Dezenas de araucárias são derrubadas em Campo Largo

Empresa de transmissão de energia destruiu 90 árvores nativas. Projeto, ironicamente chamado de Gralha Azul, pode ter impacto em áreas de proteção ambiental e reservas particulares no Paraná

“O supervisor me falou que já abateram muitas araucárias. E cada propriedade é numerada. A nossa é a de número 100. Teve lugar em que foram abatidas quase 100 araucárias em uma única propriedade. Já pensou?”, indigna-se o agrofloresteiro Leandro Schepiura. 

A fala é recente. O crime, também. Era fim de maio, período de reprodução da semente da árvore-símbolo do Paraná, quando cerca de 90 araucárias em plena produção foram abatidas em Campo Largo, Região Metropolitana de Curitiba.

O responsável tem nome: Gralha Azul. Não a ave-símbolo do Paraná – uma das espécies dispersoras do pinhão – mas o projeto da Engie Ltda. A empresa venceu um leilão federal para a instalação de mais de mil quilômetros de linhas de transmissão de energia, passando por 24 municípios paranaenses.

Leandro foi surpreendido, em 27 de maio, por um cenário de destruição quando chegou na propriedade que aluga para plantar alimentos orgânicos. Eram araucárias centenárias estiradas no chão, parte do pomar e da horta esmagadas pelo peso dos pinheiros e a cerca viva – que protegia a produção de contaminação pelos agrotóxicos dos vizinhos – roçada.

“Simplesmente, de um dia pro outro, entraram no espaço e derrubaram as araucárias em período de produção, sendo que é proibido por lei. E roçaram a cerca-viva, que é uma exigência, porque a gente é certificado orgânico. Então, agora estamos correndo o risco de perder o certificado por causa deles”, reclama o agricultor. Segundo ele, o dono da área autorizou a entrada dos funcionários da empresa e não avisou os arrendatários.

Vídeo de Leandro Schepiura
Vídeo de Leandro Schepiura

O projeto Gralha-Azul da Engie Transmissão de Energia recebeu do Instituto Água e Terra (IAT, antigo IAP) licença para instalação de um dos trechos da linha de transmissão, entre Bateias e Ponta Grossa, passando pelos municípios de Balsa Nova, Campo Largo, Palmeira, Porto Amazonas e Teixeira Soares.

As atividades começaram com a abertura de vias pelas propriedades, cujos donos aceitaram a indenização proposta. No Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), apresentado em outubro de 2018, a empresa fundamenta a obra na necessidade de “reforçar o sistema elétrico que supre a região Centro-Sul do Paraná, de forma a atender a demanda local até 2027.”

O problema

O dono autorizou, o IAT emitiu licença e a região demanda energia, então, qual o problema? Para começar, o Pinheiro do Paraná (Araucaria angustifolia), espécie ameaçada de extinção, é protegido por normativa do IBAMA desde 1976. Em seu artigo 1º, a DC 20 proíbe terminantemente o abate de “pinheiros adultos, portadores de pinhas, na época da queda das sementes, ou seja, nos meses de abril, maio e junho.”

A mata de Araucárias, que originalmente ocupava cerca de 200 mil Km², atualmente, não chega a 2% da original e o desmatamento cresce vertiginosamente. Cada araucária derrubada em período de produção de sementes, portanto, aproxima a espécie da extinção.

“Não temos como provar ainda se a Engie tinha ou não essas autorizações [para abate das árvores]. Mas como os proprietários foram abordados pelos funcionários que estavam derrubando as araucárias e eles disseram que eram do empreendimento da Engie, fizemos uma representação para o Ministério Público Federal, porque a derrubada configura crime ambiental”, explica a advogada do Observatório de Justiça e Conservação (OJC), Camila Agibert Maia.

Vídeo de Leandro Schepiura

Essa é apenas a ponta do iceberg. A pedido do OJC, especialistas analisaram o projeto e encontraram irregularidades de cunho ambiental e socioeconômico suficientes para preencher um relatório de 60 páginas. A caracterização da cobertura vegetal, por exemplo, não foi realizada conjuntamente com a rede hidrográfica, os corredores ecológicos, as unidades de conservação e as áreas com potencial para refúgio da fauna, aponta o relatório. Segundo a análise dos ambientalistas, não há georreferenciamento do local onde foram encontradas as espécies ameaçadas de extinção. O contrato de concessão prevê a necessidade de medidas compensatórias, que não foram apresentadas pela Engie. E a lista continua.

O relatório elaborado pela própria Engie apresenta 22 impactos do projeto na região, sendo apenas quatro considerados positivos: melhoria no sistema de transmissão de energia, aumento da arrecadação dos municípios, dinamização da economia local e geração de empregos. 

