Livro desvenda quem são os “mandarins” do Banco Central

Enquanto país discute a autonomia do BC, estudos realizados por cientistas políticos revelam perfil de presidentes do banco e mostra qual é seu verdadeiro grau de autonomia

Nos últimos dias, a autonomia do Banco Central voltou a ser manchete no país todo. Lula, recém-eleito, não tem como mudar o presidente do BC, e por isso não tem como mexer na taxa de juros, um dos instrumentos mais importantes para a política econômica de qualquer país. A autonomia do BC, aprovada no Brasil em 2021, tem como argumento básico a necessidade de proteger os “técnicos” da economia contra os políticos eleitos para o Executivo – em tese, isso evitaria ações populistas e garantiria maior estabilidade, melhores decisões. Mas evidente que há um outro lado na discussão: esses economistas são de fato autônomos, ou somente obedecem a outras forças do país, e quais são elas?

Uma série de pesquisas feitas por cientistas políticos brasileiros ajuda a construir esse debate. Ao longo dos anos, os pesquisadores levantaram dados sobre os nomes indicados para a presidência e as diretorias do BC, e fizeram um perfil desses homens e mulheres, apelidados por eles de “mandarins” da economia brasileira. O resultado parcial do trabalho agora está disponível em livro. Ao Plural, o grupo respondeu a uma série de perguntas. As respostas abaixo estão creditadas coletivamente a Adriano Codato, Eric Gil Dantas, Mateus de Albuquerque, Renato Perissinotto.

– Vocês estudam elites políticas, estatais, econômicas, intelectuais etc. Por que é importante saber de onde vêm e o que pensam os nossos “mandarins” da economia?

Sendo o mais direto possível, porque as pessoas que estão no comando das nossas instituições políticas, sociais, burocráticas etc. exercem uma função estratégica: formular as decisões que afetarão a vida de milhões de pessoas. 

Sendo um pouco mais específico, podemos dizer que muito do que eles decidem tem a ver com quem são essas pessoas e aqui temos implícito um enorme debate teórico dentro da disciplina Ciência Política. 

De uma maneira muito simplificada, existem aquelas posições, por assim dizer, “estruturalistas”, que defendem que os fatores explicativos do comportamento das elites políticas ou burocráticas são “objetivos”, isto é, independem de quem são os membros dessas elites (suas características sociais, origens, educação, visão de mundo etc.). Nesse caso, não faria sentido estudá-las. 

Nossa posição é outra. 

É claro que aceitamos que há nas sociedades humanas inúmeros fatores objetivos que constrangem as ações das elites. Mas dentro desses constrangimentos há espaço para escolhas políticas entre alternativas (“A” ou “B”) e pensamos que tais escolhas podem ser explicadas em termos de “quem são” os decisores. 

Roberto Campos Neto: indicado por Bolsonaro, presidente no governo Lula. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Nesse ponto, chegamos a um outro problema: quais seriam os atributos dessas pessoas que contam para entender as decisões em questão? Pode ser a raça, o gênero, a origem social, a formação acadêmica, o tipo de socialização, a trajetória profissional ou uma mistura de todos esses fatores. 

Claro que nem sempre é fácil estabelecer uma relação inequívoca ou direta entre tais atributos e as decisões tomadas pelos membros dessa elite, mas isso é factível e, em alguns casos, podemos pensar tais atributos como forças que geram um comportamento que exclui do “campo de visão” dos decisores certos problemas. 

Por exemplo, é pouco provável que um parlamento formado apenas por homens brancos de classe média se engaje a sério na discussão de questões raciais ou de gênero; ou que uma instituição dominada por indivíduos formados na ideologia do mainstream econômico consiga pensar fora da relação mecânica entre disponibilidade de moeda na economia e patamar da taxa de juros; ou que um governo formado por militares leve a sério problemas relacionados à democracia participativa. 

Os institucionalistas, valendo-se de uma metáfora esportiva, costumam dizer que as regras do jogo importam; mantendo a metáfora, diríamos nós que também os jogadores são fundamentais para o resultado do jogo, a não ser que acreditamos que o jogo se jogue sozinho…

– Há características que estão sempre presentes nos diretores e presidentes do BC? O que vocês descobriram?

A constância é um dos grandes achados deste conjunto de pesquisas (o livro é formado por oito estudos). Os perfis de diretores do Banco Central do Brasil se mantêm ao longo do tempo, com um conjunto de diretorias sendo ocupado por indivíduos vindos de fora do Estado e outro conjunto sendo ocupado por burocratas. 

O primeiro conjunto é o de diretorias de política econômica – que avaliamos como as principais para determinar a política econômica/monetária que o Banco Central decide e impõe. Para essas diretorias normalmente são nomeadas pessoas que trabalhavam em instituições financeiras ou em universidades, ou foram formadas em universidades do mainstream econômico – como PUC-Rio, FGV-RJ e universidades dos Estados Unidos. 

