“A cláusula do pai” é um livro incomum. Porque ele faz umas coisas com a narrativa que poderiam parecer pós-qualquer coisa, mas na verdade é uma maneira engenhosa de contar uma história. Jonas Hassen Khemiri, o autor, escreve um romance inteiro sobre relações familiares – com avô, pais, filhos e netos – sem citar nenhum nome de personagem.
Todo mundo que aparece no livro é definido pelos papéis que desempenha dentro da família: “um avô que é um pai”, “um pai que é um filho”, “um namorado que nunca vai ser um pai”…
Pode parecer confuso e, no começo da história, talvez você faça cálculos para entender quem é quem (como eu fiz, para conferir que o “filho que é um pai”, por exemplo, é filho do “avô que é um pai”). Mas não demora muito e você se acostuma, e consegue saber quem é quem sem cálculo nenhum.
Jonas Hassen Khemiri
E esse é só um dos méritos de Jonas Hassen Khemiri e da tradutora Clarice Goulart. O texto funciona tão bem que você é envolvido completamente pela narrativa, vivendo aquela rotina meio trivial dos personagens até se dar conta de que a história em si não importa tanto. O que importa mais é a tensão criada justamente pela decisão de Khemiri de não revelar o nome de ninguém e de dar uns poucos detalhes sobre os personagens de maneira muito econômica. Uma descrição de cabelo aqui, uma opinião política ali.
Porque a “trama”, por assim dizer, trata de um homem mais velho, o patriarca da família, que chega à Suécia para visitar a família. Ele viveu na Suécia antes, onde seu filho e sua filha nasceram e foram criados. Agora, ele mora em outro país porque se cansou da Suécia. Mas não se sabe com certeza que outro país é esse. O patriarca vai passar duas semanas na cidade, como faz de tempos em tempos, fazendo uso da tal “cláusula do pai” a que o título se refere.
“A cláusula do pai”
Essa cláusula foi um acordo informal que o pai fez com o filho ao vender seu apartamento para ele antes de deixar o país. Em troca de um preço mais baixo, o pai teria o direito de ficar no apartamento – que acabou virando o escritório do filho contador – sempre que precisasse.
Dezessete anos depois desse acordo, que é o ponto onde a história começa, o filho já não aguenta mais esse arranjo. Para ele, o pai é um sujeito espaçoso, muquirana e meio porco. Para o pai, o filho é um mal-agradecido e um perdido na vida. Aliás, essa é outra coisa legal do livro de Khemiri: ele alterna pontos de vista e você tem acesso ao que os personagens pensam um do outro, de modo que a dinâmica familiar vai ficando mais clara.
O que há por trás dessa decisão de não dar os nomes dos personagens nem qualquer detalhe mais revelador é importante e tem a ver com trabalhos anteriores de Khemiri, que é mais famoso como dramaturgo do que como romancista.
Contexto
Jonas Hassen Khemiri é um sueco que não se encaixa no “estereótipo ultrapassado” do sueco, como ele mesmo diz. Não tem o cabelo loiro nem os olhos azuis. Isso porque seu pai é um tunisiano que migrou para a Escandinávia e se casou com uma sueca. Professor de francês e de árabe, o pai costumava mostrar para o filho adolescente como era o tratamento que eles recebiam quando o pai falava sueco com sotaque francês (o tratamento era melhor) e quando falava sueco com sotaque árabe (bem pior).
Esse pai estrangeiro e esse país preconceituoso criaram um escritor muito ligado nas palavras e na forma como elas são usadas, para o mal e para o bem. Tenha em mente que imigrantes que se casaram com suecas ou suecos optam por usar o nome da parceira ou do parceiro quando tentam alugar um apartamento – porque um nome estrangeiro pode complicar tudo. (Khemiri escreveu um texto muito bom – aqui, em inglês – sobre o preconceito que sofreu ao longo da vida inteira na Suécia e que ainda sofre, apesar de ter nascido no país e de ter vivido nele a vida inteira.)
No livro, por não dar nomes nem rótulos aos personagens, Khemiri executa pelo menos duas proezas. A primeira é mais óbvia e tem a ver com o talento literário. Não são poucas as manobras que faz para manter o jogo funcionando. Como leitor, a coisa que a gente mais quer saber é exatamente o que ele não quer contar. Ao menos não assim, fácil. Mas as pistas permitem alguns voos de imaginação.
A segunda proeza é mais sutil. Apesar de ser um argumento conhecido – de certa forma, o tema dele é igualdade –, o modo como faz isso é genial. Porque não importa o nome, o país, ou a história familiar. Todo mundo é um pai, um filho, uma mãe, uma irmã, um irmão, uma filha…
Livro
“A cláusula do pai”, de Jonas Hassen Khemiri. Tradução de Clarice Goulart. Âyiné, 284 páginas, R$ 69,90. Romance.
Podcast
“O que ler agora?”, o podcast de livros do Plural, fala sobre “A cláusula do pai”: