Em 5 anos, ao menos 760 pessoas morreram em unidades prisionais do Paraná

Dados foram levantados pela Defensoria Pública do Estado do Paraná a pedido da Rede Lume; morte natural e homicídio são as principais causas

Esta reportagem foi publicada originalmente pela Rede Lume de Jornalistas. O Plural é parceiro da Rede Lume e incentiva fortemente seus leitores e assinantes a apoiarem o projeto

Ao menos 760 pessoas morreram em unidades prisionais do estado do Paraná entre 2018 e 2022. Os números foram levantados pelo Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (Nupep) da Defensoria Pública do Estado (DPE-PR) a pedido da Rede Lume. As três principais causas identificadas são morte natural (338), homicídio (190) e suicídio (115).

Há, ainda, mortes classificadas como acidentais, por briga ou asfixia por enforcamento. Em 2020, 14 casos tiveram essas classificações. 

De acordo com a DPE-PR, apesar de altos, os números ainda não refletem a totalidade dos óbitos, uma vez que só chegam até o órgão os casos já acompanhados juridicamente por defensores. A reportagem solicitou dados completos ao Departamento de Polícia Penal do Estado do Paraná (Deppen), mas a assessoria informou que “informações sobre óbitos são dadas apenas pontualmente através de notas”.

Uma das mortes que compõem essa estatística é a de E.E.B., que foi a óbito em 29 de novembro de 2020, aos 29 anos. Causa da morte: tuberculose. Embora ele tenha permanecido internado por cerca de dois meses, a família sequer foi informada da internação. O caso é acompanhado pela DPE-PR.

“Ele ficou muito abatido, perdeu 30 quilos, e só quando não existia mais tratamento ele recebeu o diagnóstico. A mãe garante que ele não tinha tuberculose antes de ser preso e tem toda uma literatura associando as condições ambientais, a falta de assistência recorrente e o diagnóstico não precoce como fatores que contribuem para que a tuberculose exista”, explica a coordenadora do Nupep Andreza Lima de Menezes.

Sirlei Schiessl, mãe de E.E.B., conta que buscou informações sobre ele 15 dias antes da morte, por telefone, e foi informada de que o filho estava bem. 

“Até chegar a pandemia, em 2020, eu ia vê-lo uma vez por mês. Depois cortaram as visitas e, seis meses depois, começaram as visitas virtuais. Ele mandava cartas para mim, explicando o que eu podia mandar por sedex. Aí consegui marcar uma visita virtual com ele, de 15 minutos, e consegui vê-lo. Ele estava bem”, conta a mãe.

A visita seguinte acabou sendo muito rápida por problemas de conexão. Sirlei tentou novos agendamentos por e-mail e contato por telefone, mas, segundo ela, não obteve retorno.

“Um dia consegui falar por telefone com uma assistente social e perguntei dos e-mails sobre a visita e se ele estava bem; ela respondeu que sim. Mas já fazia mais de um mês que ele estava internado no CMP (Complexo Médico Penal) com tuberculose e ela nem sabia”, relata. Antes da internação, E.E.B. estava detido na Penitenciária Estadual de Piraquara II.

No dia 30 de novembro de 2020, Sirlei estava com a família no supermercado quando recebeu um e-mail da unidade prisional solicitando contato imediato. No retorno da ligação ela foi informada do óbito do filho.

Galerias do Complexo Médico Penal/Foto: Plural.jor

“Falaram para mim ‘Seu filho faleceu’. Eu disse ‘Mas não faz 15 dias que liguei e você disse que ele estava bem. O que aconteceu? Mataram ele aí dentro?’ Ela disse que ele tinha morrido de uma doença pré-existente, que a gente nunca soube que ele tivesse”, detalha.

E.E.B. estava tão magro que a mãe custou a reconhecê-lo no IML. “Ele estava esquelético, com o corpo cheio de hematomas, cheio de escaras, sujo, usando fralda. Estava horrível”.

“Tem uma parte no prontuário que diz que ele estava consciente e solicitava a presença da mãe. Em nenhum momento eu fui avisada. Depois tem uma outra enfermeira que fala que ela conseguiu que ele fosse para um lugar com outro preso que pudesse cuidar dele. Eu fico pensando, em cuidados paliativos, podia estar em casa com a família”, lamenta a mãe.

No atestado de óbito consta tuberculose e HIV. A Defensoria entrou com processo pedindo indenização do Estado por negligência nos cuidados com E.E.B. “Tanto tuberculose quanto HIV têm tratamento”, argumenta Sirlei.

