Sinfônica faz belo concerto, mas deterioração do Guaíra é visível

No programa de aniversário, teatro lotou para ouvir Villa-Lobos e Shostakovitch

Durante a semana passei ao lado do Teatro Guaíra e vi um cartaz anunciando o concerto de comemoração do 34º aniversário da Orquestra Sinfônica do Paraná, a ser realizado no domingo, 26 de maio. O cartaz informava apenas: “Maestro Stefan Geiger” e “Villa-Lobos – Shostakovich”.

Da próxima vez que passei perto do teatro tratei de comprar ingressos pra mim e minha filha Mariana. Sempre bom comprar antes, pra não atrasar no dia. No caso, se tivesse deixado pra comprar na hora eu teria encontrado o teatro lotado. Poucas vezes se vê concerto da Sinfônica com tanto público, ainda mais sendo um concerto sinfônico “comum” (as séries de música para crianças, de projeção de filmes com música e com o Balé Guaíra costumam lotar sempre).

Na correria desses dias nem me preparei para o concerto. Às vezes é bom saber alguma coisa sobre as peças que vamos ouvir. Mas talvez seja melhor não. Pesquisar sobre as obras depois do concerto pode ser até melhor, para preservar o prazer de ficar surpreso com a música. Somente descobri, no site do Teatro Guaíra, que a obra de Villa-Lobos seria o Concerto para harmônica e orquestra, com José Staneck como solista. E que a obra de Shostakovich seria a 10ª Sinfonia.

Eu e minha filha chegamos bem em cima da hora e, primeira surpresa, já não tinha lugar na plateia nem no 1º balcão. Fomos para o 2º balcão. Normalmente, se não pesquisei sobre o repertório, na hora que entro no teatro e pego o livreto do programa leio as explicações, as apresentações da orquestra, do maestro e do solista. Não sei se foi porque cheguei atrasado mas não tinha programa. Acho que não tinha mesmo, porque não vi programa na mão de ninguém durante nem depois do concerto. Se tinha foi feito em pequena quantidade. Se não tinha é um negócio indesculpável. Como é que faz um concerto dessa importância e não imprime um programa todo caprichado? O concerto acaba, o programa torna-se um registro importante do que aconteceu. Seria inclusive um marco comemorativo, podia ter um resumo da história da orquestra; afinal, concerto de aniversário é só uma vez por ano.

Mas não sei, talvez seja pedir demais para o governo do estado manter um corpo administrativo e um staff técnico no teatro mais importante que temos. Faz anos que o Guaíra vem sendo sucateado, deteriorando fisicamente a olhos vistos, sem nenhuma ação do governo estadual. Estão de parabéns os responsáveis, principalmente o senhor Beto Richa, que saiu do governo deixando terra arrasada em quase todos os setores, cultura principalmente. Com a palavra o senhor Ratinho Jr.. A ver se irá virar o jogo e tratar com a atenção merecida o Teatro do estado que governa. Por enquanto começou muito mal.

Essa insuficiência administrativa e financeira do Teatro Guaíra só ressalta a importância do que a orquestra está fazendo. Porque na parte musical, a orquestra provou que está muito bem. Interessante paradoxo: um teatro decrépito e sem corpo técnico administrativo, com uma orquestra no auge do vigor, tocando cada vez melhor.

O Concerto para harmônica de Villa-Lobos é uma obra de grande beleza. Não tem como não ficar impressionado – as harmonias são belíssimas, a orquestração delicada. Na verdade, não delicada o suficiente, porque num teatro grande como o Guaíra, a harmônica precisou de microfone e amplificação para equilbrar seu volume sonoro com o da orquestra. O resultado foi um tipo de reverberação desagradável nos graves, que certamente não está presente no instrumento acústico. Prejudicou, mas não tanto a apresentação.

