“A gente faz o serviço sujo do Estado”, diz ex-conselheira tutelar

Exoneradas há menos de um mês, Aline Castro e Rosana Kloster apontam problemas no Conselho Tutelar

Elas foram democraticamente eleitas para quatro anos de mandato no Conselho Tutelar do Boa Vista, em Curitiba, mas perderam seus cargos após pouco mais de um ano de exercício. Primeiro, Aline Castro recebeu uma ligação da Fundação de Ação Social (FAS) informando que estava exonerada. O motivo? Um vídeo privado vazado catorze meses antes, na ocasião da comemoração das eleições, onde ela gritava “Lula livre”. Semanas depois, Rosana Kloster, que aparecia ao lado dela nas imagens, também foi obrigada a deixar o posto. 

O Plural acompanhou todo o desdobramento dessa história, cobrando um posicionamento assertivo do poder público, que nunca veio. Afinal, o que caracteriza inidoneidade moral, argumento usado pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR) e pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comtiba) na cassação? Na Justiça, a subjetividade do termo foi alvo de discussão, mas no fim das contas o desembargador Luiz Taro Oyama optou por não interferir na decisão da administração pública – sentença que culminou na exoneração.

Ambas seguem buscando recursos legais para terminar o mandato. Enquanto isso, falaram com a reportagem sobre os desafios de ser conselheira tutelar em Curitiba. Foram duas ligações separadas, de trinta minutos cada. Rosana lamentou a perda da função e preferiu não arranjar animosidades com o colegiado, mas denunciou a falta de estrutura do Conselho. Aline foi mais combativa. Segundo ela, os problemas são tantos que justificam a instauração de uma CPI.

Acompanhe um resumo com os pontos altos das conversas.

Plural: Como é o dia a dia de uma conselheira tutelar?

Aline: Na pandemia, o nosso horário começava às 10h e terminava às 16h, mas eu sempre chegava às 9h, no máximo às 9h30. O comprometimento era meu, né? Eu tentava agilizar as minhas coisas antes de começar os atendimentos, porque quando a gente chega lá, tem vários processos em cima da nossa mesa que estão acontecendo e ainda tem o atendimento ao público, presencial e por telefone. 

Rosana: Eu ficava mais tempo no Conselho por conta própria, isso não foi cobrado de ninguém. Na sexta-feira, como você vai largar um processo na mesa para resolver na segunda? Muitas vezes aquela família depende de um encaminhamento urgente seu ou que você faça uma conversa hoje, sem falta. O tempo de trabalho é excessivo porque ficamos disponíveis 24h. Mesmo não estando no cargo, as pessoas nos procuram, a gente nunca deixa de ser conselheira. Ontem eu fiz um atendimento 1h da manhã. Ainda que não tenha sido oficialmente, dei todas as orientações, indiquei os órgãos que tinham que procurar…

Plural: Que tipo de casos vocês atendem, majoritariamente?

Rosana: Atendemos denúncias de abuso sexual, violência física, violência psicológica… Também há conflitos entre vizinhos, entre amigos, entre familiares, e as pessoas acabam usando o Conselho Tutelar como uma forma de punição.

Aline: As pessoas não entendem o papel do Conselho e o Estado não tem interesse nenhum em divulgar para a população do que se trata. Toda vez, por exemplo, que eu tinha que fazer uma acolhida, eu chorava e acho que se ficasse dez anos no Conselho Tutelar, choraria todas as vezes, porque por mais que você esteja salvando uma criança de uma situação de violência, de negligência, a gente sabe que antes da gente chegar o Estado falhou miseravelmente em todos os aspectos com aquela família. A gente faz o serviço sujo do Estado. Quando eu tinha que notificar uma mãe que deixava a criança sozinha em casa porque tinha que trabalhar, ainda mais agora na pandemia, nossa… Até outro dia a minha filha ficava sozinha pra eu trabalhar também, sabe? 

Plural: Vocês se sentiram discriminadas durante o exercício do cargo?

Aline: Eu sim, muitas vezes. Teve uma época que eu era presidenta interina. Eu me lembro de um dia que cheguei pra trabalhar de bike, com fone de ouvido, moletom e toca. Aí eu tirei o fone do meu telefone e estava tocando Racionais. Tinha três pessoas me esperando para uma reunião – sem marcar, inclusive. Elas ficaram horrorizadas com a conselheira de bicicleta, ouvindo Racionais. Esse tipo de discriminação sempre existiu e acho que sempre vai existir em qualquer lugar relacionado a poder, né? Não que seja um cargo de poder, não, viu. O povo vê um status danado nessa história de ser conselheiro tutelar, mas eu não vi, só vi trabalho. 

Plural: Em algumas das nossas conversas anteriores, a Aline me contou que vocês sequer tinham acompanhamento psicológico. Vocês consideram as condições da vaga adequadas?

Rosana: O salário de Curitiba é um dos melhores, mas se a gente for analisar de perto… Eu recebia R$ 4 mil líquido, que não é um salário ruim, né? Mas eu, com esse salário, tinha que bancar a minha alimentação, o meu transporte, e se quisesse ter um plano de saúde, acompanhamento psicológico, tinha que pagar. Acaba se tornando um salário regular. Não é nem razoável, é regular porque eu não tinha benefício nenhum, era aquele salário e pronto. Além disso, muitas vezes nós recebemos um adolescente com fome, por exemplo, e temos que tirar dinheiro do próprio bolso para fazer o primeiro atendimento e comprar uma marmitex. 

Plural: E como é a estrutura física do Conselho no Boa Vista? Dá conta?

