As mulheres estão aprendendo a se amar

O feminismo tem ajudado mulheres a repensarem comportamentos nocivos

“Ele me jogou da escada e, quando eu estava caída no chão, chutou minha cabeça. Quebrei o nariz em quatro partes, cortei a boca e a orelha”, conta a jornalista Camila Ribas, de 36 anos, relembrando a briga que mudaria sua vida.

As agressões do ex-companheiro começaram em casa, após uma discussão sem motivo. Ela fugiu, pediu socorro aos vizinhos, mas eles não acudiram. “Um homem abriu a porta e disse: ‘não vou deixar você entrar’. Foi medo, acredito”, conta. Quando o socorro finalmente chegou, mais desespero: “O policial disse que eu não era ‘tão vítima assim’”, lamenta.

Muito tempo se passou antes que Camila entendesse que ela era, sim, vítima. Algo que aconteceu nas redes sociais, onde a jornalista teve o primeiro contato com o feminismo.

Entre relatos de outras mulheres que sofreram e superaram as agressões, ela começou a reconstruir sua autoconfiança. “[O feminismo] me fez enxergar que eu era vítima, sim, e que isso não é vergonha. Vergonha é ser agressor”.

Violência doméstica: caminho para o feminicídio.

Camila trilhou caminhos semelhantes aos de Bruna*, vítima de outro tipo de violência: a que parte de nós mesmos. “Primeiro, tentei parar de comer. Nem sempre conseguia e aí eu provocava vômitos, desesperada”, conta a advogada de 28 anos, que não quis se identificar – os familiares e amigos ainda não sabem sobre a anorexia e a bulimia que Bruna tem desde os 15 anos.

A insatisfação com o corpo começou no início da adolescência. “Foi quando descobri que era feia. Eu era gordinha, desengonçada, tinha aparelho. Minhas amigas eram desejadas, populares, e eu era piada”.

No caso de Bruna, estudar o feminismo ajudou a entender a insatisfação com o corpo, o primeiro passo para a cura. “Na nossa sociedade, o valor da mulher sempre foi muito ligado à aparência. Crescemos vendo filmes, propagandas, tudo com mulheres lindas. É difícil se amar plenamente quando o que a sociedade coloca como ‘padrão’ é inatingível”, lamenta.

Camila e Bruna atribuem ao feminismo uma melhora significativa em suas vidas e em suas relações. Ambas, hoje, defendem sua importância. E elas não estão sozinhas.

Sou porque somos

Historicamente, os homens ocupam um lugar privilegiado na sociedade. Eles estão em posições-chave no mercado de trabalho, no governo, até mesmo dentro das famílias. Com isso, eles obtiveram algumas “vantagens” ao longo do tempo, desde o poder de decisão em diversas áreas até a imposição de suas visões de mundo.

O feminismo surgiu como uma reação a essa configuração da sociedade, com o objetivo de diminuir o abismo entre os sexos. Entre os pontos defendidos estão o de que homens e mulheres devem ser respeitados, devem ter acesso às mesmas oportunidades e direitos equânimes.

Um movimento importante mas que, ao primeiro contato, pode assustar, segundo Amanda Oliveira de Morais, psicóloga e professora colaboradora na Universidade Estadual de Londrina (UEL).

“Quando a gente vai se dando conta de todos os abusos que a gente passa durante a vida, é um processo muito doloroso. É difícil de enfrentar porque é enfrentar a nossa própria construção de ser mulher”, explica.


Porém, de acordo com ela, o processo é compensador, a começar por seu poder de transformação social. “Como movimento social, [o feminismo] pode fortalecer vínculos entre mulheres, lutar pelos direitos formais e não formais das mulheres, fortalecer todas enquanto coletivo”, afirma Amanda, que também faz parte do grupo Marias & Amelias de Mulheres Analistas do Comportamento.

Em termos de saúde, na psicologia e em outros serviços, ele pode ajudar a entender diferentes tipos de violência, papéis sociais que geram sobrecarga e adoecimento, entre outros pontos, exemplifica Amanda.