Ouvindo a peça, comentei com minha filha que ela tinha muito um som característico dos anos 1950, período em que os compositores sinfônicos se esforçaram particularmente em criar obras mais tonais e com orquestrações muito líricas. A gente ouve uma aproximação entre a escrita de obras sinfônicas de concerto e as trilhas sonoras dos grandes filmes clássicos do cinema, também desta época.

Chegando em casa fui pesquisar na Enciclopédia da Música Brasileira e, sim, a obra foi composta em 1955-56. Final da vida de Villa-Lobos, fase mais clássica da sua obra, quando escreveu a quase totalidade dos concertos para instrumentos solistas e orquestra. Esse concerto para harmônica é de uma felicidade incrível, resultado excelente para um instrumento bem difícil de se escrever. José Staneck esteve muito convincente como solista, perfeito tecnicamente, um som belíssimo. E principalmente, é notável como estabelece uma empatia gigantesca com o público, desde a hora que pisa no palco até cada nota em que está tocando. Depois de terminada a peça, deu uma “canja” e tocou uma versão para harmônica solo do Trenzinho do caipira (Tocatta das Bachianas Brasileiras nº 2). Sim, não dá pra acreditar que é possível tocar isso numa harmônica solo, mas eu vi, juro. Tinha bastante gente no teatro, todos podem confirmar.

Aí vem aquele momento em que o staff técnico faz uma falta danada. Era só sair os músicos e entrar a contrarregragem para rearranjar a disposição de cadeiras e estantes para a nova instrumentação. Agora saíam harpa e celesta, mas precisaria de mais cadeiras para cordas e sopros. O set de percussão também aumentava, lá atrás, em cima do estrado. Tudo coisa que dava pra resolver em 10 minutos, com sobra, se tivesse uma equipe adequada. Mas demorou bastante, perdi a conta, mas tenho a impressão de que mais de 20 minutos. Tudo bem, foi bom pra criar mais expectativa sobre a sinfonia.

Eu já estava, a esta altura, conversando com minha filha sobre o Shostakovich, sua condenação pelo Pravda depois da ópera Lady Macbeth de Mtsensk, sua 5ª Sinfonia apelidada “resposta a uma justa crítica”, que adotou uma linguagem bem mais conservadora, sua 7ª sinfonia escrita entre 1941 e 42 e estreada durante o cerco de Leningrado, na invasão nazista, e contrabandeada em microfilmes para os EUA para ser regida por Toscanini como símbolo da luta contra o nazismo. De quando seria a 10ª Sinfonia? Que linguagem ela usaria? Quando a peça começasse, saberíamos se tinha sido composta antes ou depois da morte de Stálin.

O primeiro movimento começou muito suavemente, e após longos minutos a peça vai ganhando densidade harmônica e de instrumentação. Quando a peça atinge os maiores picos de tensão de de volume instrumental, Shostakovich distende e alivia, voltando a uma quietude. Termina o primeiro movimento, seria a hora de vir um Adagio. Como não estamos com o programa, levo um susto com as cordas começando em fortíssimo e tocando todas as notas com o talão do arco. A harmonia é tão densa que eu e a Mariana comentamos: certeza que ele escreveu isso quando Stálin já tinha morrido. Não teve Adagio, o segundo movimento é um soco no estômago do ouvinte. Não tem mais volta, já sabemos que a peça vai ganhar mais densidade e começamos a nos preparar para o que virá nos dois últimos movimentos.

Eles realmente vão nos dar um crescendo de tensão dramática, exceto por partes do terceiro movimento onde um ritmo ternário dançante dá um certo alívio festivo à dramaticidade da obra. Quando começa o último movimento já estou pensando em como Shostakovich mobilizou todo seu drama pessoal na composição dessa obra. Mais notável compositor soviético, reconhecido dentro e fora do país, passou por um enquadramento brutal no auge do terror stalinista. Intocável por sua fama mundial, viu parentes e amigos serem eliminados para atingi-lo, submeteu-se a compor com a estética do realismo socialista, o que lhe valeu críticas terríveis nos confortáveis sofás do Ocidente próspero e livre. Tornou-se um símbolo da resistência ao nazismo, virou meio que um modelo geral para o sinfonismo dos anos 1940 e 50 com suas obras do período do realismo socialista. Mas seguia sob pressão brutal e ameaça constante do regime. Escrevia cada nota musical como se tivesse um revólver engatilhado na sua nuca. Poucas obras, principalmente as de Câmara, que teriam audição reservada, longe do grande público e da fiscalização do regime, poderiam manter ainda certa liberdade criativa.