De forma muito pouco sofisticada, podemos dizer que são universidades com uma visão dominante liberal (ou ultraliberal) da economia. Isto é, são diretores formados em uma linha ideológica específica da Economia e que trabalhavam em instituições financeiras. E isso tem implicações concretas. 

Já as diretorias da área de administração são ocupadas majoritariamente por burocratas, principalmente funcionários do próprio Banco Central do Brasil sem essa formação “ortodoxa”. 

– Imagino que isso tudo tenha muito a ver com a discussão sobre “independência” do BC. O que o estudo mostra sobre um possível predomínio da técnica sobre a política na biografia desse pessoal?

O estudo de perfil destes dirigentes serve para subsidiar o debate sobre a independência do BC, que é um tema clássico na Economia – mas que tem muito a ganhar se for abordado também, ou de preferência, através da Ciência Política. 

O nosso estudo se diferencia dos estudos tradicionais da área no que se refere ao conceito de “autonomia”. Usualmente, quando se fala de independência do BC, trata-se estritamente da independência dos operadores do Banco – em geral seu presidente, ou o presidente e os diretores – diante do governo eleito (isto é, os políticos). Tanto que a lei aprovada em 2021 visa dar autonomia ao BC diante do Executivo Federal, com nomeações não coincidentes (Lula continuará com o mesmo presidente e diretores nomeados por Bolsonaro). 

Sede do Banco Central, em Brasília. Foto: Wikimedia Commons

No entanto, há outra questão: e a autonomia que essas pessoas têm (ou não) diante do mercado financeiro? Afinal de contas, o BC tem como uma das suas atribuições (não a única, mas uma importante) justamente regular o mercado financeiro. 

Estas instituições financeiras também atuam para moldar as políticas monetárias do Banco, pois a política da autoridade monetária impacta no resultado financeiro destas empresas. 

Criamos um “índice de autonomia” do Banco Central, dos seus diretores e presidentes, mas diante do sistema financeiro.

Demos pontuações de autonomia/heteronomia para cada um dos diretores que passaram pela instituição. Se veio do mercado financeiro, se se formou no mainstream econômico e voltou pela porta-giratória para o mercado financeiro, ele não tem autonomia diante do mercado financeiro. Se veio da própria burocracia, se não se formou no mainstream econômico e não saiu pela porta-giratória, este agente tem autonomia diante do mercado financeiro. 

É um índice criado por dados de formação educacional e de carreira (antes e depois). 

Como podemos ver, é outra forma de ler o problema. 

Não estamos preocupados aqui em falar da autonomia diante do governo, e sim diante do setor que esta entidade regula. É como se estivéssemos preocupados com a autonomia de agências reguladoras, como a de energia elétrica, planos de saúde, petróleo e gás. É uma questão importante se um membro da ANP vem da Shell e depois vai para a 3R Petroleum? Acredito que ninguém pense que isso seja algo irrelevante. 

Fizemos a mesma coisa, só que para o Banco Central. Acreditamos que avançamos em um problema real, se o BC é ou não capturado pelo mercado que deveria regular, e não apenas se tem interferência ou não do presidente da República. Mas repare: como é um índice (numérico) há gradações.

– Dá pra ver uma diferença mais ou menos clara nas diretorias indicadas pelo petismo?

A marca do perfil dos dirigentes do Banco Central é justamente o seu padrão inabalável. Independentemente do partido no governo, mesmo governos liberais como Temer e Bolsonaro (que não estão no livro, mas os dados já foram apresentados em seminários), a origem e a formação de cada grupo de diretorias é a mesma.

– Quem são essas pessoas, isto é, em que redes de relações elas estão inseridas?

Temos duas questões importantes sobre esse assunto que precisam ser destacadas. 

Primeiramente, as pesquisas realizadas identificaram alguns atributos relevantes dos “mandarins”. São pessoas com formação acadêmica e profissional relevante, passaram por importantes universidades, muitos atuaram como docentes de grandes universidades e possuem um trânsito profissional entre instituições públicas e privadas (o que na literatura costuma-se chamar de “porta giratória”).

Não seria exatamente um saber inigualável e excepcional, mas sim uma formação técnica que, mais importante, possui um viés direcionado ao mainstream econômico. E tais trajetórias mostram os laços constituídos entre as esferas públicas e privadas, mostrando-as como elementos permeáveis entre si.

Mas uma segunda questão levantada por uma perspectiva de redes é a relação social constituída em tais processos, mais do que os atributos dos agentes. 

Como condensamos as trajetórias profissionais dos agentes em uma rede unificada, as instituições que conectam os agentes não criam necessariamente uma relação interpessoal entre dois indivíduos. Pois eles podem ter pertencido à instituição em momentos diferentes.

O que a rede mostra efetivamente é outra coisa. 

Primeiro, sobre os indivíduos. Ao ter em sua trajetória determinada instituição, o sujeito acumula determinados capitais (conhece determinados indivíduos, adquire conhecimentos técnicos, etc). Quando mais de um indivíduo passa pela mesma instituição, é plausível assumir que eles adquirem capital semelhante, e, portanto, as conexões entre os indivíduos observados seria indireta, por compartilharem capitais próximos.

