Curitiba bate recorde com 84 mil em extrema pobreza

A pandemia fez crescer o número de curitibanos que vivem com até R$ 89 por mês

A pandemia expandiu a condição de extrema pobreza em Curitiba. Entre março de 2020 e abril de 2021, 15.225 novas pessoas passaram a fazer parte do conjunto de moradores da capital paranaense que vivem com renda per capita mensal de até R$ 89 – quase 17 vezes menos do que a menor faixa de salário mínimo vigente no Paraná, de R$ 1.467,40. Ainda com chances de estar subestimada, foi a quinta maior alta do país no período, em um movimento diretamente ligado à crise do coronavírus, mas que, como em todo o Brasil, já vinha se acentuando por causa do aumento acelerado da desigualdade.

Dados mais recentes do Governo Federal indicam que Curitiba tem, hoje, 84.057 moradores considerados extremamente pobres, conforme o critério de renda estabelecido pelo próprio governo. O contingente é um recorde de patamar de miséria para o município desde o início da divulgação dos dados, em agosto de 2012. Em março do ano passado, quando foram registrados os primeiros casos de contágio pelo Sars-Cov-2 no Brasil, esse total era de 68.832.

Os indicadores são da plataforma do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), banco de informações socioeconômicas do Ministério da Cidadania que serve como base para o repasse de renda e o planejamento de políticas de proteção social de diferentes esferas do poder. Números extraídos da plataforma mostram que a quantidade de pessoas em situação de pobreza – com ganho mensal per capita entre R$ 90 e R$ 178 – permaneceu constante diante da variação mínima de 40.511 para 40.774, revelando não migração entre as linhas, mas um aumento generalizado na massa de moradores da capital sem recursos necessários para a manutenção de estado digno de vida.

O crescimento fez com que a quantidade de cidadãos da capital em extrema pobreza atingisse em janeiro o dobro de moradores em condição de pobreza, até agora o ápice de um comportamento que vinha sendo registrado desde 2016, quando a miséria passou a superar a situação de pobreza em Curitiba. O retrato coincide com o primeiro mês sem pagamento do auxílio emergencial desde o começo da pandemia – as parcelas, com redução, só voltaram a ser pagas em abril – e ainda com a queda no ganho entre as famílias brasileiras mais pobres, o que corrobora o cenário generalizado do crescimento da miséria em praticamente todo o país.

Levantamento divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na quarta-feira passada (16) mostrou que quase 30% dos domicílios do Brasil pertencentes a famílias de renda muito baixa, com proventos mensais inferior a R$ 1.650,50, não tiveram renda de trabalho no primeiro trimestre de 2021, taxa que cai mais da metade – 13,99% –  se comparado às de renda média, entre R$ 3.383,38 e R$ 7.672,77, e para 3% em relação às de renda alta, com ganho maior que R$ 15.345,53.

Número pode ser maior

Especialistas alertam, no entanto, que a adoção da renda como o único critério para a classificação de pessoas e famílias em pobreza e em extrema pobreza pode desprezar a conjuntura real. Por isso, a quantidade de curitibanos – e brasileiros de uma forma geral – em situação de vulnerabilidade extrema pode ser muito maior do que apontam os registros oficiais. A explicação está no aspecto multidimensional da pobreza, ou seja, tem a ver com a impossibilidade de medi-la apenas pelo volume de recursos financeiros e sem considerar outros indicadores sociais fundamentais à vida digna, como acesso à saúde, educação e moradia, por exemplo.

“Esses valores de 89 reais e 178 reais não refletem a realidade de fato de uma pessoa em situação de pobreza. São valores irreais e com um objetivo, porque quanto mais baixo esse valor, menor será essa população”, pondera Junior Ruiz Garcia, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Grupo de Estudos em MacroEconomia Ecológica (Gemaeco) e integrante do Núcleo de Estudos em Economia Social e Demografia Econômica (Nesde). “A quantidade de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza em Curitiba, no Paraná e no Brasil pode ser muito maior do que a registrada. Ou seja, os dados que mostram que em Curitiba temos mais ou menos  84 mil pessoas em situação de extrema pobreza hoje podem ser bem maiores. Aquilo que parece que é um pequeno problema, na verdade é um problema que nós não sabemos o tamanho certo porque temos uma régua para medir esse problema que não é adequada”.  

