Câmeras corporais para a Guarda de Curitiba custaram até 4 vezes mais que outros contratos

Sem licitação, serviço contratado do ICI é mais caro que os de SP e Rio. Procuradoria chegou a fazer questionamentos

O serviço de câmeras corporais da Guarda Municipal de Curitiba custou, em valor médio, até quase quatro vezes mais do que o previsto em contratos públicos recentes firmados com a mesma finalidade. Ao contrário de outros processos – dos governos de São Paulo e Rio de Janeiro, especificamente –, a solução foi incorporada à rotina dos agentes da capital paranaense sem licitação, em um trâmite com ressalvas importantes da própria Procuradoria-Geral.

A empresa escolhida pela gestão de Rafael Greca (PSD) para operacionalizar a captação, o armazenamento e a transmissão das imagens digitais captadas nas microcâmeras, as body cams, foi o Instituto Curitiba de Informática (de nome social Instituto pelas das Cidades Inteligentes, ICI), organização especializada em serviços de tecnologia da informação e comunicação. Nos últimos seis anos, segundo o Portal da Transparência, e entidade já fechou 21 contratos com a prefeitura, dos quais 19 foram por dispensa de licitação.

Desta vez, o ICI receberá R$ 791.325 por mês, cerca de R$ 9,5 milhões em um ano, para prestar os serviços de videomonitoramento à Guarda Municipal curitibana. Embora com algumas peculiaridades técnicas, a finalidade é exatamente a mesma de editais de licitação recentes lançados no país e que foram homologados a preços bem mais em conta: filmar e, assim, aumentar a transparência e a segurança das ações, tanto para os agentes como para os cidadãos.

Diferença de preços

O modelo vem ganhando força em estados e municípios desde 2018, quando a Polícia Militar (PM) de Santa Catarina adotou a solução e confirmou redução no uso de força pelos agentes e mais eficiência no encaminhamento dos casos.

Em São Paulo, o governo do estado já conduziu dois certames para gerir imagens das câmeras incluídas na rotina da PM no início do ano passado. Um dos pregões resultou em contrato de aproximadamente R$ 1,22 milhão por mês para a operacionalização do serviço relacionado a 2,5 mil câmeras, uma média de R$ 486 por cada equipamento. Em outro, o custo final foi de R$5,5 milhões pela gestão de 7 mil body cams – R$ 789,21 por aparelho.

No Rio de Janeiro, foi homologada em novembro de 2021 ata de registro de preços aberta pelo governo Claudio Castro para acoplar câmeras aos uniformes dos agentes de segurança. Lá, policiais civis também devem passar a usar. O processo prevê 21.571 body cams por R$ 6,4 milhões por mês, o equivalente a R$ 296 por câmera.

Exceto em Santa Catarina, onde as câmeras foram compradas para serem operadas internamente pela própria polícia, os editais de São Paulo e Rio de Janeiro abriram disputa para empresas interessadas em oferecer solução integrada de gestão, captação, transmissão, armazenamento, custódia e compartilhamento das imagens geradas pelas câmeras operacionais portáteis nas atividades policiais. Entram no conjunto, por exemplo, toda a infraestrutura virtual e física necessária para as atividades, incluindo as próprias câmeras, estações de carregamento dos equipamentos e descarga das imagens, e mão de obra de manutenção e suporte técnico, com diferenças técnicas entre elas que não interferem no objetivo da proposta.

A empresa nomeada pela gestão Greca também terá de oferecer a prestação de serviço completa, ou seja, além dos aparelhos, subsidiar os serviços de captação e tratamento de imagens de 675 câmeras – 515 para acoplar aos uniformes dos guardas e outras 160 instaladas nos veículos da corporação.

Os preços, por unidade, apontados no contrato são de, respectivamente, R$ 580 e R$ 770 cada. Mas as cifras não englobam as demais atividades vinculadas, que foram precificadas à parte. Portanto, se incluídas todas as demandas exigidas – como feito nos documentos paulista e carioca –, o custo mensal unitário desembolsado pela administração municipal chegaria a cerca de R$ 1.172, montante quase 300% maior do que o pago no Rio de Janeiro, e entre 48% e 141% a mais que nas contratações de São Paulo.

Questionamentos

A decisão da prefeitura de não licitar o serviço para a Guarda de Curitiba chegou a ser questionada pela própria Procuradoria-Geral do Município (PGM).

Em documento encaminhado ao Núcleo de Assessoramento Jurídico Especializado em Licitações e Contratos, a Superintendência de Tecnologia da Informação (SMDT), vinculada à Secretaria Municipal de Administração e Gestão de Pessoal (SMAP), defendeu suposta compatibilidade dos serviços prestados pelo ICI com a infraestrutura já empregada no programa “Muralha Digital”, iniciativa que absorveu o projeto das câmeras acopladas.

Hoje, boa parte das atividades que fazem parte do programa já são operadas pelo Instituto Curitiba de Informática, resultado de contrato de gestão assinado entre a prefeitura e a entidade em 2018, um ano após o retorno de Greca ao Palácio 29 de março, e que repassou à entidade os códigos-fontes de 183 sistemas de tecnologia da Informação e comunicação de propriedade do município. O contrato, prorrogado até dezembro de 2023, elenca uma série de serviços compatíveis com o ICI e passíveis de serem prestados ao município sem licitação em decorrência do acordo – a SMAP alega a gestão das imagens das câmeras corporais ser um deles, daí a justificativa da contratação direta.

