Francisco Mateus retrata o sul do Brasil em “Campo dos milagres”

Com temas que vão da paranoia urbana à religião, livro de contos do escritor será lançado neste fim de semana, na Alfaiataria

Os contos do livro “Campo dos milagres” funcionam como uma viagem. “Existe a partida, a aventura e a volta”, diz o escritor Francisco Mateus. A viagem é física – de Curitiba para Lisboa e de volta para o Brasil – e também literária. Com a namorada portenha, ele conheceu “Martín Fierro”, o clássico de José Hernández (1834–1886) que fundou a literatura argentina. E essa experiência o levou a escrever o conto “A Volta do Gaúcho Gonçalo Martins”, o mais autobiográfico de “Campo dos milagres”.

Francisco Mateus lança seu livro de contos neste sábado (16), no “Implode”, que reúne dez escritores em um lançamento coletivo de prosa e poesia. O evento será das 15h às 21h, na Alfaiataria (Rua Riachuelo, 274 – Centro).

Francisco Mateus

Na entrevista a seguir, o escritor fala sobre seus contos e sobre a experiência de voltar para Curitiba depois de viver três anos em Portugal.

Quais você diria que são os temas do livro “Campo dos milagres”? 
Eu procurei fazer um retrato do sul do Brasil ao longo dos seis contos que compõem o livro explorando temas que estão no imaginário popular sulista mas de um jeito mais pop. Um exemplo é o nazismo no Paraná que foi explorado no conto “Círculo de Ferro”. Também busquei explorar o folclore no conto “De quando deixei os campos”, a paranoia urbana em “À Janela” e o vampirismo curitibano em “O Patrãozinho”. O conto “Campo dos Milagres” trata sobre a religiosidade que leva as pessoas à loucura, ainda mais em momentos de crise. Já “A Volta do Gaúcho Gonçalo Martins”, por ser quase uma novela e que ocupa metade do livro, tem uma maior variedade de temas. Há uma exploração do gauchismo por meio de um personagem que está entre a tradição e a modernidade, e que encontra na viagem uma forma de encontrar sua identidade. Também, existe o tema de ir e voltar, de encarar o passado que se tenta ignorar e da bagagem que se leva à medida que um vai vivendo.

Além disso, todos os contos, com exceção de “À Janela” e  “O Patrãozinho”, se passam em cidades do interior, mas que de alguma forma acabam se relacionando com Curitiba. A partir do olhar de alguém que sempre viveu na cidade grande, me parece que o interior é um lugar onde o fantástico, o bizarro e o inexplicável habitam. Sei que a realidade é diferente, mas o que há para além do asfalto é para mim fonte de trabalho imaginativo. Tanto que quem deixa o interior, sempre chega à capital com alguma história. Eu queria contar isso, histórias fantásticas que podem sair da boca de qualquer pessoa. 

No todo, o livro funciona como uma viagem, e isso fica evidente com a organização dos contos. Existe a partida, a aventura e a volta.

Que escritoras e escritores serviram de referência para você nesse livro?
Eu queria escrever um livro de contos tal como os argentinos, no sentido de brincar com a ideia de literatura fantástica elaborada pelos hermanos. Logo, há muito de Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo e principalmente José Hernandez, que escreveu o poema épico “Martín Fierro” e que foi a principal inspiração para o conto “A Volta do Gaúcho Gonçalo Martins”. Também há muita influência de Roberto Bolaño, por ser um autor que trata de violência e identidade latinoamericana. Do Brasil, posso dizer que Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, Wilson Bueno e Simões Lopes Neto foram alguns dos escritores que me ajudaram a criar o universo dos meus contos. Além disso, há influência das letras de músicos gaúchos como Júpiter Maçã e Jayme Caetano Braun.