“Dinheiro nenhum vai trazer a vida do meu filho de volta, mas qualquer dinheiro que o Estado tenha que desembolsar vai fazer com que o próprio Estado encontre e puna os culpados”.

O Deppen enviou nota sobre a comunicação de óbitos, na qual afirma: “A Polícia Penal do Paraná informa que os óbitos das pessoas privadas de liberdade (PPLs) ocorridos nas unidades penais são atestados pelo SAMU, momento em qual o IML passa a ser acionado, e se necessário autoridades competentes, e o óbito é informado ao familiar registrado no prontuário.”

Sobre o caso específico de E.E.B., a assessoria informou que não comentaria por ter ocorrido em 2020 e em outra gestão do departamento.

‘Alguém é responsável’ pelas mortes

A luta da família de E.E.B. por responsabilização por sua morte não é trivial. Poucas famílias procuram esclarecer as condições dos óbitos, especialmente quando não envolvem doença.

“Acho que boa parte das famílias não quer se envolver, tem muito receio do sistema. Por isso que esses casos, quando envolvem saúde, têm muita participação. Eles querem explicação, porque a pessoa entra saudável e adoece lá dentro”, explica a coordenadora do Nupep Andreza de Lima.

“A gente abre procedimentos, tenta trazer elementos para saber quem pode apontar como responsáveis por essas mortes. Porque não tem jeito, alguém é responsável. A gente tenta localizar, encaminhar para quem tem que apurar; tenta reunir pelo menos um arcabouço mínimo de provas para levar ao Ministério Público para dizer que houve algum tipo de negligência. Junto às famílias que procuram a gente tenta a responsabilização civil também”, detalha.

Política de ‘deixar morrer’

Os números são reflexos do caos identificado pela DPE-PR durante as inspeções. Espaços não ventilados, não iluminados, quase sempre superlotados; sem assistência médica regular, mas restrita a atendimentos de urgência e emergência. Ambientes normalmente hostis, onde as organizações criminosas encontram terreno fértil para dominar. 

Ontem (03) o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu um prazo de seis meses para que o Governo Federal apresente um plano de reestruturação que garanta os direitos das pessoas presas. Esses planos, depois, serão adaptados por Estados e municípios.

“A percepção que a gente tem é que existe uma política, ainda que não declarada, de deixar morrer. Uma necropolítica. Ela segue mais ou menos o que a gente vê em relação à população pobre, preta, em geral. Isso é só mais um aspecto da omissão do Estado”, opina a defensora. 

As mortes por causas naturais, por exemplo, ocorrem com frequência por doenças que não levam à morte entre a população geral. Trata-se de uma consequência da insalubridade das prisões.

“É algo que a prisão produz, de ser uma máquina de morte. Justamente provocada por toda a omissão que existe em relação à prisão, pela falta de estrutura adequada à existência humana”, defende. “E o Estado assistindo isso tudo e como que permitindo acontecer”, constata Andreza.

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Familiar sobre mortes: ‘Medo’

Uma articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento em Curitiba, que preferiu não se identificar na entrevista, argumenta que os presos têm, continuamente, seus direitos violados no sistema. “Eles estão privados de liberdade, os outros direitos fundamentais eles ainda possuem, os escritos no art 5o da Constituição”, defende.

Para ela, que é esposa de um detento, ouvir notícias sobre mortes dentro das unidades traz a sensação de medo porque lá dentro “qualquer motivo pode ser motivo para uma morte”. “Teoricamente eles estão sob custódia do Estado, então a gente tinha que ter uma segurança. Pensa: se alguém tenta te matar por qualquer motivo aqui fora você tem para onde correr; lá dentro, não. A gente fica meio de mãos atadas. E muitas vezes, como aconteceram em várias mortes dessas, eles nem avisam a família. É um descaso total”, comenta. 

Todos os primeiros domingos do mês a Frente promove a ação “Solidariedade Antiprisional” em frente ao complexo de Piraquara, região metropolitana da capital. Eles emprestam roupas, dão café para as pessoas e informam sobre direitos e canais de denúncias.

“A gente também fala o que faz. Temos grupo de whatsapp chamado “Recomeço”, feito pelas articuladoras da Frente. Acho que temos entre 500 e 600 pessoas, para tirarem dúvidas, alguma questão que pode ir ou não na sacola. Porque o Deppen disponibiliza a lista, mas tem muita gente que não sabe ler, que não tem acesso a tecnologia. E fazemos muitos ofícios também”, conta. 

Frente busca informar famílias

A Frente Estadual pelo Desencarceramento ganhou uma representação ativa em Londrina em 2022. O objetivo do grupo é agregar familiares de presos para a garantia dos direitos e acesso às informações, como explica uma das integrantes, Natália Lisboa.

