Educação no Brasil: um debate enviesado

Rodrigo Horochovski diz por que a análise pessimista dos dados do PISA não faz sentido

Nesses primeiros meses da gestão atual, as ações do governo federal na área da educação têm sido cercadas de polêmicas. Uma delas, talvez a principal, surgiu em meio ao contingenciamento de recursos orçamentários destinados às instituições federais de ensino (notadamente as universidades e institutos federais distribuídos por todo o território nacional).

Ao mesmo tempo em que instilou o temor na comunidade universitária de não haver dinheiro para a sobrevivência básica das instituições, a decisão teve o condão de pôr em pauta a discussão de quanto o Brasil gasta em educação e a eficiência deste gasto. Infelizmente, é um debate enviesado, que se tem prestado a toda sorte de distorções.

Neste artigo, abordo especificamente uma das distorções: o uso do desempenho do Brasil no PISA para argumentar que o investimento é alto e ruim, na medida em que a educação estaria piorando no país, especialmente quando em comparação com a realidade internacional. Tento mostrar que, além de isso ser um equívoco, temos aqui o típico problema de olhar a cena final sem assistir ao filme inteiro.

Um exemplo recente. No site de um jornal de grande circulação, um articulista afirma que o desempenho de nossos estudantes teria estagnado e, na comparação com outros países, o quadro seria ainda pior, já que teríamos caído da 36ª para 65ª entre a primeira e a última edição do PISA. Cheguei ao artigo pelas redes sociais. Alguém o esgrimiu como base em uma discussão. Todavia, quem escreveu o artigo deixou de tomar alguns cuidados na apresentação dos dados. Cito dois:

– Qualquer pessoa que leia os relatórios saberá que, em sua primeira edição, o PISA apresenta resultados para apenas uma área, Leitura; as outras duas, Matemática e Ciências, aparecem na segunda e terceira edições, respectivamente.

– O mais importante, porém, é que entre a primeira e a última das seis edições (2000 e 2015), o número de participantes quase dobrou, saltando de 40 para 73[i]. Uma comparação correta contaria apenas com os participantes das duas edições ou faria os devidos alertas.

Para discutir o tema com alguma propriedade, em primeiro lugar é necessário saber o que é o PISA. Trata-se do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (no original, Programme for International Student Assessment). Sob responsabilidade da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o programa tem, entre seus objetivos, avaliar o nível educacional de jovens de 15 anos que estão, pelo menos, no equivalente à sétima série do ensino fundamental. Aqui abro parênteses: considerando a população-alvo, usar o PISA em discussões sobre a qualidade das universidades brasileiras, como se vê por aí, não tem muito cabimento. Fecha parênteses. Participam estudantes dos 34 países-membros do organismo e parceiros, como é o caso do Brasil – não entra a grande maioria dos quase 200 estados nacionais que existem atualmente.

Outra informação é importante para entender o que o PISA mede: a avaliação é feita com uma amostra de estudantes em cada país e, como em toda pesquisa deste tipo, ela apresenta diferentes margens de erro, em função dos tamanhos das amostras. Isso afeta a significância estatística da comparação entre diferentes anos. Feito este esclarecimento, vejamos alguns dados.

Os gráficos abaixo mostram as diferenças de desempenho em pontos entre a primeira e a última avaliação em cada uma das três áreas examinadas. Obviamente, estão aqui somente os países que participaram de ambas as rodadas em cada uma das provas. Nas três áreas, considerando apenas os resultados numéricos, um grande número de países viu o desempenho de seus estudantes oscilar negativamente[ii].

Em todos os casos, o avanço brasileiro foi superior à média nas três áreas, mesmo com a ligeira queda de desempenho do país entre 2012 e 2015. Sem querer entrar muito nas tecnicalidades estatísticas, vale mencionar que em dois (matemática e ciências), ficamos no quartil superior, ou seja, entre os 25% que mais avançaram, sendo que, em Matemática, a melhoria foi estatisticamente significativa. A turma que vem dizendo que o problema é falta de tabuada precisa refletir.

Fonte: OCDE

Em suma, só faz sentido olhar e analisar o ponto de chegada se olhamos e analisamos o ponto de partida. Tal como ocorreu com outros países em desenvolvimento, o Brasil saiu muito atrás, mas reduziu as distâncias que o separavam tanto da média internacional, quanto das nações com melhor desempenho. Na verdade, o fato é que, enquanto o Brasil melhorou seu desempenho, outros países, principalmente os mais bem colocados, pioraram, inclusive alguns que têm sido apresentados acriticamente como modelos a serem seguidos. Esta é para fazer pensar aqueles que acham que há soluções mágicas e que só nós temos problemas.

