Nada pode parar Fagner Zadra

Acidente que deixou humorista tetraplégico completa dez anos; aparelho e fisioterapia são esperanças de que Zadra volte a andar

Cena 1

Fagner Zadra não está no palco. Seu corpo está estendido em uma cama ortostática e ele tem nas mãos um aparelho eletrônico. Talvez seja o dia mais importante da vida dele desde o momento em que quatro vértebras de seu pescoço se romperam, dez anos antes. Pela primeira vez, ele vê diante de seus olhos a perspectiva de voltar a andar, de ter uma vida normal de novo. Passa um pouco de quatro e meia da tarde, dia 26 de março de 2024. Ele se benze discretamente uma, duas vezes, e liga o aparelho.

Imediatamente um choque elétrico percorre a medula e se espalha pelo corpo. As mãos se crispam, o rosto se contorce. Fagner sabe que está sendo filmado, mas mesmo assim solta um “Cacete”. O fisioterapeuta pergunta se ele vai aguentar e ele diz que sim. O desejo de fazer os exercícios é maior do que a dor. A cena é torturante.

Além de Fagner estão na sala Rodrigo, o enfermeiro de todas as horas, o fisioterapeuta Leonardo Grilo, especializado em lesões neurológicas, a videomaker Tami Taketani, do Plural, e eu. Profissionais de saúde não se impressionam tanto com as coisas, e Leonardo – um homem que já fez vários tetraplégicos voltarem a andar, até sorri. Não consigo saber o que Tami está pensando, mas o meu rosto certamente me denuncia. “Você está preocupado, né? Impressiona mesmo”, diz Leonardo ao olhar para mim.

O aparelho que dispara o choque na medula de Fagner foi implantado há cinco anos na medula de Zadra. Desenvolvido pela clínica Mayo, dos Estados Unidos, o neuroestimulador tem a função de recuperar a memória do sistema nervoso. Fagner implantou dois: um numa região mais alta da coluna, para aliviar as dores, o outro mais embaixo, para ajudar na recuperação dos movimentos.

Hora de ligar o aparelho e começar a sessão de choques. Foto: Tami Taketani/Plural

Embora esteja com o aparelho no corpo desde 2019, ele nunca pôde iniciar a rotina de exercícios necessária para recuperar os movimentos. Um câncer que levou um dos rins dele e a pandemia – que obrigou Fagner, com seus problemas de imunidade, a se isolar numa cidadezinha do Rio Grande do Sul por medo do contágio – impediram que ele trabalhasse em sua recuperação como poderia. Mas agora chegou o momento.

Depois de ser literalmente guinchado para sua cadeira de rodas, ele chega a levantar por alguns centímetros a perna direita. A esquerda ainda não responde. “Já vi que quando voltar a andar vou ser ponto e vírgula”, diz ele, sorrindo.

Fagner está há cinco anos sem os exercícios de Leonardo, um parceiro que ele admira imensamente e com quem pretende abrir um instituto para ajudar pessoas com pessoas com tetraplegia, paraplegia, paralisia cerebral e outras deficiências. Mas ele sabe que o custo da retomada da rotina vai ser alto. Antes, mesmo sem os choques, Zadra conta que chegava em casa com tanta dor que chegava a vomitar. Tomava oxicodona, morfina e todo tipo de analgésico. Hoje, controla a dor apenas com canabidiol – isso quando sua pressão, que é sempre baixa, permite.

Leonardo Grilo fala comigo enquanto o paciente se exercita. Entrevistando Fagner, minha impressão era de que ele estava iludido com a possibilidade de recuperação. Aparentemente, não é bem assim. “Sabe aquele médico que saiu andando quando vocês chegaram? Ele estava numa cadeira de rodas também”, conta o fisioterapeuta. Vários não tinham aparelho neuroestimulador, mas com a fisioterapia especializada foram retomando a marcha.

“Desde que a medula não rompa, existe esperança”. A medula de Fagner, talvez de maneira milagrosa, não se rompeu, embora tenha sofrido uma pequena necrose. Existe esperança.

Cena 2

Fagner está numa festa. Ele tem 30 anos e foi convidado, praticamente intimado, a participar da abertura do Festival de Teatro de Curitiba. É dia 25 de março de 2014 e a carreira dele está decolando. O trabalho que ele começou na Internet com seu grupo Tesão Piá fez dele uma celebridade local. É o homem do momento.