São benefícios coletivos que alcançam, também, o individual. Amanda afirma que o contato com o feminismo pode ajudar a resolver problemas pessoais que têm como raiz a configuração patriarcal da sociedade e suas consequências, como o machismo.

“Desconstruir tudo isso, rever tudo isso, encontrar outros grupos sociais que vão te aceitar e fazer você se sentir segura, fazer o processo inverso. Isso tudo ajuda a resolver insegurança, baixa autoestima”, garante. “Além disso, pode ser imprescindível para que mulheres construam relacionamentos nos quais sejam autônomas e autoconfiantes”.

Amor contra o sofrimento

Depois de um ano de um relacionamento conturbado, Camila engravidou. E ele sumiu. “Eu me questionava por que Deus tinha me enviado uma filha de um homem tão maldito”, conta. A gravidez e os primeiros meses de vida da filha foram solitários – a jornalista se afastara até mesmo dos amigos durante o relacionamento abusivo.

O ex-companheiro reapareceu apenas quando a menina já tinha um ano, e a mãe, esperançosa, decidiu dar mais uma chance. Foi quando a briga mais grave aconteceu, e tudo mudou.

“Minha filha foi quem salvou minha vida”, conta Camila. “Na última [agressão], percebi que não tinha o direito de fazer uma menina inocente crescer acreditando que era aquilo que ela merecia”.

Rosie, a rebitadora: símbolo do poder feminino.

Hoje, a filha de Camila tem oito anos e tem aprendido, com a mãe, a exigir respeito. “Esses dias, o primo dela disse que só meninos mexiam a orelha e ela logo foi dizendo que isso era errado”, brinca.

Já Bruna se diz feliz por ter iniciado uma jornada mais saudável fisicamente e emocionalmente. “Eu passei a adolescência inteira sozinha porque achava que não merecia ser amada, por causa da minha aparência. Só agora comecei a ver mulheres se opondo a essa ideia. É um processo lento”, conta.

Hoje, apesar de ainda não ter coragem de contar às pessoas próximas sobre os transtornos alimentares, Bruna faz acompanhamento com uma psicóloga e uma psiquiatra. E ressalta que uma das medidas que mais fez a diferença, nos últimos anos, foi passar a acompanhar mulheres que questionam padrões e encorajam o amor próprio.

“Tem vários exemplos de mulheres ‘fora do padrão’ que usam as redes sociais para encorajar outras mulheres a se amarem. Elas me ajudam muito nesse processo. Isso vai me curar”, garante.

Amor por eles também

Na sociedade, todos têm papéis, tanto homens quanto mulheres. “A gente divide os seres humanos a partir do sexo biológico e, a partir dessa divisão, a gente vai construir diversas outras divisões: sociais, de poder, do trabalho”, exemplifica Amanda.

E, se para as mulheres essa configuração criou alguns (vários) problemas, para os homens, não é diferente. Amanda cita como exemplo o afamado “padrão”. Assim como existe um padrão feminino, que tem colocado peso demais sobre os ombros das mulheres, também há o masculino. E ele causa danos similares.

Ricardo Ordine sente essa dificuldade na pele. Por se preocupar com a aparência, por exemplo, já ouviu muitas piadas. “Os homens fazem essas críticas, ‘nossa, esse cabelinho está meio estranho’, ou algo do gênero”, relata.

Ricardo também sente uma dificuldade comum entre os homens: lidar com os sentimentos. “Uma dificuldade que tenho e que vejo que o machismo é uma das principais causas é a dificuldade dos homens de se abrir. Não no sentido de dificuldades no trabalho, mas sobre problemas com as namoradas, no sentido mais emocional. Não estou me sentindo bem, estou meio depressivo”, exemplifica.


São exemplos de questões nas quais o feminismo pode ajudar. Para Amanda, ao envolver-se com outros tipos de visão de mundo, os homens podem ser também “um pouco mais quem eles são”. “Mesmo os que estão no padrão, com benefícios e privilégios, muitas vezes, não se sentem livres porque, no final das contas, ninguém é muito livre quando você tem padrões tão estreitos para ser um ser humano”.