Você poderia falar um pouco sobre as circunstâncias em que escreveu os contos de “Campo dos milagres”?
Em 2019, eu estava em Lisboa, onde fiz mestrado e morei por três anos. Antes de começar o mestrado, fiz um curso de escrita, e para uma das aulas tive que escrever um conto. Sempre gostei das histórias do folclore brasileiro, em particular da mula sem cabeça. Por isso decidi escrever um conto sobre um peão que precisa domar uma mula sem cabeça. Assim nasceu o conto “De Quando Deixei os Campos”. De certa forma, esse primeiro conto definiu o tipo de literatura que eu viria a fazer. Mas estando em Portugal, volta e meia me pegava com saudades do Brasil, assim eu comecei a criar histórias como uma forma de acalmar o “banzo”, essa melancolia pela saudade da terra natal. Uma dessas histórias foi o conto “À Janela”.

Então veio a pandemia. Foi um momento de tédio mas de intensa leitura e escrita. Eu dividia apartamento com amigos brasileiros. E como não tínhamos nada para fazer durante a quarentena, passávamos os dias à base de cerveja, haxixe, música e televisão. A gente assistia às notícias do Brasil, e a forma como a pandemia estava sendo tratada na época nos parecia muito irreal. Além disso, eu achava uma verdadeira loucura as fake news disseminadas pelo presidente e seus discípulos. Então pensei que eu poderia elaborar uma fake news tão louca quanto a deles. Assim nasceu a história de Campo dos Milagres, uma cidade do interior do Paraná onde a pandemia chegou misteriosamente e despertou a fé maluca da população.

Inventar histórias é para mim uma espécie de diversão, de passatempo. Foi mais ou menos assim que surgiu a ideia de brincar de matar a figura mais ilustre da literatura paranaense, tal como se fosse um vampiro de verdade. Então veio o conto “O Patrãozinho”. 

Seja em Portugal ou no Brasil, há sempre uma associação do sul brasileiro com o nazismo. E de certa forma cresci com essa associação, pois sempre ouvi meu pai contar histórias de quando trabalhou como médico no oeste paranaense e chegou a atender nazistas que viviam tranquilamente na região. Me soava quase como uma realidade paralela. Então, inspirado pelas histórias de meu pai, escrevi o conto “Círculo de Ferro”.

Nesta época eu tinha uma namorada de Buenos Aires e um grande amigo do Rio Grande do Sul, que dividia apartamento comigo. Com essa namorada aprendi muito sobre a literatura e a cultura argentina, e foi assim que cheguei no poema “Martín Fierro”, o épico gauchesco escrito por José Hernández que fundou a literatura argentina. Fiquei encantado pela obra. E meu amigo, que veio do pampa e teve uma formação gaúcha tradicional, sempre contava histórias do que ele ou alguém de sua família viveu lá no Rio Grande. Ele tinha todos os trejeitos de um gaúcho mas era apaixonado por rock’n roll e literatura. Era de fato um gaúcho punk. Assim, certo dia, voltando de trem de Porto para Lisboa com minha namorada, depois de participar do lançamento de uma antologia poética da qual fiz parte, comecei a formular este épico gaúcho moderno com um protagonista meio punk, tal como meu amigo. 

Enquanto estava em Lisboa, a ideia de voltar para o Brasil sempre me perseguiu. E inevitavelmente esse momento chegou. Ao chegar em Curitiba, eu estava meio deprê e deslocado, ainda processando os anos fora. Então comecei a escrever “A Volta do Gaúcho Gonçalo Martins”. É o conto mais autobiográfico do livro, tanto que é o mais longo. Se passa entre o Rio Grande do Sul e Lisboa, mas é narrado desde Curitiba. Houve um momento em que eu e Gonçalo viramos a mesma pessoa, com os mesmos sentimentos acerca daquilo que se encontra ao ir embora e ao voltar para um lugar. Esse é meu conto favorito, ainda que para alguns possa parecer uma novela.

Livro

“Campo dos milagres”, de Francisco Mateus. Urutau, 152 páginas, R$ 52. Contos.

Sobre o/a autor/a

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