“Eu estava morto. Escrever esse livro me salvou a vida”, diz Mateus Baldi, autor de “Formigas no paraíso”

Obra de estreia do autor de 27 anos aborda traumas, desejos silenciados e outras violências do cotidiano

O livro “Formigas no Paraíso” despe personagens profundas e singulares ao longo de 11 contos e chama atenção do leitor para situações corriqueiras e conflitos íntimos. Com transparência e coragem, o escritor Mateus Baldi aborda traumas, desejos silenciados e outras violências do cotidiano. As questões de gênero são pano de fundo para as histórias imaginadas pelo jovem escritor e jornalista, de 27 anos, que se identifica como queer. 

Em entrevista ao Plural, Baldi fala sobre a falácia da masculinidade, a riqueza da literatura feita por mulheres e o conflito como moção: “Eu estava morto. Escrever esse livro me salvou a vida. Me devolveu à vida”.

Você poderia falar um pouco sobre o significado do título do livro? 
Decidi que teria de nomear o livro a partir de uma das histórias. Achei que “Formigas no paraíso” tinha o inusitado da imagem, mas também o conto e a cena em questão traziam muito do conteúdo do livro como um todo, o cômico, a tragédia. Sem contar que todas as personagens me pareciam formiguinhas, cada uma vivendo a sua função numa cidade, e isso especificamente me interessava muito: como que as pessoas existem individualmente na coletividade, como nenhuma vida é pequena se você analisar melhor – tanto que algumas histórias se cruzam. Me interessava essa dimensão falsamente microscópica. E, por baixo disso tudo, os versos de Paulo Henriques Britto – “Agora, as formigas continuam mais vivas do que nunca./ Ainda ontem devoraram um império”.

Você chegou a dizer que, a certa altura, não conseguia mais escrever com personagens masculinos. Por quê? 
Uma série de coisas – literárias e não literárias. Comecei escrevendo – e lendo – literatura policial, historicamente dominada por personagens masculinos, e histórias de muita brutalidade. Quando passei a ler a ficção adulta geral, me deparei também com homens escrevendo sobre homens, ao passo que as mulheres estavam fazendo coisas completamente diferentes – e que me agradavam mais nas temáticas e nas questões formais, estéticas, no modo de pensar a sociedade, enfim. Me parecia uma literatura mais rica. Paralelamente, por volta de 2015 comecei a questionar minha sexualidade e gênero de forma mais intensa. Comecei a escrever com personagens femininas por pura ignorância de não ter descoberto a possibilidade de ser uma pessoa não binária, queer – o que hoje é do que estou mais próximo. Sou queer. Quando escrevi “De cair a chuva”, que abre o livro e ganhou o prêmio Paulo Henriques Britto, da PUC-Rio, entendi que havia uma direção muito clara a ser seguida. E que essa direção se coadunava com questionar a falácia da masculinidade, das performances dos homens, que nunca haviam me interessado de fato e das quais eu começava a me libertar. A partir daí foi um boom: os contos vinham em espasmos, quase que prontos, a partir de conversas, lembranças, interpretações, enfim, uma série de estímulos muito bem definidos. Eu estava morto. Escrever esse livro me salvou a vida. Me devolveu à vida.

Comecei a escrever com personagens femininas por pura ignorância de não ter descoberto a possibilidade de ser uma pessoa não binária, queer – o que hoje é do que estou mais próximo. Sou queer.

Mateus Baldi, escritor

Um dos temas que perpassa os contos é o conflito. Suas personagens principais são quase sempre mulheres fortes em conflito com homens. O que há nessa ideia de conflito que faz você querer explorá-la como escritor? 
Acredito que sem conflito a gente não vai nem na esquina. É preciso que algo te tire da inércia, te movimente, uma inquietação diante dos estímulos. E não estou falando de nada catastrófico. O que há nesses contos é algo que impele essas personagens, acho, a superar esses caras que, à exceção de dois ou três, são completamente rasos, não oferecem entusiasmo nenhum na vida cotidiana a longo prazo. Acredito que isso deriva muito das minhas questões com gênero e sexualidade, essa recusa do masculino e a aposta em uma queda do domínio dos homens. É preciso que tudo que não seja o homem cis hétero o ultrapasse. Não que o elimine, mas que apresente ao mundo outros saberes, outras possibilidades. Há claramente uma falha generalizada, ou não veríamos o mundo do jeito que está. De modo que esse conflito, para mim, é um reflexo da realidade. Do que eu vejo, ouço nas conversas com amigas, daquilo que testemunhei. Mas não numa chave [auto]biográfica ou coisa do tipo – o livro é ficção. Ao mesmo tempo, não sei se são apenas as mulheres que estão em conflito com os homens – numa primeira camada, sim, afinal elas são a maior parte das protagonistas, mas também eles estão em conflito entre si. Penso no Bruno de “Mais alto que o mundo” e no taxista de “Antes que o sol”. Eles definitivamente estão tentando fazer algo diferente. E os que não estão, e que estão sendo vencidos por essas mulheres, definitivamente carregam alguns conflitos em si mesmos. Acho que o conflito, nesse livro, é generalizado – o gênero é só uma das camadas, talvez a principal. Assim como aqui fora.

Como sua experiência com a crítica literária ajudou (ou atrapalhou?) o trabalho de escrever ficção?
Não atrapalhou em absoluto, ajudou no sentido de entender o que eu queria fazer. De olhar para uma história e pensar como contar, que linguagem usar. Mas não acredito que isso tenha vindo exclusivamente da crítica – afinal ler, pensar e analisar um livro é sim parte importante do trabalho –, mas da experiência de ser uma pessoa leitora, alguém que há muito tempo lê sem parar, e de tudo um pouco. A melhor forma de entender como escrever é lendo. É um clichê danado, mas é a verdade. Construir repertório te permite conhecer os caminhos e descobrir que direções – não – tomar.

A melhor forma de entender como escrever é lendo. É um clichê danado, mas é a verdade.

Mateus Baldi, escritor

Livro

“Formigas no paraíso”, de Mateus Baldi. Editora Faria e Silva, 128 páginas, R$ 49. Contos. (À venda no site da editora.)

Sobre o/a autor/a

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