Ao repensar tantos padrões e conceitos, os homens também têm muito a ganhar nas relações. “Para os homens, pode trazer mais relacionamentos saudáveis, melhor convivência. Você pode se envolver que não vão punir você por você estar fora do padrão de masculinidade”, exemplifica Amanda.

O músico Téo Ruiz é testemunha disso. Segundo ele, que foi “criado por mulheres”, a mudança de comportamento entre os homens já é perceptível, mas ainda há muito a repensar. “O mais difícil, para o homem, é esta primeira etapa de desconstrução”, conta. “Mas é nosso papel questionar, a todo momento. Descobrir atitudes que, de repente, a gente tomava, mas não são tão legais assim”.

Téo teve contato com o feminismo há bastante tempo, ainda na década de 80, por meio da mulher, Estrela, e da sogra, Alice Ruiz, “que sempre foi não apenas ativista, mas muito ativa”, brinca. “O feminismo é sobre igualdade, é sobre respeito. Não é sobre a mulher ser melhor do que o homem”, esclarece Téo.

“Você aprende a ver o outro como um ser humano, que precisa ser respeitado. Não apenas as mulheres, mas também negros, a população LGBTI”, completa.

Precisamos falar sobre feminismos

O movimento feminista esteve pela primeira vez em evidência entre o final do século 19. Na época, as mulheres lutavam, principalmente, por direitos trabalhistas e educacionais, que eram totalmente negados a elas. Recentemente, ele voltou, fortalecido por novos fatores.

Um deles é sua popularização. Até a década de 80, o feminismo era restrito a classes mais altas, que tinham maior acesso à educação e à informação. “Era de intelectuais, de mulheres da classe média, brancas, com debates sobre direitos civis ou contenção de violência evidente”, exemplifica Priscila Plasha Sá, advogada criminalista e parceira do Instituto Aurora.

Hoje, o feminismo caiu na web e ganhou um alcance expressivo, evidente em campanhas como o #metoo, em que mulheres relataram os abusos sexuais sofridos por elas nas redes sociais. “O ativismo de rede, nas redes sociais, eclodiu e juntou o jovem feminismo”, explica Priscila.

Outro fator de peso para o fortalecimento do movimento é sua pluralidade. As vozes do feminismo se multiplicaram, o que, inclusive, levanta críticas. Afinal, o que querem os feministas?

Mulher vai presa ao pedir direito a voto.

“Uma coisa que as pessoas podem ver como um defeito do feminismo é que as feministas não se entendem, porque tem diversos tipos. Na verdade, isso é uma fortaleza, porque é uma forma de dialogar mais variada, não tão unificada como tradições teóricas, científicas”, explica a psicóloga Amanda.

“A gente está em um momento de construir uma sociedade que seja boa para as pessoas, a gente precisa de pluralidade”, garante.

E pluralidade envolve ambos os sexos. “O feminismo é importante para dizer que isso que estamos fazendo há séculos não está sendo uma coisa boa para ninguém. Claro, as mulheres são mais atingidas, mas isso também afeta a vida dos homens”, completa.

Mas não basta ter alcance e pluralidade. Para Priscila, é preciso passar o feminismo adiante. “Temos exemplos europeus, de países com grandes mudanças, em que essas questões foram levadas à mídia e à formação de crianças. Elas bateram em aspectos importantes, desde você colocar a disciplina de economia doméstica para garotos e garotas até a questão da ampliação da licença paternidade em países como a Alemanha”, afirma.

Amanda também aposta nos mesmos canais: mídia e educação. A TV e a internet são essenciais, para a psicóloga. “Quanto mais locais a gente tem isso, mais mulheres e homens têm acesso a esse pensamento”.

Já a escola recebe as crianças cada vez mais cedo e por mais tempo, por isso, é fundamental também. “[A escola] está formando seres humanos para o futuro.Tudo depende de que tipo de currículo a gente quer colocar na escola, que tipo de ser humano a gente quer formar. Se o feminismo está lá dentro, a gente tem a oportunidade de construir uma sociedade mais igualitária”, enfatiza Amanda.

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