Cruzada contra banheiros unissex é baseada em ameaça “inventada”

Iniciativa quer proibir uso de banheiros por pessoas de ambos os sexos, mas omite real razão por trás da proposta

Os vereadores de Curitiba estão dedicados a resolver um problema que dizem ser grave. Para tanto, querem cortar o mal pela raiz e tentam aprovar uma lei que irá vetar o uso de banheiros por pessoas de ambos os sexos. Segundo o autor do projeto, o vereador Ezequias Barros (PMB) a ameaça estaria documentada em “reclamações frequentes de pais e professores”.

Muito embora nem o texto da proposta nem a justificativa mencionem, a iniciativa tenta barrar o uso de banheiros públicos por pessoas transgênero, que são pessoas que se identificam com um sexo diferente daquele com o qual nasceram. O parlamentar não cita o assunto porque desde 2019 o Supremo Tribunal Federal reconhece como crime a discriminação de pessoas pela sua identidade sexual nos termos da Lei do Racismo (Lei 7.716/1989). 

A inconstitucionalidade da iniciativa foi confirmada pela própria Procuradoria jurídica da Câmara, mas os parlamentares mantém a tramitação da proposta em face da suposta “ameaça” a crianças. O ponto, porém, é que não existe ameaça nenhuma. O Plural revisou mais de 375 mil registros de reclamações, solicitações e elogios junto ao serviço 156 da Prefeitura de Curitiba nos últimos 12 meses e encontrou apenas um registro que cita uso compartilhado de banheiros, em um Centro de Educação Infantil conveniado.

O registro, no entanto, não fala em “ideologia de gênero” nem em crianças trans, mas sim em falha na conduta das profissionais responsáveis pelas crianças: “Reclama das condutas da professora da turma de seu filho de três anos. (…) Relata que as crianças fazem xixi umas na frente das outras gerando perguntas do tipo: “porque menino tem pipi e menina não?”. Acrescenta ainda que seu filho vem para casa com os pares de tênis trocados, o direito no esquerdo e vice-versa”.

Já na própria Câmara, além da proposta de Ezequias, há somente uma única proposição relativa ao assunto desde 2017, de autoria da vereadora Noemia Rocha (MDB), e solicita informações sobre o uso dos banheiros da Escola Municipal Jaguariaíva, no Bacacheri. A parlamentar justifica o pedido afirmando que “informação trazidas ao gabinete por pais de alunos revelam que os banheiros da escola em questão são compartilhados entre alunos do sexo feminino e masculino”.

“Visto que, tem se tornado algo comum e reclamações são frequentes, de pais e professores que se preocupam, com a tentativa de alguns em instituir principios (sic) da ideologia de gênero nas escolas, por pessoas que tentam politizar as nossas crianças, e que vergonhosamente insistem em desrespeitar os pensamentos da maioria dos cidadãos curitibandos (sic), que são contra ideologia de gênero, linguagem neutra e banheiros neutros”.

Justificativa do Projeto de Lei 005.00296.2021, de Ezequias Barros (PMB)

O pedido foi respondido pela Secretaria Municipal de Educação que explicou que a escola tinha, na época, 11 banheiros, dos quais oito são usados pelos estudantes, separados em banheiros femininos e masculinos e que apenas os banheiros da educação infantil estão no mesmo ambiente. “Os alunos menores do pré e primeiro ano utilizam o mesmo espaço, mas esse é dividido por paredes e portas, e identificados como sendo masculino e feminino, pois as crianças são muito pequenas para irem ao banheiro sozinhas“, detalha o documento.

Norma para construções de banheiros garante privacidade

Em resposta à proposição de Ezequias, a procuradoria jurídica da Câmara informou que a discriminação com base em sexo ou identidade de gênero é crime e também destacou outro fato: a construção de banheiros em locais de trabalho (caso das edificações citadas no projeto de lei) é regulamentada por Norma Regulamentadora (NR) que estabelece que no caso de estabelecimentos com até 10 trabalhadores “poderá ser disponibilizada apenas uma instalação sanitária individual de uso comum entre os sexos desde que garantidas condições de privacidade”.

Acima de dez trabalhadores, o local é, diz a norma, obrigado a disponibilizar banheiro na “proporção mínima de uma instalação sanitária para cada grupo de 20 (vinte) trabalhadores ou fração, separadas por sexo”. Ou seja, na eventualidade de espaços em que é necessária a construção de poucos sanitários, estes serão sempre de uso individual, garantindo a privacidade de quem quer que o esteja utilizando.

A norma também estabelece uma única instalação em que não há a proteção de paredes e portas: o mictório. Mas as instalações de vasos não podem ficar abertas e expostas.

Preço da construção de banheiros

Norma determina que todos os sanitários sejam privados.