Os vídeos no YouTube apareceram inicialmente com o nome “Como se fala em Curitiba”. Milhões de pessoas pararam para ver as cenas de alguém tirando um carrinho do jeito dos curitibanos. Além do sotaque e de expressões locais, a citação a marcas como a Cini, com sua inefável Gasosa de Gengibirra, e costumes como o tubão no Barigui fazem dos vídeos um sucesso absurdo.

O nome do grupo, que começa a ganhar palcos e outros públicos, passou para Tesão Piá depois que um espertinho registrou o nome “Como se fala em Curitiba”. Não importa. As coisas estão indo bem. O futuro parece promissor. Até que uma parte da decoração, uma bola gigante pendurada sobre o salão no pavilhão de eventos do Barigui, despenca sobre a cabeça de Fagner.

Charles ajuda Zadra a entrar no táxi adaptado. Foto: Tami Taketani/Plural

Mais tarde os médicos descobririam que ele quebrou quatro vértebras: C5, C6, C7 e T1. Em português claro isso significa: o pescoço foi destruído pelo peso imenso da bola. “Disseram que era isopor, que pesava 30 quilos. Balela, aquilo devia pesar dez vezes mais”, diz Zadra hoje.

Durante um bom tempo ele mexeria unicamente o queixo, preso a uma cama de hospital. Mas naquele momento, ele só pensava em uma única coisa: precisava sobreviver. E sabe-se lá por que, ele decidiu que duas coisas eram fundamentais, enquanto esperava o resgate. A primeira era se manter acordado. A segunda era manter os pulmões funcionando.

“Eu tinha feito dias antes uma sessão de conscienciologia e aprendi a direcionar energias. Mandei energia para o meu pulmão e não parei de respirar. Me mantive vivo”, diz ele em 2024. Em 2014, talvez pouca gente apostasse que ele viveria para contar algo assim.

Os dias seguintes são de comoção na cidade e pânico na família. Só com o tempo fica claro que ele vai sobreviver, mas vem a notícia que ninguém queria ouvir: ele está tetraplégico.

Cena 3

Estamos na casa de Fagner. Ele voltou há dois meses para Curitiba, depois de passar quatro anos no Rio Grande do Sul. O apartamento, grande, na região central, tem espaço para ele, o pai, a mãe, uma irmã e dois filhos dela. Tem espaço também para a cachorra Aninha. Além, claro, dos sete enfermeiros (que ele chama de assistentes) que se revezam dia e noite para ajudar em todo tipo de tarefa.

Fagner precisa de ajuda para muitas coisas, principalmente porque não consegue ainda controlar os dedos das mãos, que passam a maior parte do tempo dobrados. O movimento dos braços ele recuperou, o que permite, por exemplo, usar o celular e digitar mensagens. Para digitar no computador, onde ele escreve esquetes, peças e um livro de crônicas que diz estar pronto, foi preciso adaptar um aparelho de dentista (suas duas irmãs mais velhas, gêmeas idênticas, são dentistas).

Zadra recebe remédios de Rodrigo, seu enfermeiro e assistente. Ao lado, a mãe Rosilene. Foto: Tami Taketani/Plural

Os enfermeiros-assistentes cuidam dos remédios (são muitos), ajudam a lidar com situações cotidianas (entrar no carro, pegar uma garrafa com água, carregar o celular) e auxiliam na fisioterapeuta caseira, que toma quase toda a manhã.

Mas há mais: com o acidente, a bexiga de Zadra parou de funcionar, e a cada vez que ele precisa urinar, é preciso passar uma sonda peniana. Chegam a ser dez por dia, o que aumenta muito o risco de infecções urinárias. “Só de sonda são R$ 5 mil por mês, porque é um modelo especial”, diz Fagner.

Zadra no papel do italiano Alfredo. Foto: Divulgação

O intestino também não funciona sem auxílio, e os enfermeiros precisam manipular o ânus do paciente para que ele consiga ir ao banheiro. “Todo dia eu levo dedada”, ele diz. Mas no mesmo espírito de quem fala tudo ele conta que consegue tranquilamente ter vida sexual.

“Após a lesão, desenvolvi tato na ponta da língua e isso me dá uma vantagem enorme na cama com as mulheres. e também, depois que o bilau levanta, aguento horas com ereção! isso mesmo, HORAS. Obs: isso não é piada”, ele me escreve pelo zap. Apesar disso, Fagner diz que não está namorando. E logo em seguida emenda: por opção.

