A mulher ainda sofre calada: é hora de dar um basta 

Boa parte das meninas com menos de 18 anos que se juntaram a um rapaz maior de idade estavam desejando fugir da violência que sofriam em casa

Vi uma menina com um bebê no colo e fiquei um tanto paralisada. Tão nova, tão nova. Um bebê tão, tão pequeno. Havia nascido há poucos dias. Enroladinho em uma manta, ele parecia em paz – sem saber, mas certamente tendo sentido que paz não foi uma palavra que o acompanhou nos nove meses anteriores.

Em outra ocasião, estávamos lá novamente com várias meninas. Tínhamos acabado de ouvir a música “Dona de mim”, da Iza.“Sempre fiquei quieta, agora vou falar/Se você tem boca, aprende a usar…”. Na verdade, a música já tinha tocado duas vezes e as meninas com quem estávamos, em um centro de socioeducação na região Sul, haviam se empolgado.

Falar de direitos das mulheres com elas fazia mais sentido se fosse pela perspectiva lúdica de uma cantora negra como a Iza, que é imponente e se parece com a Beyoncé, do que pela perspectiva de mulheres como eu – branca, de classe média alta e que, apesar de toda a disposição e entrega, conhece a realidade das desigualdades brasileiras pelos relatos que escuta, mas nunca por tê-las sofrido na pele. E quando digo “sofrido na pele”, por vezes é literalmente para algumas dessas meninas, seja pela violência motivada pelo gênero ou por aquela motivada pela raça.

Estávamos sentadas em roda, realizando uma atividade de reflexão sobre a letra da tal música, quando ouvi uma menina contar a uma voluntária do Instituto Aurora que havia se casado aos 13 anos. Ela queria uma vida diferente da que levava com a família. Ela não disse se sofria abusos por parte do pai, do padrasto ou de alguém próximo, mas, infelizmente, não ficaria surpresa se ela tivesse relatado isso.

De acordo com o estudo Ela Vai no Meu Barco: Casamento na Infância e Adolescência no Brasil, produzido entre 2014 e 2015, pela ONG Intituto Promundo, em parceria com a Plan Internacional, são mais de 877 mil mulheres em casamentos formais e informais aos 15 anos. Estudos – e a realidade – vão nos mostrar que boa parte das meninas com menos de 18 anos que se juntaram a um rapaz maior de idade estavam desejando fugir da violência que sofriam em casa.

No entanto, o que essas meninas costumam encontrar na nova casa é, na verdade, a perpetuação da violência. Relações sexuais forçadas, xingamentos, restrições acerca do que podem comer, onde podem ir, com quem podem falar.

No caso da menina tímida de olhos claros sentada na roda, o relacionamento abusivo a conduziu para o envolvimento com o crime e, por isso, ela estava lá, cumprindo uma medida socioeducativa.

Enquanto eu arrumava um monte de papelada para o encerramento daquela atividade, foi trazida à minha memória a lembrança de uma menina com um bebê no colo. Uma menina que eu havia conhecido meses antes, naquele mesmo local. Era ela: a menina tão, tão nova, com o bebê tão, tão pequeno. Agora, eu juntava os trechos de sua história e sabia que a criança era fruto do relacionamento abusivo iniciado com seus 13 anos. Descobri, ainda ouvindo a conversa, que naquele momento ela estava com 15.

No Brasil, diante dessa narrativa, muitos podem chamar a menina de “putinha”. Algumas outras pessoas, com coração de carne, podem sentir compaixão por ela e por seu filho. Mas ainda são poucos que vão perceber as violações de direitos humanos contidas nessa história. E menos ainda são aqueles que nomearão esse relacionamento de casamento infantil e as relações sexuais forçadas de estupro e os xingamentos e depreciações de violência contra mulher.

Quando não nomeamos os fatos em nossa vida, eles passam despercebidos. Isso serve para o que é bom e para o que é ruim. É preciso dar nome. O ato de nomear alguém ou algo atesta a sua existência e, assim, não se poderá mais mantê-lo na invisibilidade.

Ao pensar no casamento infantil, por vezes, associamos essa violação à países dos continentes asiáticos e africanos. Mas, são tantos casos no Brasil que o país figura na quarta posição do ranking mundial de nações que enfrentam esse problema. E o primeiro lugar na lista que considera apenas a América Latina.

O casamento infantil revela o quanto falar de direitos humanos e, em especial, de direitos das mulheres é necessário e urgente no Brasil. Por vezes me pergunto em que Brasil algumas pessoas vivem quando dizem que a luta pela equidade de gênero é “mimimi”.

Não se pode nomear de “mimimi” uma menina com 15 anos casada e com filho. O enfrentamento do casamento infantil passa pelo incentivo de que meninas frequentem à escola e sigam estudando ao fim do 9º ano. E, nomeando, isso é lutar por equidade de gênero, é lutar por direitos humanos. Uma menina que estuda tem sua autoestima valorizada, acredita que pode sonhar, vê-se capaz de buscar a sua independência – sem precisar fugir para a casa de alguém que não a respeitará.

Escrevo esse texto no dia 8 de março para aquelas que – como eu – vão às ruas hoje. Lembrem que nossas vozes amplificam dores como a da menina tímida de olhos claros, tão, tão nova, com uma bebê tão, tão pequeno, com seus direitos violados em um casamento infantil. Que a luta não seja vazia.

Escrevo também para aquelas que não sairão de casa, para as pessoas que ainda acham que o dia de hoje é para ser celebrado com faixas rosas e flores, ou para os que criticam porque é coisa de feminista suja. Que o barulho do 8 de março ecoe em seus ouvidos como vozes de meninas e mulheres silenciadas. Não esvazie a luta.

São histórias reais que precisam ser transformadas.

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