Até aqui tudo é bastante discutível e dependente das lentes que o observador escolhe para olhar o fenômeno. Há, porém, um dado incontrastável: o Brasil conseguiu manter e até elevar seus níveis de qualidade ao mesmo tempo em que realizava uma das maiores inclusões educacionais da história recente em todo o planeta.

Em 2003, quando da realização da segunda rodada do PISA, 65% da população alvo do programa cumpria os requisitos para participar da avaliação (estudantes de 15 anos, que estavam pelo menos na 7ª série). Em 2015, eram 71%. Entre os 40 países em que é possível comparar os dados, ficamos apenas atrás da Turquia em termos percentuais e num primeiríssimo lugar em números absolutos, com mais de meio milhão de estudantes adicionados à população escolar avaliada. Aliás, quem realmente fuçar os relatórios, descobrirá que quase metade dos países viu seu número de estudantes encolher.

É sobretudo para este último dado que temos de olhar quando analisamos a evolução dos gastos com educação. De fato, eles tiveram entre nós um aumento expressivo e virou moda compará-los com outros países, em geral muito mais ricos. No entanto, esses países invariavelmente têm populações em idade escolar relativamente muito inferiores às do Brasil e universalizaram a educação há muitas décadas, mais de um século em alguns casos. Aqui também é preciso ver todo o filme.

Se observarmos os países que participaram da primeira e da última edições do PISA, veremos que o alto dispêndio em educação pública é algo recente no Brasil. Considerando a média anual de gasto em relação ao PIB entre 2000 e 2015, o país fica numa razoável 15ª posição entre 34 países para os quais esses dados são comparáveis – com pouco mais de 5%. Médias, no entanto, às vezes dizem pouco.

Em 2000, o país desembolsava menos de 4% do PIB com educação pública e estava entre os que menos gastavam. Conforme podemos observar no gráfico abaixo, no início da série, estávamos bem atrás da média dos países que participaram do PISA em 2000 e 2015. Apenas em anos mais recentes passamos a figurar entre as nações que mais colocam recursos públicos na área. É ingênuo ou desonesto não considerar esta dinâmica.

Fonte: Unesco

Outra ingenuidade (ou desonestidade) está em insistir no uso do porcentual do PIB gasto em educação sem considerar a repartição de responsabilidades na área entre os 5.598 governos que existem na federação brasileira. Dos cerca de 6% do PIB gasto em educação pelo Brasil, o governo federal contribui com menos de 2% (ou seja, é responsável por uma parcela inferior a um terço de todas as despesas). Os quase seis mil governos subnacionais – estados, municípios e o Distrito Federal – entram com a maior parte, justamente porque são os responsáveis principais pela educação básica. E não é uma jabuticaba. É assim no Brasil, é assim em quase todo o mundo.

Não entro aqui na discussão sobre a composição dos gastos – é necessário entender o que é despesa obrigatória e o que é despesa discricionária, o que de fato é gasto com educação e o que é alocado no orçamento da área sem ser de fato gasto com educação, os repasses intergovernamentais e assim por diante. São tópicos para outros textos. Por ora, quero reforçar que nossos governos têm o desafio de manter e acelerar o processo de melhoria. Faço isso sem dourar a pílula. A distância a percorrer é enorme e a perda de desempenho do Brasil na última edição deve ligar um sinal de alerta. A questão é que, numa análise longitudinal de longo prazo, há mais de um aspecto favorável ao país em uma avaliação que está sendo usada quase que exclusivamente para rebaixá-lo. Em geral, valeu o investimento.

Finalizo lembrando que a leitura de um artigo como este nunca substitui a consulta direta aos dados, em suas fontes originais. Recomendo enfaticamente que o leitor interessado no tema mergulhe nos relatórios do PISA. Estão todos disponíveis no portal da OCDE, neste endereço: http://www.oecd.org/pisa/. Para os gastos com educação, utilizei dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura): http://data.uis.unesco.org/.


[i] A maioria dos participantes é formada por países, mas há também cidades, inclusive dentro de país avaliado (Buenos Aires, Argentina) ou mais de uma cidade de um país (Hong Kong e Macau, China). Para facilitar a leitura, doravante refiro-me genericamente a países, a despeito de algum viés que isso possa introduzir.

[ii] Não houve alteração estatisticamente significativa em parte considerável dos países, em função das margens de erro.

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