Na casa, quem mais conta histórias dele é a mãe, Rosilene. E fico sabendo que o drama do filho não foi, nem de longe, o primeiro da vida dela.

Claudio Zara, marido e pai dos quatro filhos de Rosilene, passou por todo tipo de coisa. Vários acidentes de carro. Teve um câncer. Chegou a ser desenganado. Mas a vez em que ele passou mais perto de morrer foi quando caiu, de cabeça, de uma pedreira de 17 metros.

Na físio com Leonardo Grilo: planos de abrir um instituto. Foto: Tami Taketani/Plural

O funcionário que mexia remotamente o guindaste entendeu alguma ordem de Claudio errado, fez um movimento inesperado, e o pai de Fagner foi dar um passo para trás, quando percebeu que não existia mais chão atrás de si. O tombo custou uma centena de fraturas pelo corpo.

O acidente foi em 2007. Curiosamente, sete anos depois, quando foi visitar o filho na UTI, Claudio anunciou que, enfim, estava largando as muletas.

A única coisa que me ocorre perguntar é: “Mas vocês são X-Men?”

Cena 4

Fagner está no palco. E dessa vez não foi fácil chegar lá. Rodrigo e Charles, o motorista de um táxi adaptado que atende Zadra quase sempre, dão um jeito de fazer a cadeira subir de ré a escadaria da entrada do Teatro da Reitoria da UFPR. Depois disso, é preciso uma segunda etapa, para passar da plateia ao palco. A escadinha, além de tudo, é curva.

Estamos fazendo uma espécie de inspeção para ver se ele tem condições de apresentar o prêmio que o Plural criou, o Melhor de Curitiba. Se não der, vamos trocar de teatro, não de apresentador. Mas com muito esforço, dá certo. Ele visita o camarim, dirige sua cadeira motorizada pelo palco. Zadra adora a cadeira, que faz impressionantes 17 km/h, muito acima do limite imposto mais tarde pela legislação de 15 km/h. Fagner diz que jamais vai trocar o seu modelo por outro mais lento.

Pergunto se ele não teve medo de subir aquelas escadas, mas Zadra não é de ter medo. Ele conta que já chegou a propor, certa vez, entrar num palco usando tirolesa. Mas ninguém deixou, claro. “Eu era mais xófem”, brinca ele.

Se fosse de se amedrontar fácil, talvez Fagner nem tivesse chegado até aqui. Como diz Rodrigo, o enfermeiro, a maioria das pessoas nem sabe que ficar preso à cadeira é só o começo dos problemas. Existem os problemas fisiológicos, como a paralisação de bexiga e intestinos. Depois vêm as escaras, feridas causadas pela ausência de movimento e que custam a curar. O excesso de remédios maltrata estômago e rins (Fagner continua achando que foi isso que lhe causou o câncer renal). As infecções urinárias são comuns. E às vezes, como agora, isso gera infecções por bactérias multirresistentes. Para dar uma ideia: em 2023, por todos esses problemas, Zadra teve quatro períodos de internação hospitalar.

Com a cachorra Aninha, em casa. Foto: Tami Taketani/Plural

Atualmente, Zadra não pode ter um mísero corte na pele porque isso vira uma infecção. Uma das vezes em que ele foi parar no hospital no ano passado foi por causa de uma espinha espremida. A infecção chegou a paralisar metade do rosto. Em outra ocasião, um pelo encravado gerou um abcesso.

E, convenhamos, além de tudo Fagner teve uma bela onda de azar. Depois de tudo o que passou, ainda foi picado por um escorpião. Mas também dessa se safou.

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No palco do Teatro da Reitoria, ele me conta como é difícil viver num mundo sem acessibilidade. Me conta também dos custos financeiros de sua vida. Os custos para pagar enfermeiros e todo o tratamento são estratosféricos. Para pagar tudo isso, Fagner se vira de todo jeito: faz shows, escreve, atua. A cadeira prejudicou sua carreira, mas nem de longe acabou com ela.

Show de 11 anos do Tesão Piá: Guairinha cheio. Foto: Divulgação

Por sorte, a família tem condições – mas nem sempre foi assim. Rosilene, a mãe, conta que arranjou o primeiro emprego antes da adolescência. Trabalhou de babá na mesma casa em que a mãe era cozinheira. Depois de muita história, a avó materna de Zadra conseguiu melhorar de vida: entrou no Tribunal Regional Federal fazendo cafezinho, e uma juíza teria se impressionado com a inteligência dela. A juíza virou uma espécie de madrinha da avó de Zadra, que acabaria sendo assistente de juíza.

