Hemingway inédito, “Morte ao entardecer” é mais do que um livro sobre touradas

Tradutor escreve sobre livro em que Hemingway vai às touradas para falar do embate entre a vida e a morte

“Morte ao entardecer” vai às touradas para falar da Espanha, um país que Hemingway amava, e para confrontar as coisas boas da vida – vinhos e viagens, arte e amor, livros e literatura – com o fato de que ela, a vida, acaba. Esses são temas importantes na obra do escritor que levou o Prêmio Nobel de Literatura em 1954 e todos eles aparecem como que concentrados nesse livro extraordinário, uma mistura estranha de ensaio pessoal com relato de viagem, pontuado por trechos de ficção e de crítica literária. Só para início de conversa.

A notícia é que “Morte ao entardecer” acaba de ganhar sua primeira edição em português pela Bertrand Brasil. (E aqui devo dizer que a tradução do livro é minha e você pode me achar suspeito para falar qualquer coisa – e eu sou.)

Morte ao entardecer

Que “Morte ao entardecer” tenha permanecido inédito por mais de 90 anos – e não só aqui, mas também em Portugal, pelo que pude apurar – é um mistério. Talvez porque o tema principal seja controverso: não dá para conciliar a crueldade das touradas com a ideia de um mundo um pouquinho melhor. Ou talvez por ser um livro muito diferente de tudo que Ernest Hemingway (1899–1961) escreveu antes e depois.

Hemingway não nega a crueldade das touradas; ele se interessa por ela assim como se interessa por tantos outros temas que tornam a vida trágica e valiosa. 

Ernest Hemingway publicou “Morte ao entardecer” em 1932, três anos depois de “Adeus às armas”. (Foto: Lloyd Arnold/Wikimedia Commons)

“Morte ao entardecer” é um livro sobre tourada da mesma forma que “O velho e o mar” é um livro sobre pesca. Para Hemingway, a tourada e a pesca são formas que ele encontrou para aprender a viver e a morrer, escrevendo sobre elas num estilo definido como “concreto e objetivo”. Porém, com uma diferença importante: “Morte ao entardecer” não é um romance, ao menos não no sentido tradicional, com trama e arco narrativo. Mesmo fazendo um livro com o objetivo de apresentar as touradas para o público de língua inglesa (diz Hemingway), ele vai além disso e narra histórias espetaculares de homens e animais que perderam a vida ou quase, fazendo coisas que queriam fazer ou que foram obrigados a fazer. 

Ele fala de bravura e coragem, como não poderia deixar de ser, e da passagem do tempo: “Sei que as coisas mudaram e não me importo. As coisas mudaram para mim também. Deixe que tudo mude. Nosso fim vai chegar antes que as coisas mudem demais”. Eram os anos 1930 e acho que as mudanças não eram tão rápidas como são hoje…

Ernest Hemingway

Se duvidar, “Morte ao entardecer” é um dos livros mais citados de Hemingway, ainda que o pessoal fazendo as citações não se dê conta disso. É nele que aparece, por exemplo, a famosa “teoria do iceberg”: “Se um escritor de prosa escreve sobre algo que conhece, pode querer omitir certas coisas, e o leitor, se o escritor for autêntico, vai ter uma percepção dessas coisas tão forte quanto teria se o escritor tivesse de fato escrito sobre elas. A dignidade no movimento de um iceberg se deve ao fato de apenas um oitavo dele estar acima da superfície da água.” 

Ao longo da vida, Hemingway criou uma persona pouco simpática, ainda mais para o mundo de hoje (“garoto-propaganda da masculinidade tóxica”, definiu um jornalista americano). Hoje se sabe que ele era mais complexo do que isso, como mostra o documentário “Hemingway” (2021), de Ken Burns, e um número considerável de pesquisadores, entre eles, Michael S. Reynolds, um biógrafo meticuloso que levou 25 anos escrevendo cinco volumes sobre a vida do autor de “Morte ao entardecer”.

Ernest Hemingway definiu uma ideia de masculinidade que marcou o século 20, mas não sem um tanto de conflito pessoal. No caminho, e apesar disso, marcou para sempre a forma como a literatura conta histórias.

Capa de “Morte ao entardecer”, publicado pela Bertrand Brasil.

Livro

“Morte ao entardecer”, de Ernest Hemingway. Tradução de Irinêo Baptista Netto. Bertrand Brasil, 350 páginas, R$ 99,90. Ensaio.

Sobre o/a autor/a

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