de 2020. Insegurança alimentar é quando alguém não tem acesso pleno e permanente a alimentos.
O pesquisador Nilson de Paula afirma que a pesquisa foi feita com três níveis de insegurança alimentar: leve, moderada e grave. O primeiro e segundo caso é quando falta comida às vezes ou faltam itens no cardápio. No terceiro caso, o grave, é a fome no seu sentido mais explícito, quando realmente a pessoa fica dias sem se alimentar. “É alarmante pensar que mais da metade da população do país se encaixa em algum nível de insegurança alimentar.”
Faltam Comidas Saudáveis
Para Eliane Alves, líder comunitária no bairro Campo Comprido, uma das principais dificuldades dos moradores tem sido o acesso às comidas saudáveis. “A gente recebe doação de perecíveis, mas o que tem faltado são frutas e verduras”, conta. “Além disso, também não comemos carne. Ainda ontem um senhor trouxe uma caixa de ovo para cada casa da minha rua”.
Ela ainda atenta para o fato da caridade ter sido fundamental para a sobrevivência da população, pois só o auxílio emergencial liberado pelo Governo Federal não teria sido suficiente. “Se as pessoas não tivessem se ajudado em Curitiba, a fome seria muito maior, porque só esse auxílio emergencial não ia dar nem pro básico, como aluguel, luz, água”.
A principal medida do governo para diminuir o impacto da pandemia não foi suficiente. Ainda segundo a pesquisa, dos domicílios que receberam o auxílio emergencial, 28% viveram insegurança alimentar grave, ou seja, passaram fome.
Brenda Prestes, moradora do Parolin, conta que desempregada, não consegue comprar o leite para sua filha. “No momento não tenho nenhuma renda, a minha maior dificuldade hoje é o alimento e leite, porque eu tenho uma filha pequena”. Ela ainda afirma não saber o fato de ter tido seu auxílio emergencial cortado, mas que isso tem afetado incisivamente a sua família. “Quem tem me ajudado é minha avó e minha mãe. O meu auxílio emergencial foi cortado. Eu não sei o porque, não recebo nenhum tipo de ajuda do governo”.
Até dezembro de 2020, em Curitiba, havia 128.853 famílias cadastradas no Cadastro Único – instrumento de identificação das famílias de baixa renda, utilizado como referência para a participação em programas sociais. Deste total, a Fundação de Ação Social (FAS), inseriu quase 22 mil famílias só no ano de 2020. Isso é, o número de famílias que precisaram de algum tipo de auxílio na capital paranaense, no ano da pandemia, aumentou em quase 17%.
O Plural também mostrou o aumento significativo no número de famílias em situação de rua em Curitiba. Para o antropólogo e integrante do Instituto Nacional de Direitos Humanos da População de Rua – INRua, Tomás Melo, a fome tem a ver com o aumento dessas pessoas tendo seu primeiro contato com a rua. “Hoje, a gente percebe que tem aumentado consideravelmente, pessoas em situação de rua ou em busca desses auxílios, que não estão na rua há muito tempo, são pessoas recém chegadas.”
Para ele, o fato de muita gente estar tendo seu primeiro contato com a rua, tem a ver com uma conjunção de fatores. “O auxílio emergencial e o fato de que algumas pessoas não conseguiram nem mesmo acessá-lo, o valor do auxílio, o desemprego, são uma conjugação de fatores que levam boa parte da classe trabalhadora, que já viva em condições de vulnerabilidade, a se verem cada vez mais frente ao risco de ter que estar em situação de rua”.
Mas, Tomás também diz que muitas dessas famílias, que estão atrás de auxílios como a distribuição de comida, ainda conseguem ter um lar. “Também vemos pessoas que conseguem fazer a administração de um domicílio, que ainda conseguem morar numa casa, mas que já precisam buscar redes de amparo e distribuição de comida”.
“Sei o que é estar com a barriga roncando por fome”
Com o agravamento da pandemia e das questões sociais que a acompanharam, aumentaram também as campanhas de doação. A Raquel Aerosa, da ocupação Tiradentes, na Cidade Industrial, conta que na sua infância, aos 7 anos, seu pai faleceu e como ele era o único gerador de renda da família, sua mãe e os 6 filhos passaram por muitas dificuldades, inclusive a fome, que era constante. “Sei o que é ter dificuldade e estar com a barriga roncando por fome. Passei muita necessidade na infância”.
Por isso, neste período de pandemia, a Raquel, hoje com 40 anos, decidiu ajudar. Na última páscoa, arrecadou doações para crianças da sua comunidade. “Eu gosto muito de poder ajudar o próximo. A gratidão de ver o sorriso, não tem preço”, conta.
Ajudar mães e crianças é também o que tem feito a Central Única das Favelas do Paraná (CUFAPR). Desde o início da pandemia, a organização pausou todas as suas ações de assistência às comunidades, para focar no combate à fome. “Nós paramos com todos os nossos projetos de empreendedorismo, de formação, de cultura, de esporte e passamos a atender essas famílias com alimentos”, conta o presidente da CUFAPR, José Campos Jardim.
Foi também no início da pandemia, que a CUFA deu total atenção ao projeto Mães da Favela pois, como prova a pesquisa da Rede Penssan, as mulheres são as mais vulneráveis. “Com o impacto da pandemia na economia familiar, as primeiras pessoas a sofrerem foram as mães solo. Grande parte das mulheres no comando do lar, trabalham no mercado informal, trabalham com diária ou reciclagem e essas famílias começam a perder a sua renda, e se falta o recurso, falta a comida”, afirma Campos Jardim.
Hoje, além da distribuição de comida, uma das principais ajudas da CUFAPR para as cerca de 30 favelas que atendem em Curitiba e Região Metropolitana foi também a distribuição de chips de celular com dados móveis de internet, para que os filhos dessas mães solo, pudessem continuar acompanhando a escola
Satisfação da Paula Almeida, que com 27 anos, moradora de Favela Portão, em Curitiba, tem duas filhas para criar, uma de 3 e outra de 2 anos. “Além das doações de comida, esse chip ajudou bastante, porque a minha filha tinha que fazer trabalho na internet e a gente estava com muita dificuldade”, disse. “Agora ela pode ver os vídeos que a creche pede e está bem alimentada.”