Rosilene era bancária quando conheceu Claudio, o pai de Fagner. Casados, eles tiveram gêmeas e se mudaram para a pequena Planalto, de oito mil habitantes, no Rio Grande do Sul. “Foi lá que eu aprendi a chorar”, conta Rosilene. Sozinha enquanto o marido trabalhava, ela cuidava das gêmeas e depois de Fagner.

As coisas foram melhorando financeiramente quando a família abriu uma madeireira. Depois veio a pedreira, de onde Claudio tirava basalto para fazer brita. Hoje, a família é dona de uma empresa de maquinário para mineração.

Fagner deixou a cidadezinha para vir estudar em Curitiba. O curso de Engenharia Civil, porém, ficou sem concluir: a fratura do pescoço aconteceu no último semestre da faculdade. O legado de Fagner como estudante da UFPR, porém, ficou. Junto com Alanderson Essenfelder e o professor Mauro Lacerda Santos Filho ele fundou um escritório modelo que, hoje, ele cobra que faça intervenções de acessibilidade em Curitiba. Por exemplo, implementando equipamentos de acessibilidade no Teatro da Reitoria. “Daria para colocar uma rampa retrátil aqui”, diz ele para o administrador do local. 

Cena 5

Fagner está no palco. É o aniversário de 11 anos do Tesão Piá, e além dos quatro integrantes remanescentes do grupo (Fagner, Cadu Scheffer, Jessica Medeiros e Luana Roloff), o diretor Andrei Moschetto e outros convidados estão em cena no Guairinha. A casa está cheia.

“O palco é o único lugar em que eu não sinto dor”, diz Zadra. Ele começa a preparação no camarim com perucas, um bigode falso improvisado (o outro, mais caro, feito com pelos dele de verdade, foi roubado no camarim do Regina Vogue meses antes) e a primeira troca de roupa. Zadra vira Alfredo, um italianão de Santa Felicidade que vai fazer uma cena de pesca com conversas cheias de humor curitibano. Funciona: a plateia ri o tempo todo.

Depois da cena, Zadra dirige sua cadeira rápido para o fundo do palco, onde protegido pelas cortinas, vai fazer junto com Rodrigo as trocas de roupa. Ir para o camarim, com a porta estreita, a cada vez, está fora de questão.

Cartaz do “Combate PCD”: brincando com a própria deficiência

Rodrigo ajuda a tirar a roupa e junto com Charles, o taxista, coloca o vestido de Úrsula em Fagner. A próxima personagem é uma perua do Shopping Patio Batel, e Rodrigo capricha na maquiagem. Fagner fez questão que eu assistisse todas as trocas e acabou sendo providencial: na ausência de luz é a lanterna do meu celular que permite uma maquiagem mais decente e o último retoque na peruca loura.

A última troca é para colocar camiseta do Tesão Piá e participar do número musical final. A noite foi um sucesso.

Esse não é o único espetáculo que Zadra faz. Atualmente ele também divide o palco com Claudinho Castro, um humorista anão, no show “Combate PCD”. PCD é a sigla para “Pessoa com Deficiência”. Os dois chamam um outro humorista, que pode ser cego, por exemplo, e cada um faz seu ato de 20 minutos. Depois vem a atração principal.

Claudinho e Zadra passam a se enfrentar no palco com xingamentos e brincadeiras que ficam no limite do bom gosto sobre as deficiências que enfrentam. Claudinho por exemplo, diz que Zadra não tem como fazer comédia “stand up”. Zadra responde com o clássico “O que vem de baixo não me atinge”, e assim por diante. Como sempre, funciona.

Cena 6

Não sei onde Zadra está. Pergunto para ele se não estamos exagerando na exposição ao contar detalhes tão íntimos como os que vão nesta matéria. Vejo que ele começa a digitar. Logo surge a resposta.

“Capaz, pode pôr o que vc quiser. Só põe que estou sempre atrás para resolver. Mas além de poder, vc DEVE pôr, até pela identificação com outras pessoas com deficiência.”

Aceito a missão e começo a escrever.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Nada pode parar Fagner Zadra”

  1. Galindo, brilhante seu texto. Uma história onde pulsa emoção, humanidade, realidade, enfim a vida como ela é. Com seus dramas, paixões, medo e acima de tudo, sonho e esperança. Parabéns!!

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