A única razão para a construção de banheiros unissex não tem nada a ver com questões de cunho sexual: o preço. Desde janeiro de 2017, o preço do metro quadrado construído em Curitiba aumentou 60%. A aceleração dos preços da construção civil e do metro quadrado de imóveis na região aumentou em 2021, saindo de um patamar de 5% ao ano para 15%.

Nesse cenário, a construção de banheiros em que a pia fica em ambiente separado do sanitário otimiza e barateia o projeto. Como a norma prevê, esse modelo tem uma unidade sanitária de uso individual, mas também uma pia de uso comum, reduzindo o espaço e o custo como um todo. Outra vantagem é a redução da área ocupada pelo banheiro, algo estratégico em imóveis em que a área de salão é fundamental para negócio, como no caso de restaurantes.

Ideologia de gênero

Após a resposta à solicitação de Noemia Rocha, o assunto não teve andamento na Casa, até novembro de 2021, quando voltou ao plenário por iniciativa de Ezequias Barros. Na defesa da ideia, o parlamentar exibiu um vídeo e disse que como avô e pai se sentia ameaçado.

“O vídeo é em uma escola onde uma pessoa, um travesti, um menino travestido, agride fisicamente a sua colega estudante, uma menina, porque ela se sentiu constrangida no banheiro, incomodada com um travesti no banheiro feminino da escola. Apesar de não haver identificação de onde é o vídeo, as imagens refletem bem o que será a vida dos estudantes neste País dominado pela tal ideologia de gênero”, afirmou em plenário. 

A escola onde foram feitas as imagens fica no interior do Pará e se trata de uma unidade do Ensino Médio, que atende adolescentes a partir de 15 anos. Elas ganharam notoriedade nas redes sociais depois de terem sido compartilhadas pelo deputado federal Delegado Éder Mauro (PL), parlamentar que já foi acusado de agredir uma servidora pública transexual em Belém (PA).

Na Câmara de Curitiba, Barros não identificou nem a origem nem o local das imagens ou contexto. Também deixou de lado uma informação: a rede municipal de ensino de Curitiba atende crianças de 0 a 14 anos, na educação infantil até os anos finais do Ensino Fundamental. Não tem nenhum aluno do Ensino Médio.

Ideologia de gênero

A cruzada de Ezequias é contra o que chama de “ideologia de gênero”, um termo do fundamentalismo cristão para a educação sexual. Para o parlamentar, o próximo passo após o respeito a identidade de gênero das pessoas, como determinou o STF, é uma invasão dos banheiros públicos por pessoas de ambos os sexos.

No plenário da Câmara, Barros recebeu o apoio de colegas como Tânia Guerreiro (União), que declarou que banheiros unissex “é furtar a inocência da criança”, em registro feito pela assessoria de imprensa da Casa. “Não podemos arredar o pé. A grande maioria dos pais não querem esse tratamento [da ‘ideologia de gênero’]”, defendeu Barros na mesma sessão.

No dois casos, a fala dos parlamentares é uma menção obliqua a uma relação falsa entre homossexualidade e pedofilia, uma relação que Barros já fez em plenário em outras ocasiões, como no caso da defesa da homenagem da Câmara a uma defensora da chamada “cura gay” (uma técnica condenada pelas autoridades de saúde para “converter” pessoas homossexuais, bissexuais ou transgênero).

Em resposta à iniciativa de Barros, a Secretaria Municipal de Educação informou que: “reconhece que a homofobia no ambiente escolar produz segregação, favorece o abandono escolar, fomenta assédios e abusos, afeta o rendimento escolar, influencia no processo de formação da identidade e na vida social, dificulta as relações familiares e gera o desrespeito e a intolerância. Neste sentido, pode-se afirmar que esta secretaria respeita e acolhe os processos de uso de nome social, ressignificação de uso dos espaços das escolas e CMEls de acordo com a solicitação/necessidade das crianças e estudantes envolvidos, atendendo ao disposto na Orientação Conjunta 02/2017-SUED/SEED, e a Orientação Pedagógica n.° 001/2010 – DEDI/SEED, elaborada a partir do Parecer n.° 01/09, de 08/10/09, do Conselho Pleno do Conselho Estadual de Educação do Paraná e o Parecer n.° 04/09 do Ministério Público do Paraná, que, no item n.° 06, afirma: Quanto ao uso do banheiro. Orienta-se que os/as transexuais e travestis utilizem o banheiro das/os alunas/os de acordo com a identidade de gênero que apresentam. Ressalta-se que a arquitetura da escola não precisará sofrer qualquer alteração, ou seja, não é preciso construir um terceiro banheiro, bem como, também não se orienta que as/os alunas/os travestis e/ou transexuais utilizem o banheiro das/dos professoras/es ou de deficientes”.