Dentre os impactos socioambientais negativos estão: alterações na qualidade do ar e do solo, aumento nos níveis de ruídos e de campos elétricos e magnéticos, aumento de pressão sobre áreas de importância ecológica, fragmentação e alteração de habitats, além de acidentes com animais e redução da cobertura vegetal.

Relatório de Impacto Ambiental da Engie

Daniella Chor, proprietária de uma fazenda no município de Palmeira, preocupa-se com a possível instalação de cinco torres no terreno da família. “Imagina uma torre de 60 metros. É como um prédio de 25 andares, passando uma energia com radiação fortíssima. Estudos comprovam que essa radiação é super nociva, não só para os humanos, como para o meio ambiente. Tem onça na fazenda, tem lobo-guará, tatu, codorna, gavião. Imagina a sensibilidade de um animal selvagem a esse barulho, a essa radiação. A gente tem que lembrar que os animais são seres sencientes. Eles têm direitos; a natureza tem direitos.”

Instaladas as torres, os danos seriam não apenas em áreas de produção agropecuária e reservas particulares. As linhas de transmissão passariam muito próximas ao Parque Nacional dos Campos Gerais e da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana.

Camila diz que é possível que as linhas cortem a APA, mas que isso ainda está em estudo pela equipe do OCJ. “Digo ‘talvez’, porque o mapa que contém a área da APA da Escarpa Devoniana, no site do IAT, não está correto. Como a Engie utilizou os mapas do site para os estudos, pode ter ali uma margem de erro”, percebe a advogada. 

Mais impactos

Os impactos socioeconômicos listados no relatório da Engie estão relacionados à produção de resíduos durante a fase de implantação do projeto, ao risco de acidentes de trabalho e à alteração da beleza cênica, de grande importância para o Turismo local. O aumento da pressão sobre os serviços públicos e a interferência na ocupação do solo e no cotidiano são também considerados prejudiciais à população.

Segundo análise do OJC, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) realizado pela empresa não apresenta detalhamento de como cada alternativa de traçado afetaria a APA, os objetos arqueológicos e as comunidades tradicionais.

O Observatório aponta, ainda, problemas relacionados ao licenciamento ambiental do projeto, emitido pelo IAT. Camila chama atenção para a falta de transparência, já que pela lei da Política Nacional do Meio Ambiente os processos de licenciamento ambiental são públicos. Os documentos não estão disponíveis no site do IAT e os ofícios encaminhados pela OJC ao órgão ambiental foram arquivados sem resposta, contrariando também a Lei de Acesso à Informação (LAI).

De acordo com a advogada, por se tratar de um projeto conquistado em leilão federal, o processo de licenciamento ambiental deveria ter sido feito pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Ademais, o projeto é considerado um empreendimento estratégico pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e o Decreto federal 8437/15 determina que empreendimentos estratégicos devem ser licenciados por órgão federal.

Outro ponto polêmico é o financiamento de parte do projeto pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDS), que aderiu aos padrões de desempenho de sustentabilidade da Corporação Financeira Internacional (Internacional Finance Corporation- IFC) em 2017. Todos os empreendimentos que ele financiasse, portanto, deveriam seguir esses padrões, o que não parece ser o caso do projeto Gralha Azul.

“Ainda estamos estudando todo o licenciamento, mas já nos deparamos com várias irregularidades com relação aos padrões de desempenho de sustentabilidade do projeto da Engie. Isso vai desde planos e programas que não foram apresentados para as comunidades, com relação à subsistência, passando por propriedades rurais que vão perder sua capacidade produtiva, por conta da implementação das torres e vias de acesso, até toda a legislação ambiental.  Eles falam da geração de emprego como algo positivo, mas não têm um plano de programa para mão de obra local. Isso também foge dos padrões de desempenho de sustentabilidade do IFC”, aponta a advogada. A instituição vai bancar R$1,4 bilhão do orçamento total de R$2 bilhões do projeto. 

“Dá até raiva pensar que o projeto se chama Gralha Azul. A araucária, que produz o alimento da gralha azul, está sendo devastada. Chega a ser irônico. A gente tem que pensar um pouco no que queremos como futuro”, pondera Daniella.

Mapa mostra por onde passarão as linhas de transmissão no Paraná. Foto: Engie

O que diz a empresa

Em nota, a Engie afirma que “o projeto Sistema de Transmissão Gralha Azul está sendo executado de forma correta, responsável e legal, cumprindo um plano rigoroso de mitigação e compensação de impactos ambientais, fruto de um rito de licenciamento ambiental que acompanha toda a realização do projeto.” De acordo com o texto, foram obtidas as Licenças Prévia e de Instalação, bem como, as autorizações para supressão da vegetação.

A empresa assegura que o empreendimento, considerado de Utilidade Pública, se faz necessário para reforçar o sistema elétrico na região Centro-Sul do Paraná, conforme demonstram os estudos realizados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) que apontou defasagens para atendimento à demanda de energia a partir de 2018.