Bolsa de Valores de Nova York: até que ponto vai a independência de agentes de um Banco Central? Foto: Domínio Público

Já sobre as instituições, as conexões que se estabelecem entre elas podem ser interpretadas como mais diretas. Ao possuir um fluxo de funcionários entre si, de maior ou menor intensidade (observável pelo número de pessoas que transitaram), é possível observar a busca que determinadas instituições fazem de pessoas que adquiriram certo capital em outra.

O que as pesquisas realizadas mostraram foi uma busca de capital do setor privado por parte das instituições públicas na seleção de seus mandarins (fortalecendo o argumento da existência de uma porta giratória, pelo menos no sentido se transição do privado ao público). Também é observável um certo fluxo entre instituições públicas, tendo o Banco Central, o BNDES, Ministério da Fazenda e Ministério do Planejamento grande importância. 

E também que o capital obtido em instituições acadêmicas é bastante relevante, havendo conexões entre as instituições acadêmicas com um perfil mainstream e as instituições mais altas de aplicação de política econômica. 

Um dos capítulos do livro fala de Think Tanks. Qual a influência dessas instituições na gestão da política econômica?

É importante ressaltar que o capítulo em que é abordado o tema dos think tanks e sua relação com os quadros que compuseram a CMN pode dizer mais dos think tanks do que seu impacto direto nas políticas econômicas.

Ao tratar de um fenômeno que vem ganhando força no Brasil desde os anos 1990, assim como em outros países, o artigo traz luz para o aparecimento de membros desses institutos nas pastas analisadas. Tal presença corrobora na criação das condições necessárias para que esses think tanks tenham condições de alcançar seus objetivos. 

De maneira resumida, esse modelo de instituição busca atuar tanto na sociedade civil como diretamente dentro do Estado. Na sociedade civil busca criar as condições para que seus valores e ideias tenham espaço para crescer, ou seja, buscam semear essas idéias e dar espaço para que floresçam, atuando através de debates públicos, na elaboração de artigo e outras ações. Já na esfera estatal, buscam captar a pressão da sociedade civil sob as ideias que defendem, que ganham força a partir das ações na sociedade civil, para que tenham os mecanismos para transformar suas ideias em políticas públicas.

Portanto, a presença desses membros dentro do CMN demonstram a força que esses think tanks ganharam com o passar do tempo, culminando em uma forte presença em cargos de alto escalão, mas também ocupando cargos em diferentes níveis. 

Outro ponto a se ressaltar é que esses institutos atuam como centro de laços sociais dos atores estudados e a importância desse ponto já foi abordada em uma pergunta anterior.

O capítulo aqui busca colocar os holofotes sob um fenômeno pouco estudado, mas que vem ganhando força e importância na sociedade brasileira, nos ajudando a responder quem são os membros desses importantes think tanks, mas não apenas isso, mas onde atuam.

– Há um capítulo que trata das sabatinas para escolha de presidentes e de diretores no Senado Federal. Como elas funcionam? Elas são efetivas?

As sabatinas são prerrogativas da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal. Nelas, os indicados à presidência do Banco Central são arguidos. A partir dessa arguição, a Comissão vota pela aprovação ou não dos indicados. Após isso, caso sejam aprovados, o plenário vota. 

É um interessante mecanismo por subordinar a indicação de quadros técnicos a um escrutínio político, o que promove toda uma sorte de acirramentos de posições e disputas, já que os que pretendem tornar-se autoridade monetária tendem a ver-se como puramente técnicos, desprovidos de interesses políticos e de conexões sociais. Assim, testemunhamos um espaço em que os economistas-técnicos têm de portar-se, em parte, como políticos. Isto é, eles têm de seduzir, convencer os senadores.

O capítulo que analisa as sabatinas do Senado conclui que elas não estão isoladas da realidade política e econômica do País. 

Os principais temas que norteiam esses debates no momento também norteiam as sabatinas, inclusive questionamentos éticos quanto à relação desses indicados com o mercado financeiro. São inclusive tratados escândalos em que os os presidentes do Banco Central se envolveram. 

Por outro lado, não é possível notar que os tensionamentos na sabatina provoquem qualquer mudança na gestão do Banco Central. Assim, enquanto mecanismo de accountability, as sabatinas são muito limitadas. Uma vez aprovados, não há mecanismos para dar sequência ao diálogo entre a autoridade monetária e a classe política eleita. 

– Quem vocês imaginam como público deste livro?

Em princípio, o público universitário de pesquisadores da área. Porém…, como essa discussão tem ocupado cada vez mais os atores políticos – vide a polêmica entre as posições do presidente Lula e sua área econômica versus as posições do atual presidente do Banco Central do Brasil sobre a taxa de juros – penso que interessa ao debate público como um todo.

Serviço
Os mandarins da economia – Presidentes e Diretores do Banco Central do Brasil
Editora Almedina
326 páginas
R$ 79,20
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Sobre o/a autor/a

3 comentários em “Livro desvenda quem são os “mandarins” do Banco Central”

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