Aline: Nós trabalhávamos os cinco, mais cinco da administração, num cubículo sem cozinha, sem pia, sem torneira e sem banheiro. O banheiro que a gente usava era o banheiro público, que é usado inclusive pelo pessoal da UPA ao lado. Quando estava no auge da pandemia, a gente passava o dia sem fazer xixi pra não ir ao banheiro. Acho que o Conselho do Boqueirão também é esse mesmo lixo porque é dentro da Rua da Cidadania. 

Plural: O Conselho também não oferece segurança, certo? Alguma vez vocês se sentiram ameaçadas?

Rosana: Em algumas abordagens, constatamos que as crianças precisam ser acolhidas pelo Conselho Tutelar, mas a família não nos deixa entrar ou simplesmente percebemos que não é seguro seguir com a ação. Nesses casos, nós retornamos para o Conselho e o Ministério Público aciona os oficiais de justiça, que vez ou outra constatam o mesmo risco. Se essas famílias moram bem pertinho da minha casa, você imagine como fica a minha situação. É bem complicado.

Plural: Quais outras falhas vocês evidenciaram durante esse tempo?

Aline: Olha, eu queria lançar esse recado especialmente para a promotora Fernanda Garcia, do Ministério Público, que foi quem exigiu a nossa cassação: todo o processo para se tornar conselheiro tutelar é um desastre. As aulas de preparação são propaganda do governo, a gente não aprendeu nada. Ficaram só falando que tudo era lindo, que os equipamentos eram maravilhosos, que estava tudo dez, era só a gente chegar, sentar e mudar o mundo. Nada disso aconteceu. Nesse meio tempo, os conselheiros não tiveram nenhum curso de capacitação. Até mesmo o processo, a prova, foi um desastre, porque pediram pra Federal preparar as provas segundo as aulas que eles tinham dado, mas não deram aula nenhuma, não aprendemos nada. Teve gente que entrou na Justiça para desabonar as provas. Eu achava que aquilo tudo serviria para levantar o nível dos conselheiros, sabe? Que nada. Precisa ter segundo grau pra entrar, mas tem gente lá que não sabe escrever. Nós temos um sistema que precisa ser preenchido todos os dias, mas tem conselheiro que não faz porque não sabe. Precisavam fazer uma CPI do Comtiba [Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente]. Menina, história de orçamento, tu não tem noção do quanto se é arrecadado… E em todo tempo tá todo mundo cobrando transparência desse dinheiro. No entanto, uma das atribuições que seria do conselheiro tutelar, que é de fazer inspeção nas casas abrigos de Curitiba, em 14 meses eu não tive tempo de fazer isso. E desconheço quem tenha feito. Temos notícias de abrigos sem comida, sem merenda. Dinheiro tem, conselheiro tutelar para averiguar isso tem, só que não deixam que a gente chegue lá, entendeu? Nunca dá pra gente chegar nesses lugares. A gente fica de garoto de visita das varas e das promotorias. 

Plural: Olhando em retrospectiva, qual é a sensação que fica?

Rosana: Eu sou apaixonada pelo Conselho Tutelar. Tem os lados ruins, a gente corre riscos, mas também tem o lado bom, que é conseguir resolver um grande problema na conversa. A Regional do Boa Vista tem uma miséria que talvez eu nem conhecesse antes. Tem também o preconceito, principalmente das famílias com filhos LGBT+ ou usuários de drogas. Tem vezes que o comportamento dos pais reflete numa tentativa de suicídio, numa evasão escolar, numa fuga de casa… Poder ajudar com essas questões foi o mais gratificante.

Aline: Particularmente, sou muito sonhadora. Eu tinha a ideia de que eu ia chegar no Conselho e mudar tudo, sabe? Consegui fazer muita coisa acontecer, mas queria deixar tudo lindo, conseguir plano de saúde, enfim, não consegui nada disso. Pessoalmente é muito triste, mas profissionalmente houve crescimento, eu aprendi muito. Quando a gente vê famílias sofrendo, crianças sofrendo, é horrível, tá? O sofrimento é horrível, mas eu aprendi muito. Especialmente sobre como o sistema funciona – e sobre como todos os dias eles nos querem mortos. 

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5 comentários em ““A gente faz o serviço sujo do Estado”, diz ex-conselheira tutelar”

  1. Goretti Bussolo

    Lamento o arbitrário do que aconteceu com essas duas conselheiras. Conheço muito de perto a realidade do que ela relata.

    É urgente a necessidade de mudar os critérios de para ser candidatar ao cargo para trabalhar, acolher, ouvir, encaminhar vidas de crianças e por consequência: mães, famílias!

  2. Josiane Vasconcelos

    Seria muito bom se o Jornal que tem plural no nome fosse realmente plural e nos mostrasse o outro lado dessa história. Monólogo é sempre parcial, mas um jornal que se diz plural não pode mostrar somente uma versão da história. Exoneração não ocorre sem motivos fortes e concretos.

    1. Rosiane Correia de Freitas

      Josiane, o Plural foi o único jornal a acompanhar toda eleição para o Conselho Tutelar, o que incluiu muito mais coisa que a situação das ex-conselheiras. Sobre esse caso nós acompanhamos o processo inteiro, tivemos acesso a toda documentação e as ações e decisões judiciais e inclusive tratamos a fundo as acusações contra elas. Está tudo publicado no site. Fique à vontade para ler.
      E como já noticiamos, a exoneração aconteceu unicamente porque uma liminar que elas tinham obtido na Justiça foi derrubada, mas o processo permanece em andamento.

  3. Já faz um tempo que penso que essa história tinha que virar roteiro de cinema. Seria impactante retratar tão bem as verdadeiras entranhas de Curitiba.

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