“Os familiares precisam acessar as informações para conhecerem os próprios direitos, porque muitas coisas não são passadas e é direito. Exemplo: muitas mulheres não têm todas as informações na primeira visita, sobre questão da roupa, de alimentação, do que entra ou não. Tem os direitos: por exemplo, se alguém da família morre o preso tem direito de ir ao velório; a procura da Defensoria não é só no dia da audiência, o familiar pode ir lá se informar e entender como está o processo”, exemplifica.

A Frente recebe apoio jurídico dos mandatos do deputado estadual Renato Feitas e da deputada federal Carol Dartora. Os familiares têm sido orientados a encaminhar denúncias, reclamações e pedidos de informação à diretoria das unidades e órgãos gestores, como Secretaria Estadual de Justiça e Deppen. 

“A gente tem dado essa orientação de isso ser sinalizado através de e-mail e pontualmente eles têm resolvido as situações”, diz Natália.

Pastoral contesta encarceramento em massa

A Pastoral Carcerária vivencia a situação prisional em todo o país há décadas e entende o encarceramento em massa como uma política que precisa ser revista.

“Quando você pensa que qualquer tipo de delito a pessoa já é diretamente encaminhada para o sistema penitenciário, e quando você olha que quase 50% dos detentos são provisórios, são pessoas que não precisariam estar todas lá. A pastoral não defende abrir as portas da cadeia, quando a gente fala em desencarceramento em massa é nessa perspectiva, de garantir direitos, que tenham acesso a advogados, porque a Defensoria também está defasada de pessoal”, explica a voluntária Cristina Coelho, da Regional Sul 2 da Pastoral e coordenadora da questão da mulher presa.

Ex-trabalhadora do sistema, Cristina vê uma desestruturação dos serviços com reflexos no atendimento dado aos presos, presas e seus familiares. Sobre a questão de informar óbitos, por exemplo, ela ressalta que acaba ficando para a assistência social.

“O serviço social não teve mais concurso, está completamente defasado. Por exemplo, uma unidade com 1 mil presos tem uma assistente social. Então não dá conta. Outra coisa é o próprio sistema que está mudando a forma de condução do trabalho. Com a chegada da Policial Penal a questão passou mais para segurança, contenção, do que técnica. Não tem mais profissionais técnicos nas áreas de psicologia, pedagogia, odontologia”, explica.

Para ela, o sistema caminha para uma terceirização.

‘Sistema acaba com a saúde mental, do preso e da família’

Natália Lisboa, da Frente pelo Desencarceramento em Londrina, acredita que as mortes, especialmente por doenças, estejam associadas às más condições das prisões e até à falta de projetos de ressocialização.

“O sistema acaba com a saúde mental, do preso e da família. Essas mortes, inclusive sem explicação, também acontecem por não ressocialização. O cara fica o dia inteiro naquele quadradinho fechado com 8, 10 homens, só assistindo televisão”, expõe. Para ela, o estudo e o trabalho deveriam ser mais facilitados pelo sistema.

“As filas são imensas para trabalho e escola. Se todos tivessem acesso seria o melhor dos mundos: saia de manhã para estudar, poderia a tarde trabalhar, com remuneração justa revertida para os familiares ou até poupança. Porque quando eles saem têm que pagar um valor para o Estado, dependendo do crime. No nosso ponto de vista é pedir para voltar à marginalidade”, conclui.

Prisão remete ao período escravagista 

A coordenadora do Nupep da DPE-PR, Andreza Lima, enxerga uma tolerância cultural muito intensa da população brasileira com as violações de direitos dentro do sistema prisional. Não existe espaço para problematização da temática.

“Talvez a gente possa creditar a um período de escravidão muito extenso no nosso país e até à história das próprias prisões têm a ver com esse período. Além de ser espaço de punição para crimes, também era usado para castigo corporal das pessoas escravizadas”, relembra. 

A visão de encarceramento como solução não reflete a realidade, argumenta Andreza. “Por isso a gente vê esse cenário de encarceramento em massa. Podia tentar pelo menos reduzir essa população carcerária. Tem que ser algo pactuado entre as instâncias. A outra coisa seria prover espaços adequados à existência humana: ventilados, com luz natural”.

Não existe na maioria das prisões paranaenses, por exemplo, um lugar para lavar e estender roupas. As vestimentas acabam secando dentro das próprias celas. “Até por isso tem doenças de pele na cadeia que você não vê em lugar nenhum da sua vida”, diz Andreza. 

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