Alfabetização em seis meses? Fala de Bolsonaro expõe limites da tecnologia na escola

Afirmação escancara o uso da tecnologia para reproduzir conceitos obsoletos de educação

O Brasil assistiu o primeiro grande debate do segundo turno no último domingo, dia 16 de outubro, entre os candidatos a presidência Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL). Durante o embate o atual presidente e candidato a reeleição, Bolsonaro, fez uma declaração ambiciosa: a de que seu governo é capaz de alfabetizar crianças de forma mais rápida que o de Lula usando um aplicativo. “Chama-se GraphoGame. […] No tempo do Lula, a garotada levava três anos pra ser alfabetizada. Agora, no nosso governo, leva seis meses”.

A afirmação foi recebida com críticas na comunidade científica. À BBC, a professora da Escola de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em alfabetização Silvia Gasparian Colello afirmou que o Graphogame não é a solução para a alfabetização: “O jogo talvez fosse eficiente para alfabetizar papagaios, mas certamente não para ensinar sujeitos pensantes”.

A declaração de Bolsonaro parte de uma concepção errônea, mas comum: a de que a tecnologia é capaz de operar milagres no processo educacional. No caso da alfabetização, essa concepção equivocada se alia a uma noção rasa do que é ensinar uma criança a ler.

O Graphogame é um aplicativo de celular que trabalha com letras, sílabas e sons. É voltado mais a parte da alfabetização chamada de letramento, ou seja, a familiarização da criança com letras, sílabas, fonemas. E mesmo assim não é uma ferramenta única nesse processo, como a própria PUCRS (responsável pela adaptação do aplicativo para o português) afirma.

Ler, no entanto, é mais que isso. E não se trata de dar conta disso em menos tempo, mas sim de maneira mais compreensiva. Quando se fala em alfabetização de crianças estamos falando desde o início da aquisição de linguagem e vocabulário até o desenvolvimento da capacidade e o hábito de leitura, um processo que vai do nascimento até os 8 ou 9 anos.

Mobral e Paulo Freire

Essa ideia de que um aplicativo daria conta do recado, porém, não surgiu do nada. Ela é uma versão modernizada de uma concepção de alfabetização instrumental muito popular no governo brasileiro na época da ditadura, quando o país tinha quase 40% de adultos analfabetos e isso era um empecilho a industrialização. O que o governo militar precisava é que as pessoas assinassem o próprio nome e entendessem letras e números, o que permitia que trabalhassem na indústria, abrissem contas bancárias, assinassem contratos e utilizassem telefones e outros equipamentos modernos.

Com esse objetivo, o governo militar criou em 1968 o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), que usava uma metodologia basicamente fônica para ensinar a população adulta a ler. O método conseguia fazer os alunos lerem palavras e frases, mas não promovia o que hoje se chama de alfabetização funcional, que é a capacidade de compreender o que foi lido.

O MOBRAL partiu de uma ideia de Paulo Freire de “palavra geradora”, ou seja, uma palavra do contexto dos estudantes a partir da qual são trabalhadas as letras, sílabas e significados. O programa estatal, porém, ignorava essa última parte, essencial no projeto freireano, que promovia a discussão com os alunos sobre sua própria realidade e com isso desenvolvia a capacidade de pensamento crítico e compreensão de texto.

No MOBRAL, o processo de ensino permanecia restrito a palavra e frases, sem evoluir para a leitura crítica. Ou seja, era um processo puramente instrumental.

Na metodologia de Paulo Freire, a alfabetização se dá através primeiro de um esforço do docente em entender a realidade e vocabulário dos estudantes. A partir dessa realidade, o processo trabalha letras, sílabas, frases e, por fim, o significado social das palavras. A metodologia foi aplicada no início dos anos 1960 no Rio Grande do Norte para a alfabetização de Adultos, e conseguiu alfabetizar 300 trabalhadores em 45 dias. E depois foi incorporada a um programa nacional no governo de João Goulart, porém, com o Golpe Militar de 1964, Freire foi considerado subversivo, perseguido e depois exilado.

Educação libertadora

Nos anos 1990, Freire voltou a atuar junto a governo, quando assumiu a secretaria municipal de Educação de São Paulo na gestão de Luiza Erundina. Mas seu principal legado é ter pensado a educação como um processo humanista em que a pessoa parte da sua própria realidade para compreender ideias e conceitos. Nisso Freire não está sozinho. Boa parte da literatura moderna sobre educação trata justamente da dimensão humana da educação.

Isso não passou despercebido entre os que começaram a estudar o uso da tecnologia na educação. O principal nome dessa área, Seymor Papert, foi fortemente influenciado por Jean Piaget e por Paulo Freire na elaboração de seu “construcionismo”, a ideia de que a criança pode elaborar conhecimento usando a máquina como ferramenta. É de Papert a autoria da Linguagem Logo, que nas escolas brasileiras ficou conhecida como “programa da tartaruga”.

No Logo, a criança usava linguagem simples para fazer o cursor do computador realizar ações, como desenhar um círculo. O Logo foi desenvolvido antes do surgimento da interface gráfica e do mouse nos computadores, mas foi atualizado e é a base para o que hoje é o projeto de robótica da LEGO e da linguagem de programação Scratch (que foi desenvolvida justamente pelo Media Lab, criado por Papert no MIT).

Para Papert, a máquina/computador era apenas um facilitador que permitia à criança criar um caminho próprio de construção do conhecimento. Tanto ele, quanto Freire e Piaget valorizam algo essencial para um educação moderna: a autonomia do sujeito. Isso lá nos anos 1960 e 1970 é um rompimento com uma concepção instrumental e extremamente passiva do processo educacional. De lá para cá a necessidade de desenvolvimento de autonomia

Uma das frases prediletas de Piaget era “entender é inventar”, que resume bem o espírito do uso da tecnologia na educação. Nos anos 2000, o movimento maker (ou “faça-você’mesmo”) revitalizou a mesma concepção. O espírito maker parte do pressuposto que você pode usar os recursos que tem em mãos para elaborar soluções aos problemas apresentados. Atrelado à robótica, o movimento maker tenta usar criatividade e reciclagem para desenvolver projetos tecnológicos.

Nas escolas brasileiras o conceito maker acabou sendo apropriado por empresas que vendem kits prontos com projetos determinados. Cabe a criança executar ações pré-determinadas para chegar a um fim já estabelecido. Nada disso estimula a autonomia do estudante, nem dialoga com sua realidade. Ou seja, a proposta é moderna em seu ferramental, mas já obsoleta na execução.

A mesma lógica é aplicada a aplicativos de celular que se dizem “educativos”, mas apenas estimulam a repetição de ações podem até ter um suporte tecnológico, mas utilizam um conceito de educação obsoleto.

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4 comentários em “Alfabetização em seis meses? Fala de Bolsonaro expõe limites da tecnologia na escola”

  1. O Brasil já sabe muito bem efeitos do método Paulo Freire: na rabeira do ranking do PISA. O resultado é catastrófico, e professores continuando defendendo Paulo Freire como um líder educacional! ACABOU!

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Waldete, com exceção de São Paulo, o Brasil nunca aplicou o método de Paulo Freire de forma sistemática. Portanto, os resultados do Pisa não podem ser reflexo do método. Obrigada pela audiência

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