O primeiro parecer da PGM, no entanto, exigiu da prefeitura respostas que não estavam tão claras. Documento despachado em 3 de maio pelos procuradores Luis Miguel Gutierrez e Chris de Almeida Guimarães da Costa atenta que “conveniência administrativa” de entregar o serviço a uma entidade só por ela já estar contratada não seria justificativa legal para dispensar licitação. “(…) é impossível outra empresa realizar os serviços descritos na necessidade da SMDT traduzidas no Termo Referência produzido a partir do conhecimento técnico da SMAP TI, e assim ser inexigível a licitação com base no art. 25 da lei 8.5666/93? Se não, não há motivo legal para a não realização de licitação, sendo sua dispensa irregular e passível de questionamento pelos órgãos de controle e judiciais”.

A colocação dos procuradores ainda questionou o uso do Muralha Digital como impeditivo para a prestação do serviço de body cams por outras empresas e afastou suposta urgência demandada pelos responsáveis como justificativa para dispensar a licitação.

“Cumpre frisar que o açodamento no prazo para esta evidente necessária contratação, exigindo-se urgência para atendimento ao serviço apontado, não pode ser justificativa para se dispensar a licitação como pretendido, e, havendo a robusta justificativa para que haja uma inexigibilidade ou dispensa, com o fundamento legal apontado inclusive na minuta de contrato (que atualmente não consta, diga-se), não se aprova a contratação direta, devendo se trilhar pelo processo licitatório, que poderá ser o de melhor técnica e preço caso haja elementos técnicos desejáveis e objetivos que tenham relevância para a prestação final do serviço”, diz trecho.

Os pareceres da Procuradoria-Geral não são determinantes e têm apenas caráter de opinião jurídica. Cerca de um mês depois, contudo, despacho final da PGM opinou favoravelmente à contratação direta do ICI, em análise aos aspectos jurídicos do procedimento. Assinaram o documento os procuradores Chris de Almeida Guimarães da Costa e Ricardo Luiz Palazzi.

Embora a prefeitura de Curitiba tenha citado em posicionamento à Procuradoria uma pesquisa mercadológica anterior, com a proposta do ICI sendo a mais vantajosa, o município já vinha fazendo testes de uso de câmeras acopladas em parceria com o Instituto desde o ano passado. Em outubro de 2021 foi anunciada a entrega das primeiras seis câmeras de corpo à Guarda Municipal para uma fase de testes.  O Portal da Transparência indica que a abertura do edital do processo de contratação dos serviços relacionados às body cams para o município foi em 10 de junho. Menos de duas semanas depois, o contrato com o ICI passou a vigorar. O prazo é de um ano.

O vice-prefeito Eduardo Pimentel, Rafael Greca e i secretário municipal de Administração e de Gestão de Pessoal, Alexandre Jarschel, com as primeiras câmeras para teste da Guarda, em outubro de 2021. Foto: Divulgação/SMCS

Comparações

À reportagem, a Secretaria Municipal de Administração e Gestão de Pessoal disse que comparações com outras cidades devem levar em conta todas as especificidades dos serviços contratados.

No caso de Curitiba, lista a pasta, o prestador, entre outras atribuições, “deverá ter à disposição peças para reparar os equipamentos, fazer a reposição imediata de equipamentos em caso de vandalismo, furto ou roubo envolvendo as câmeras corporais, dock stations (centrais de armazenamento e carga das câmeras), câmeras veiculares, gravadores digitais (NRV), chips, suportes das câmeras, manter e garantir a conectividade, executar a infraestrutura para conectividade, adquirir licenças compatíveis com a solução de videomonitoramento da Muralha Digital, manter a versão da solução de videomonitoramento atualizada, manter servidores para armazenamento pelo período estabelecido por lei”.

Os mesmos requisitos, com exceção às câmeras veiculares e, obviamente, a compatibilidade com o programa Muralha Digital, estão descritos no Termo de Referência e no Projeto Básico que detalham a prestação do serviço, respectivamente, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Os documentos são públicos e foram consultados pela reportagem.

Ainda de acordo com a SMAP, os serviços contratados do Instituto das Cidades Inteligentes incluem a implantação de infraestrutura e conectividade para o descarregamento de imagens em 25 estações da Guarda Municipal, compartilhamento das imagens na central de videomonitoramento e armazenagem via conectividade ao data center do Município.

Apesar do questionamento, a pasta não informou se levou em consideração as observações do primeiro parecer assinado pela PGM.

Mas destacou que “realizou previamente orçamentos em empresas do mercado e, dentre eles, o do ICI apresentou a menor cotação. Além disso, o Instituto conta com infraestrutura já implantada e compatível com a tecnologia demandada, conforme a legislação municipal” – como já havia justificado à PGM.

A secretaria acrescentou ainda a dispensa de licitação é um recurso previsto em lei específica “que reconhece a possibilidade de celebração desse tipo de contrato de prestação de serviços com organizações sociais com as quais haja contrato de gestão, como já acontece entre a Prefeitura de Curitiba e o ICI”.

O ICI não se manifestou.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Câmeras corporais para a Guarda de Curitiba custaram até 4 vezes mais que outros contratos”

  1. Algum dia alguém abrirá a “caixa preta” do tal “ICI”? Pra quê a Guarda Municipal (GM) precisa das tais câmeras? Pra quê esse gasto, se segundo a Constituição Federal a GM tem natureza civil e não tem atribuição de policiamento ostensivo? No máximo, deveria estar cuidando dos bens públicos. Enquanto se desvirtua o uso da GM, o Município gasta com segurança privada. Quando o MPPR e o TC porá fim nessa balbúrdia?

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