Divertida e inteligente, “Ovos não têm janela” encara os absurdos do mundo

Montagem com direção de Beto Bruel e texto de Manoel Carlos Karam se inspira em Beckett e teve sessões lotadas no Festival de Curitiba

Os curitibanos têm uma nova chance de assistir à primeira direção de teatro assinada por Beto Bruel, até então reconhecido e premiado por seu talento como iluminador (um dos mais, se não o  mais célebre do Brasil). É a montagem de “Ovos não têm janela”, produzida pela companhia Prego Torto, e que também leva aos palcos um texto inédito de Manoel Carlos Karam (1947-2007). A nova temporada vai de 17 de maio a 4 de junho e será no Teatro Zé Maria, com ingressos gratuitos. 

Em entrevista ao Plural antes das duas sessões de estreia lotadas no Festival de Curitiba, Bruel revelou por que somente a essa altura da sua carreira enfrentou o desafio de dirigir uma peça e, com a atriz e cenógrafa Guenia Lemos, contou um pouco das histórias dos bastidores da montagem. Agora, o Plural conta por que “Ovos não têm janela” é uma ótima escolha para quem gosta de teatro. 

Visionário

A peça é um texto do Teatro do Absurdo, escrito por Karam e inspirado na obra “Esperando Godot”, de Samuel Beckett (1906-1989). Contudo, o autor de “Ovos não têm janela” e fundador do Teatro Margem, coloca de lado o peso dramático beckettiano e faz uma comédia nonsense cheia de ironias ao tratar dos mesmos temas que interessam ao seu homenageado: a expectativa que não se concretiza, a espera de “alguém” que poderia mudaria tudo e simplesmente não vem, e os ciclos que se repetem mostrando a falta de sentido no mundo. Tudo acontece enquanto quatro pessoas esperam pelo atendimento de um doutor em uma sala de espera, onde um recepcionista cumpre o papel de avisar que “o doutor já vem”, entre outras coisas. 

Para entender, ou melhor, para se divertir com a peça é preciso entrar no jogo arquitetado com inteligência por Karam. A repetição de temas nas falas para lá de surreais vai ganhando um novo sentido a cada retomada, talvez até perdendo o sentido a cada looping, quando passa de uma boca a outra. Fica evidente o olhar sagaz que consegue fazer piadas elegantes sobre o egocentrismo e as futilidades dos outros, que somos todos nós em alguma medida. 

O jogo proposto não surgiu ali como por epifania (apesar de alguns personagens jurarem que tiveram uma em cena) e quem conhece a trajetória de Karam identifica pistas claras disso. Não existe o óbvio, mas, no fundo, ele fala para a plateia também sobre o seu mundo particular. São a gramática e o trato com a palavra também protagonistas na peça. 

Isso tudo poderia facilmente se esperar de Karam. É verdade. Ele é reconhecido pela coragem de mergulhar no experimental em sua produção, então a forma criativa não seria novidade, porém o texto é visionário. A peça foi escrita provavelmente antes dos anos em que o autor passou a se dedicar a produção literária, ou seja, no final dos anos 70, e resistiu ao tempo. As críticas sociais parecem nascidas hoje, o dedo é apontado para a igreja, a justiça, a medicina, a política, e para a nossa busca por saídas ali. Opa! A chegada de “Ovos não têm janela” aos palcos mostra que os absurdos do mundo não mudaram tanto assim.

Escolhas certas

A peça pode parecer superficial aos menos observadores, entretanto está longe de ser hermética, e a direção de Bruel – o “compadre” do teatro curitibano – é generosa com a plateia, ajuda muito para a experiência ser prazerosa. O bom humor está o tempo todo em cena com criatividade, sem precisar recorrer a receitas manjadas ou a recursos com cara de stand-up comedy

O timing, que pode parecer longo para um ou outro no público, tem o ritmo certo para deixar o espetáculo divertido sem fechar as cortinas para a reflexão. Nem todo mundo interpreta o que vê da mesma forma, mas a montagem não exige isso, mesmo porque a dificuldade na comunicação, o truncado que impede o entendimento entre as pessoas, é proposital. O diretor e sua trupe respeitam o jogo com habilidade e o sentido – ou a falta dele – se constrói em cada espectador. Não tem verdade absoluta em cena e, para quem se permite, esse é o grande barato. 

Inclusive, se permitir não é nada difícil porque está tudo afinado, conduzido por quem sabe dar luz a grandes talentos. (Bruel está reticente em aceitar novas propostas para direção, apesar de ter considerado ótima a experiência de “Ovos não têm janela”, devido à rotina que exige dedicação diária ao processo. Tomara que mude de ideia.)

Elenco 

No palco, estão Renata Bruel e Sidy Correa, além dos atores e idealizadores do espetáculo Gabriel Gorosito, Guenia Lemos e Moa Leal. A grata surpresa é Renata, que parecia ter ganhado o papel numa espécie de camaradagem de seu pai, o diretor. A ideia não passa de um engano, ela faz por merecer estar no elenco. Todos ali conseguem interpretações casadinhas com a comédia absurda que é “Ovos não têm janela”, mas Renata se mostra versátil e está muito bem. Ela faz dois papéis, duas mulheres no enredo, sem deixar nada a desejar. 

Uma nova árvore para Godot

Como já foi dito, todos estão bem em cena. Guenia, com seu ar de diva e qualidade para o cômico, está ótima, contudo é preciso confessar algo que pode quase soar como crueldade. Hipoteticamente, se ela precisasse escolher uma função no teatro como exclusiva, a torcida seria pela cenografia. 

Ela, em conjunto com Ana Kummera e com a direção do espetáculo, colocou no palco uma árvore que é a de Godot e ainda é nova, de onde saem personagens e ideias, com galhos que trazem telefones pendurados como molduras e adereços utilizados pelos atores. A paleta de cores contrasta tons vibrantes com o ocre do papel pardo que remete à burocracia. 

Entre as boas sacadas do cenário estão bancos modulares móveis que se abrem em colmeia durante a composição das cenas, não tem como descrever. São funcionais e lindos de ver. 

Esta temporada pode ser melhor

Finalmente, a experiência de assistir a “Ovos não têm janela” nesta temporada deve ser mais bacana do que foi no Auditório Poty Lazzarotto do Museu Oscar Niemeyer (MON), onde aconteceram as sessões durante o Festival de Curitiba. Sinceramente, ali não é o melhor local para um bom espetáculo e uma peça como esta merece ser assistida em um teatro de verdade. Então, as apresentações no Zé Maria prometem ser ainda melhores para o público. 

Serviço

Temporada de “Ovos não têm janela” (comédia experimental), de 17 de maio a 4 de junho, no Teatro Zé Maria Santos (R. Treze de Maio, 655 – São Francisco). De quarta a sexta-feira, às 20h, sábados com sessão dupla, às 17h e 20h, e domingos, às 19h. Entrada gratuita com distribuição de ingressos uma hora antes do espetáculo. Classificação indicativa: 12 anos. Outras informações aqui.

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