A 10ª Sinfonia ia soando como uma síntese de tudo isso. Eu ia ouvindo e pensando como deve ser a peça mais densa e mais dramática, certamente uma das mais difíceis que a Orquestra Sinfônica do Paraná apresentou ao seu público. O maestro Stefan Geiger ia quase despedaçando em gestos desesperados, ele que rege meio dançando, com o corpo todo e não apenas com as mãos. Os músicos, praticamente cada um um solista, especialmente os sopros, iam fazendo seu esforço colossal. Solos de trompete, de oboé, de flauta, de flautim, de clarinete, até de contrafagote. O naipe dos contrabaixos protagonizando longos trechos, de intensa dramaticidade.

Tudo terminado o público aplaudiu com o entusiasmo que a orquestra nos despertou. O maestro voltou para destacar cada naipe, que se levantou e recebeu justos aplausos. Que concerto!

Chego em casa, e vou consultar sobre a 10ª Sinfonia no meu Guia da música sinfônica, de François-René Tranchefort. A peça foi composta exatemente nos meses seguintes à morte de Stalin, no final de 1953. Tudo faz sentido. Shostakovich extravasou tudo que vinha guardando por décadas. Difícil uma obra ser escrita num momento mais decisivo de um compositor ou mesmo da música de um país. Não que após a morte de Stalin o regime fosse abrir uma nova fase de liberdades. Mas nunca mais existiria nada tão pesado quanto a ditadura stalinista. Para Shostakovich era certamente um momento de grande alívio.

Fui também procurar mais alguma coisa no site do Teatro Guaíra e vejo que foi definida mais uma parte da programação anual. Alô governo Ratinho: programação de orquestra sinfônica tem que ser feita e anunciada com antecedência. É melhor vocês já irem se coçando para 2019! Mas tudo bem, a gente pode ficar feliz em ver que a Orquestra vai manter um alto padrão nos concertos previstos para junho, agosto, setembro e dezembro. Parece que ainda tem uns buracos pra preencher neste calendário, e mais coisa deve ainda carecer de confirmação para ser anunciada. Vejam aqui [link: http://www.teatroguaira.pr.gov.br/2019/05/2612/Novos-concertos-confirmados-na-Temporada-2019-da-Orquestra-Sinfonica-do-Parana.html]

Já dá para ficarmos muito felizes e ansiosos porque a Orquestra Sinfônica vai tocar Concerto para orquestra, de Bártok, a música do filme Tempos modernos de Charles Chaplin (1936), a 1ª Sinfonia de Shostakovich e uma Sinfonietta de Lopes-Graça (sensacional compositor português, injustamente pouco tocado no Brasil), a abertura de La forza del destino de Verdi (que ganhou vida sinfônica separada da ópera em uma versão revisada) e a Suíte Vila-Rica de Camargo Guarnieri (que também ganhou vida sinfônica em nova versão independente da trilha sonora do filme Rebelião em Vila Rica para a qual foi escrita inicialmente).

Pelo que vem realizando até aqui, Stefan Geiger já colocou seu nome em pé de igualdade com os grandes maestros dessa história da Orquestra Sinfônica do Paraná: Alceo Bocchino, Osvaldo Colarusso e Osvaldo Ferreira. Tomara que continue conquistando apoio para fazer programação tão interessante. Dá pra ver que o público corresponde.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima