A difícil despedida a António Manuel Hespanha

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Nesta quinta, em Lisboa, depois do velório na Basílica da Estrela, e após o cortejo fúnebre até o Alto de São Joao, António Manuel Hespanha foi cremado. Aos setenta e quatro anos, morreu segunda (1) depois de uma luta dura contra o câncer.

Difícil pra quem é da área da do direito ou da área da história perder esta referência. Ele balançou a historiografia europeia nos anos 1980 com sua nova interpretação sobre o papel do Estado no Antigo Regime, e esse tremor foi sentido na historiografia brasileira, na década passada, em meio a fortes controvérsias envolvendo historiadores da USP e da UFF. Na área do direito, ninguém que se defina como culturalmente aberto tem o direito de ignorar os escritos de Hespanha. Na área da história do direito, era um dos marcos mais importantes do mundo, o mais importante na nossa língua. Mas já escrevi sobre o que penso sobre sua importância notória e sobre seu tamanho acadêmico e não é disso que quero falar aqui.

Difícil é quando se vai alguém cuja presença se confunde com sua própria trajetória acadêmica. Minha dissertação de mestrado (que defendi em 1998) era sobre os aportes metodológicos da obra dele – e eu então só o conhecia pelos livros. Dali em diante, o modo como ele via e pensava a disciplina me guiou e inspirou. Quando, anos depois, passei a ter o privilégio de usufruir do convívio e da amizade dele, pude também discutir tudo o que eu fazia, ouvir os retornos de sua leitura atenta, pude trocar ideias com ele sobre a formação área no Brasil, pude aprender sobre como a área funciona fora daqui. O que sou academicamente e o que fiz desde então não tem como ser desprendido desse meu contato com o Hespanha. Como acadêmico, eu tinha uma bússola em Lisboa e outra em Florença; agora estou órfão de uma delas.

Mas há algo mais difícil: Hespanha, nos últimos onze ou doze anos, vinha para cá quase todos os anos, ficando meses em Curitiba (seja como professor visitante da UFPR, seja para proferir curso na Escola de Altos Estudos/CAPES, seja como professor no mestrado da Uninter).

E nesse convívio tudo foi se misturando: meus alunos se tornaram também seus alunos; meus orientandos, vários deles hoje professores da UFPR (como Sergio Staut Junior, Walter Guandalini Junior, André Peixoto de Souza, Thiago Hansen), se tornaram também seus orientandos; meus parceiros do Instituto Brasileiro de História do Direito (como Samuel Barbosa, Christian Lynch, Gustavo Siqueira, Juliana Magalhaes, Gilberto Bercovici, Andrei Koerner, Cristiano Paixão, além do Luis Fernando Pereira, também amigo e colega na UFPR) eram também seus parceiros e fãs (Arno Wheling e Airton Seelaender já o conheciam há mais tempo); com a constante presença dele em todos os nossos eventos, toda a nova geração de historiadores do direito que veio a seguir passou a ter a marca e a influência da obra do Hespanha; os meus colegas do curso de Direito (como o Kanayama, Katya, Egon, Celso, Nalin, Fachin, Manoel Caetano, Manoel Eduardo, além da Vera Karam de Chueiri, que foi convidada por ele para ser professora visitante em Lisboa) viraram colegas dele.

Num café em Lisboa, fazendo graça com imagem de Fernando Pessoa (acima).

E os meus amigos pessoais de fora da Universidade (Edinho, Bel, Sidnei, Mara, Arion e Simone) se tornaram também amigos do Hespanha. Por proposta do Paulo Salamuni, Hespanha se tornou “cidadão honorário” de Curitiba – e por isso nós brincávamos que agora que tinha a chave da cidade ele deveria se mudar definitivamente para cá. No ano de 2013 ele entrou no seletíssimo grupo dos Doutores “honoris causa” da UFPR, também fazendo parte desde então de nossa comunidade universitária.

E há algo ainda mais difícil: neste tempo, paralelamente a tudo isto, Hespanha virou membro da casa, dos afetos e das cumplicidades: virou família. Falávamos bobagens, amenidades e coisas sérias. Ele fazia o mapa das nossas relações acadêmicas, tentava amenizar as implicâncias que eu tinha, me repreendia por ter entrado nessa vida da gestão universitária (achava que isso me desviaria da vida acadêmica, que é o que verdadeiramente importa), discutia sobre todos os assuntos, me mostrava como erudição e imaginação devem andar juntos, me ensinava como a generosidade é o apanágio dos grandes professores.

Do que mais vou sentir falta? Não sei… de tudo. De seu humor único e constante, de sua malícia ferina, do seu conhecimento sem limites, do seu comprometimento político, das suas histórias sensacionais, da sua lucidez, da receita de bacalhau que ele cozinhava (o melhor que já comi), do modo como ele brincava com meus filhos, da sua doçura, da sua generosidade. Da sua presença, pura e simples.

Imagino para seus amigos queridos que o seguem há tanto tempo em Portugal (Cristina Nogueira da Silva, José Subtil, Nuno Camarinhas, Giovanni Damele etc) a dificuldade deste momento. A eles mando meu abraço caloroso. E imagino, sobretudo, a dureza do momento para sua família que ele tanto amava e que era para ele o centro de tudo (a Graça, os filhos João e Paula, os pequenos netos Rui e Clara). A eles digo que eu, minha família, praticamente todos os meus amigos e colegas, toda a UFPR e metade do nosso Brasil hoje está com o coração, bem apertado, com vocês, aí em Portugal, neste dia difícil, o mais difícil.

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