Outros indicadores

Alimentada por títulos de “cidade modelo” e “cidade inteligente”, Curitiba tem alcançado patamares relevantes em métricas de indicadores sociais. No último ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), divulgado em 2010, a cidade ocupou o 10º lugar entre os municípios mais bem avaliados em relação a uma análise conjunta entre taxas de longevidade, educação e renda.

Em relação ao número de habitantes, o total de moradores da capital paranaense em situação de pobreza e extrema pobreza inscritos no Cadastro Único representa 6,4% da população. Mas o fato de ser um dos menores índices relativos entre todas as capitais – perde apenas para Florianópolis – não indica, na visão de analistas, controle, e sim características que tornam o problema mais localizado que em cidades de regiões como o Norte e Nordeste.  

O comportamento das taxas da capital paranaense é algo que vem sendo acompanhando para a elaboração de um estudo sobre distribuição territorial da desigualdade que começou a ser desenvolvido no ano passado pelo Grupo de Pesquisa e Extensão em Políticas Sociais e Desenvolvimento Urbano (PDUR), vinculado à UFPR. Para continuar a pesquisa é necessária a realização do Censo de 2020, adiada por causa da pandemia e do corte profundo de verbas repassadas ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Resultados preliminares já levantados pelos pesquisadores confirmam aspectos positivos, mas salientam as condições de pobreza localizadas e muito mais evidentes do que consta no imaginário geral.

“A média de desenvolvimento social de Curitiba, quando olhamos para ela de forma geral, é muito boa, mas quando vamos dividindo por bairros, para os setores censitários, vemos que a desigualdade é muito grande aqui. Temos setores em situação muito mais complicadas do que se acredita”, diz o professor do IFPR e pesquisador PDUR Luiz Belmiro. “Jáverificamos que de 2000 para 2010 houve melhora geral nos indicadores sociais, porém as áreas ricas se desenvolvem melhor ainda que as áreas pobres. Isso quer dizer que, mesmo quando tem melhorias na condição de vida das pessoas, quem está em áreas mais desenvolvidas geralmente tem melhorias mais consistentes que as pessoas que estão nas áreas mais pobres”.

O efeito pandemia

De acordo com Belmiro, o quadro ficou ainda mais evidente com a crise do coronavírus. Relatório publicado em março de 2021 pelo PDUR concluiu que a pandemia em Curitiba seguiu o padrão verificado nas demais metrópoles do país, com a doença seguindo o fluxo dos bairros centrais e mais ricos primeiros, para atingir posteriormente as periferias mais pobres. “Pessoas de menor renda e trabalhadores informais são os mais afetados pelos efeitos econômicos da pandemia, devido principalmente a sua dificuldade em aderir ao isolamento social”, diz trecho do documento, elaborado no âmbito de um estudo coletivo proposto pelo Observatório das Metrópoles.

Passando a crise sanitária – algo que Curitiba só deve começar a sentir a partir de novembro, de acordo com projeções –, a expectativa é de que os indicadores de pobreza e extrema pobreza na capital voltem aos patamares de fins de 2019. A diminuição substancial do impacto do problema depende de políticas estruturais cujos alvos dificilmente serão atingidos com programas que vêm sendo praticados. O ponto de partida, segundo Garcia, seria a aplicação de metodologias que conseguissem captar o perfil das famílias em condição de vulnerabilidade para começar a projetar políticas estruturantes de educação, alimentação, saúde e de ambiente, por exemplo, garantindo condições mínimas de cidadania.

“Precisamos tratar da pessoa ou da família em situação de pobreza e do ambiente em que ela vive, mas eu tenho também um problema estrutural do Brasil com efeito direto sobre a pobreza que é a extrema desigualdade. Não adianta nada eu fazer todas essas ações se eu não enfrentar o problema da desigualdade de maneira séria”, coloca o professor.

Relatório divulgado nesta terça-feira (22) pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) destacou uma lacuna entre riqueza extrema e pobreza extrema no Brasil e na América Latina sem precedentes, provocada, sobretudo, pela influência política exercida por quem concentra renda. Ataque à violência e a implementação de sistemas universais de proteção social redistributivos são uma direção possível, aponta o documento.