“O projeto tomou o cuidado de desviar as linhas de transmissão de Unidades de Conservação de Proteção Integral, Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), núcleos comunitários e turísticos consolidados, territórios indígenas e comunidades tradicionais, resultando, assim, em um traçado que prioriza a passagem em áreas já antropizadas ou seja, áreas que já sofreram a ocupação humana em sua maior extensão.”

A Engie ressalta o respeito pelo Meio Ambiente e diz que “os impactos ambientais das Linhas de Transmissão, geralmente restritos à Faixa de Servidão, estão mais associados à supressão de vegetação durante a fase de construção. Esses impactos são especificados e mensurados nos Estudos de Impacto Ambiental apresentados como condição para a obtenção das Licenças Prévia e de Instalação junto ao órgão licenciador.”

A empresa explica que programas ambientais estão sendo implantados, como o monitoramento de flora, fauna e resgate de germoplasma, resgate e monitoramento arqueológico, gestão ambiental, educação ambiental e programas de recuperação de áreas degradadas. “O acompanhamento dos trabalhos de recuperação é contínuo, tanto nas áreas a serem recuperadas, quanto nas áreas já em processo de recuperação. “

Entre os impactos positivos do projeto a empresa destaca a identificação, proteção e conservação de patrimônio arqueológico na área do empreendimento e a contribuição à pesquisa científica da região, além de oportunidades de emprego nas áreas de construção civil, saúde e segurança do trabalho, ambiental e do terceiro setor.

“O empreendimento está sendo realizado com total transparência, principalmente, junto às comunidades adjacentes por onde as linhas passam, que desde a fase de estudos puderam esclarecer dúvidas e vêm sendo informadas sobre as etapas de construção.”

Em relação à travessia das linhas de transmissão sobre a unidade de conservação APA da Escarpa Devoniana, a Engie esclarece que foram feitas diversas vistoriais para emissão das Licenças Prévia e de Instalação do Empreendimento sem impedimentos para a passagem das linhas pela APA.

Sobre a supressão de vegetação nativa na Mata Atlântica, a Engie destaca que, segundo os órgãos ambientais, ela poderá ocorrer nos casos de utilidade pública. “Assim, conforme previsão normativa, foi obtida pelo empreendimento a autorização para a supressão vegetal, devidamente regulamentada pela Lei nº 11.428/2006, pelo Decreto nº 6.660/2008 e Resolução conjunta IBAMA/SEMA-PR/IAP nº 07/2008.”

Sobre o/a autor/a

5 comentários em “Dezenas de araucárias são derrubadas em Campo Largo”

  1. Mais um exemplo de negligência, descaso com as questão socioambientalistas. Órgãos públicos que deveriam proteger os biomas e só autorizar intervenção depois de todas exigências serem cumpridas ,mostram a ausência de comprometimento e nos levam a suspeitar de funcionários q foram “comprados” para que esse crime acontecesse! Criminosos malditos, a providencia divina não se omite!

  2. Mais um exemplo de negligência, descaso com as questão socioambientalistas. Órgãos públicos que deveriam proteger os biomas e só autorizar intervenção depois de todas exigências serem cumpridas ,mostram a ausência de comprometimento e nos levam a suspeitar de funcionários q foram “comprados” para que esse crime acontecesse! Criminosos malditos, a providencia divina não se omite!

  3. CONCORDO, QUE É LAMEMTÁVEL CORTAR TODOS ESSES PINHEIROS.
    MAS ALGUÉM TEM UMA OUTRA SUGESTÃO, ALÉM DE CRÍTICAS?
    PORQUE ENERGIA EM SUAS CASAS TODOS QUEREM.

    1. No caso não se trata de dar sugestão, mas de implementar intervenção no bioma de modo a causar o menor impacto possível! Sugestão cabe aos p“doutores” sérios e comprometido com as questões socioambientalistas, e provavel que pessoas envolvidas nesse assunto foram “compradas”. Agora é hora de uma investigação e punição aos malditos q se vendem por dinheiro!! Está escancarado q o modo como se deu o início dessa obra não deram a mínima importância para o bioma! Qualquer um pode sofrer as consequências por causa da devastação dos biomas, ciclones, enchentes etc, né?

  4. Roberto Xavier de Castro

    Muito bom o artigo. É uma situação que causa mesmo indignação a todos que amam a natureza e se preocupam com o futuro do meio ambiente, totalmente ligado ao nosso próprio futuro como humanidade. Tenho filhos, crianças que correm o risco de ter que viver em terra devastada. Hoje moramos no litoral, junto a Mata Atlântica, que vejo cada dia mais ameaçada, mais reduzida… É preciso encontrar mais pessoas verdadeiramente interessadas na defesa do meio ambiente.

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