Fake news e eleição presidencial

O assunto “banheiro unissex” foi alvo de um aumento de interesse registro no Google no início de outubro. Com uso de uma foto antiga de escolas de educação infantil de Campinas, uma postagem afirmava que a implantação de banheiros unissex em escolas estaria no plano de governo do candidato a presidente, Lula (PT). A história foi desmentida pelo UOL, que verificou não existir menção a “banheiro unissex” no plano de governo do petista.

Além disso, a foto se refere a centro de educação infantil em Campinas, que mantém espaço de banheiro anexo a salas de atendimento para crianças até 3 anos, com fraldário, uma vez que crianças até essa idade usam fralda ou são acompanhada pelos professores ao banheiro.

A disseminação dessa informação falsa teve efeito imediato no interesse das pessoas sobre o assunto. No Google, o aumento começou no início de outubro, véspera do primeiro turno e teve um pico no último dia 4 de outubro.

Google: aumento de interesse pelo termo “banheiro unissex”.

Problemas com banheiros públicos e de escolas

Apesar de não encontrar menção a problemas com uso compartilhado de banheiros, a pesquisa do Plural entre os registros do 156 revelou outros problemas com banheiros em escolas e espaços públicos do município. No total, foram encontradas 679 reclamações e solicitações referentes a banheiros nos últimos 12 meses no serviço 156, 29 sobre escolas e centros de educação infantil.

Entre os assuntos mais recorrentes estão reclamações sobre a presença de pessoas em situação de rua em banheiros públicos (65 casos), falta de higiene e limpeza (54 registros) e presença de morcegos (29). “Informa ainda que a pessoa que entrou sem máscara é um morador de rua, que utilizou o banheiro feminino para tomar banho e ninguém falou nada”, relata uma reclamação a respeito de uma Unidade de Saúde.

Em outras reclamações, os autores relatam falta de material de higiene e limpeza. “Reclama da falta de higiene da Unidade de Pronto Atendimento Boa Vista. Informa que esteve no local e que os banheiros estavam sem papel higiênico, havia papel molhado em cima das pias e o chão estava sujo”, registra um cidadão. “Reclama do local devido a não ter materiais de higiene e limpeza como papel higiênico, sabonete, álcool gel nos banheiros”, diz outro registro.

No caso do Centros de Educação Infantil, as reclamações são variações de um mesmo tema: falta de água nas unidades, falta de material de limpeza e higiene e recusa das profissionais em levar as crianças ao banheiro, levando crianças a urinar e defecar na roupa.

Em um registro, uma pessoa conta o que teria acontecido com o filho em uma escola conveniada: “Relata que seu filho tem três anos em várias ocasiões foi colocado de castigo, no fundo da sala, fora da sala ou em outras turmas. Cita que a criança está desenvolvendo problemas psicológicos e psicossomatizando doenças e com dificuldades em segurar a urina, mesmo sendo desfraldado há bastante tempo. Informa que em uma ocasião a criança ficou o dia todo com as roupas molhadas de urina e ao ser questionado pela mãe o porque não pediu para ir ao banheiro ou porque não contou para a professora que havia feito xixi nas calças, o mesmo respondeu que a professora ia brigar e dar castigo.Informa ainda que já conversou diversas vezes com a diretora da escola, com a pedagoga, mas nada mudou”.

Outra reclamação fala em falta de chuveiro para higienizar uma criança: “Informa que ontem a diretora foi até a sua casa para informar que ela deveria dar banho na criança que havia feito as necessidades na escola, porque estavam sem chuveiro. Relata que quando chegou buscar seu filho ele não estava sujo. Ressalta que seu filho pediu para ir no banheiro, tirou a calça no parque onde eles estavam , e fez coco, pede que seja verificado porque levou roupa e a diretora disse que não poderia ficar com ele, porque estavam chuveiro”.

Em outra reclamação, o problema é a falta de profissionais para atender as crianças: “Reclama que no cmei (…) está com falta de professores. Informa que as crianças tem que ir sozinhas ao banheiro. Salienta que são crianças menores de três anos que precisam de acompanhamento nesses casos”. Outro registro aponta que o CME “está sem professora de apoio, e que só a professora não consegue atender a turma de alunos. Relata que os alunos necessitam a profissional de apoio para ir ao banheiro, durante as aulas e no recreio”.

Estruturas das escolas

Dados do Censo Escolar mostram que todas as escolas da rede municipal de Curitiba têm banheiros dentro da edificação. Mas 35% ainda não tem banheiros adaptados para pessoas com necessidades especiais, só metade tem banheiros com chuveiros e 5% não tem banheiro exclusivo para funcionários.

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1 comentário em “Cruzada contra banheiros unissex é baseada em ameaça “inventada””

  1. Reportagem muito boa, parabéns!

    Só mostra como esses vereadores não estão preocupados com os problemas reais das escolas públicas, e utilizam discurso mentiroso pra se favorecer.

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