A pedido da Defensoria Pública da União (DPU), o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o Governo Federal implemente a partir do próximo ano um programa de renda básica de cidadania para os brasileiros em situação de extrema pobreza e pobreza, em valor a ser definido pela União. Na prática, a decisão chancela a regulamentação de um projeto de lei aprovado em 2004, mas nunca regulamentado. Pelo que ficou estabelecido, a previsão do pagamento já deverá constar na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2022. Para isso, o Ministério da Cidadania estuda reformular o Bolsa Família, que hoje paga, em média R$ 190.

Em Curitiba, a prefeitura pôs em prática um auxílio alimentar mensal de R$ 70 para as 35 mil famílias em situação de extrema pobreza e risco social da cidade. O vale, para ser gasto nos Armazéns da Família, foi chamado pelo prefeito Rafael Greca (DEM) de “solidariedade emergencial”, embora tenha sido lançado em abril, mais de um ano após o início da pandemia. O custo total do programa, válido até setembro, será de R$ 12,6 milhões.

Políticas conjunturais

Em resposta ao Plural, a prefeitura citou ainda outros programas criados, segundo a gestão, para diminuir os impactos sociais da doença na população curitibana. Na lista entram políticas conjunturais, como a abertura do Armazém da Família para pessoas em situação financeira instável por conta da pandemia e a ampliação da cobertura do Restaurante Popular. No ano passado, pessoas que vivem nos hotéis sociais do município passaram a ter direito a se alimentar gratuitamente nestes espaços.

Outro projeto apontado foi o Mesa Solidária, criado para atender a população em situação de vulnerabilidade social e econômica e em situação de rua – parcela que aumentou 1.000% em Curitiba desde 2012. A gestão informou ter ampliado as ações e mobilizações do programa, apesar de polêmica recente que o envolveu. Proposta encaminhada à Câmara Municipal pela própria prefeitura previa “regulamentar” o projeto, dificultando a doação de alimentos a moradores de rua pela população em geral. Por causa do impacto, a discussão foi interrompida até reestruturação.  

A Fundação de Ação Social (FAS), especificamente, respondeu que “tem otimizado esforços para atender a população mais vulnerável, executando diversas políticas públicas para promoção social” e disse que as famílias registradas no Cadastro Único “têm sido acompanhadas e monitoradas dentro de seus territórios” pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), que, por se encaixarem como atividade essencial, não interromperam atendimentos ao longo da pandemia.

A pasta confirmou que o aumento da pobreza e da extrema pobreza em Curitiba provocou uma alta na busca por atendimentos, “principalmente no que se refere a avaliação para concessão de  benefício eventual de subsídio alimentar para suprir suas necessidades básicas”. Em 2020, a FAS realizou 3.316 atendimentos, número cerca de 25% maior que 2019, que fechou com registro de 2.642 atendimentos.

Sobre ações relacionadas à saúde, a prefeitura respondeu que “o SUS está disponível à toda a população curitibana, garantindo o direito à saúde a todos”, sem relacionar qualquer política específica desenvolvida na área. Na educação, a gestão do Rafael Greca citou a entrega dos kits alimentação, instituída por lei federal. Alunos de famílias carentes, sem equipamentos necessários para o acesso às aulas remotas, segundo a nota, foram auxiliadas por meio de campanhas de arrecadação.

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2 comentários em “Curitiba bate recorde com 84 mil em extrema pobreza”

  1. Matéria super importante para os curitibanos enxergarem melhor a sua cidade, pois esse é um assunto espinhoso do qual ninguém quer falar.
    O problema da desigualdade que só aumenta precisa de uma solução urgente. O problema é mundial, mas muito mais acentuado na América Latina.
    É totalmente desumano os ricos ficarem cada vez mais ricos e os pobres serem convertidos em miseráveis, a classe média em pobre e assim por diante…

  2. Pela foto que vejo no artículo as casas de tijolos tem teto de zinco pelo menos, já vi pior, feito de tábuas e papelão no Rio de Janeiro por ejemplo, e também de que adianta se quem quer ser pobre de espírito é de mente mesmo que seja atendido em alimentação, saneamento, moradia, saúde e educação, o que menos querem é estudar e trabalhar, ese delírio de vítima, sei que não é fácil partir do zero mas tem gente que não se ajuda nem a sí propio e está jornalista também só critica, e sua solução mirabolante poderia ser mais efetiva se leva-se pra casa estes pobres coitados e ela atendesse pessoalmente, iría ver que muitos não querem ajuda pois gostam desse estilo de vida, acredite, pois no meu país já vi isso e aquí não é diferente.

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