Para o escritor Jonathan Lethem, de “Brooklyn sem pai nem mãe”, o romance “Gelo”, de Anna Kavan, é como a lua. “Só existe uma.”
“Gelo” teve um percurso curioso desde sua primeira publicação, em 1967. Trata-se do livro que consagrou Anna Kavan. A crítica chegou a traçar paralelos com Franz Kafka e Samuel Beckett para falar de sua prosa. Além de ter despertado a admiração de escritoras como Anaïs Nin e a Nobel de Literatura Doris Lessing.
Avalanche
Porém, por causa de suas narrativas desconcertantes, Anna Kavan acabou sendo menos lida do que merecia. No livro “Gelo”, há uma catástrofe ambiental iminente – uma avalanche de gelo prestes a destruir o planeta. Nesse cenário, três protagonistas sem nome, envolvidos em um suposto triângulo amoroso, tentam se salvar. Não só da destruição, mas também se salvar uns dos outros.
O narrador, “a garota” e o “guardião” estão sempre a um passo da aniquilação e da guerra movida pela escassez de recursos. Sobretudo, no horizonte, há as imensas paredes gélidas que engolem o ambiente.
Sempre no encalço da “garota”, o narrador e o “guardião” não poupam esforços para protegê-la, tratando-a como uma vítima incapaz e indefesa.
Premonitório
Tudo em “Gelo” parece ruir e escapar inclusive da leitura mais atenta, como se a brancura gélida cegasse a percepção. Mas, como é comum acontecer com obras de vanguarda, o tempo torna alguns elementos mais legíveis. Além de ser um exemplar de protofeminismo, o romance consegue também ser premonitório: nele, está a certeza de que ação destrutiva do homem sobre a natureza invariavelmente o levará à extinção.
Embora temas pós-apocalípticos já fossem comuns na literatura do período seguinte à Segunda Guerra Mundial, é inevitável ler “Gelo” nos dias de hoje sem associá-lo ao panorama das mudanças climáticas, tema do posfácio desta edição, assinado pela pesquisadora inglesa Victoria Walker.
Não apenas pela escolha temática, mas por sua linguagem e forma, o romance pode ser lido como uma poderosa representação literária do antropoceno e do apocalipse ecológico prenunciado pela genialidade fugidia de Anna Kavan.
A autora
Anna Kavan é um pseudônimo de Helen Woods, que nasceu em 1901 em Cannes e durante a vida morou na Europa, Estados Unidos e Inglaterra.
Publicou suas primeiras obras usando o sobrenome do primeiro casamento, Helen Ferguson, e desde então sua vida teve episódios conturbados de colapsos nervosos e vício em heroína.
Em 1938, deu entrada em uma clínica na Suíça, de onde saiu com um novo estilo literário e o nome de uma de suas personagens, que passaria a adotar até o fim da vida.
Livro
“Gelo”, de Anna Kavan. Tradução de Camila Von Holdefer. Fósforo, 208 páginas, R$ 69,90 e R$ 49,90 (e-book).