As memórias que merecem sua história: “Coleção à brasileira” no Museu Paranaense

A exposição do artista Everton Leite permanece aberta para visitação até o dia 26 de março no Museu Paranaense

Todo mundo conhece uma pessoa que é boa em contar histórias. Que traz uma narrativa envolvente, nos leva pelos cenários, conduz pelas emoções.

Na sua última exposição “Coleção à brasileira: uma visita à colecionadora diarista”, atualmente no Museu Paranaense, Everton Leite mostrou, mais uma vez, que é uma dessas pessoas. Isto é, com o diferencial que não é só um pedaço de si mesmo que ele mostra, mas um pouco de todos nós que existe no cuidadoso arquivo de objetos e memórias montado por ele.

Trabalho, presentes e coleções

Composta por uma grande instalação, que ocupa o Espaço Vitrine do museu, a exposição traz um conjunto de objetos bastante comuns. Xícaras, bule, televisão, geladeira, pano de prato, vaso de flores. Já vimos coisas iguais ou muito parecidas nas casas de nossos pais, avós ou tias. São os utilitários simples em alumínio, as coleções de estampas florais que se repetem, o desenho da toalha que vimos em casa.

Visão geral da instalação e exposição. Foto: Kraw Penas (SECC).

Não à toa, é como um inventário de artigos que se repetem aqui e ali nos interiores domésticos das casas do interior do sul do Brasil – pelo menos, nas mais humildes.

Tudo que compõe essa parede de familiaridades tem uma história, que começa antes de virem parar nessa coleção. Eles pertencem à mãe do artista e outras quatro amigas, todas empregadas domésticas. Antes delas, os objetos tinham outras donas: as “patroas”, ou seja, as famílias que viviam nas casas onde as cinco mulheres trabalharam. Todo o inventário da exposição é feito de presentes que elas receberam ao longo do seus anos de trabalho.

Com destaque especial para a mãe do artista, que é dona da maior parte da coleção, essas mulheres são as “colecionadoras”. Logo, são participantes que servem como fontes, agentes diretas da criação. Para a curadora Juliana Crispe, todas as colecionadoras-diaristas se tornam uma “personagem”.

Porém, mesmo com a cuidadosa montagem de Everton, numa composição com apego nostálgico, não é difícil ver que é a realidade das colecionadoras que está exposta ali, os objetos como marcos do seu próprio tempo.

De frente para a vitrine existe um caderno que podemos folhear. Ali estão nomes, descrição de objetos e datas: são as ex-donas, seus presentes e o ano em que eles mudaram de mão. Numa entrevista que concedeu ao artista, a colecionadora-diarista conta que esse é o método que inventou para registrar tudo que ganhou ao longo dos 35 anos de trabalho: “Como hoje tenho muitos itens, escrevo tudo em cadernos e agendas para não me perder, sempre anotando o nome do objeto, o nome da patroa e o ano da doação. E quando algum objeto é doado para outra casa, também anoto, mas em outro caderno, para eu não me confundir.”, ela diz.

Visão geral da instalação e exposição. Foto: Kraw Penas (SECC).

Objetos que foram se repetindo, ocupando espaço, trocando de canto para abrir lugar aos novos. Everton Leite tentou recriar esse modo de organização tão particular, que fez dos velhos presentes itens de um arquivo pessoal. Entre as prateleiras recheadas, os eletrodomésticos plugados e as estampas alternadas, foi montada uma espécie de mostruário mundano, em que a história rica e complexa de uma vida é contada por artigos que pertenciam aos outros. Nos vemos encarando uma espécie de anteparo entre uma vitrine museológica e o mostruário de uma loja, contemplando objetos num misto de desejo e meditação.

Difícil não pensar sobre as intersecções entre o universo do consumo e a jornada de formar-se de alguém, de crescer e se fazer gente. As colecionadoras, responsáveis por guardar e cuidar do que não é seu, foram pouco a pouco construindo essa história compartilhada sobre o espaço que ocuparam na vida dos outros, que assumiu essa forma de arquivo.

Na verdade, essa não é uma história sobre apenas uma colecionadora-diarista ou mesmo sobre as cinco. Agora, esse inventário passou de mãos, como um presente (temporário, claro), para o filho-artista; e o capítulo atual dessa narrativa é sobre o espaço que a trajetória de uma ocupou na vida do outro.

Sem ruídos ou excessos sem motivo, deixando os espaços vazios na parede para nossa imaginação encher, Everton arquitetou bem os elementos para não deixar que essa história, esse inventário, pareça ser sobre um grupo finito de pessoas.

Eu mesmo, com alguma facilidade, continuei essa história a partir do que Everton contou nessa exposição. Nos bibelôs e cacarecos, vi a sala de casa em que passei a infância, com a decoração que parecia tão típica daquele lado do mundo. Vi a história da minha mãe, também diarista quando adolescente, com seu jeito de arrumar a casa, colecionar os artigos de estética duvidosa que comprava ou ganhava. Me vi também olhando com curiosidade para tudo que estava à minha volta enquanto crescia.

Sei que não sou o único que consegui me ver representado nesses elementos. Por um motivo ou outro, seja nos objetos populares ou relações familiares, há um pouco de nós nessa coleção. Mais uma vez, Everton nos envolveu com sua história.

Detalhe de objeto da exposição. Foto: Renan Archer.

Entrevista com o artista

Em entrevista, Everton Leite conta um pouco do seu processo, a relação com as colecionadoras-diaristas e como sua exposição se relaciona com a história do próprio Museu Paranaense.

Na exposição, você traz um conjunto de objetos de um acervo particular de uma empregada doméstica. Como você se conecta com esse universo, dessa profissão?

Na exposição eu trago os objetos da minha mãe. Desde os 19 anos ela trabalha como empregada doméstica. Já são 35 anos de carreira. Em toda casa que ela trabalhou – por mais de um dia ou por um tempo -, ela foi ganhando objetos, desde presentes, como itens decorativos, até móveis, eletrodomésticos. E esses objetos ficaram pela casa. Alguns, mesmo depois de não terem funcionalidade ou utilidade, ou não combinarem com a casa, ela mantém aqui neste espaço. Minha mãe não consegue se desfazer deles e eles ficam por aqui.

Todos os objetos da exposição são de terceiros?

Nem todos os objetos da exposição são de terceiros. Alguns objetos eu emprestei de pessoa, outros eu comprei pra compor a cenografia. Por exemplo, a geladeira e a televisão são objetos que eu tinha, mas que minha mãe doou. Eles não me pertenciam quando eu inscrevi o projeto. Eles faziam parte, mas com o passar do tempo ela doou. Também tem muito disso: o que ela ganha, ela também vai repartindo, como as roupas que não servem… Se ela fica sabendo na igreja que alguém precisa de alguma coisa ela também ajuda… Ela tá sempre dividindo as coisas que ela ganha. Algumas coisas mais especiais e específicas ela guarda. Muito patrão doa roupa, coisas que não servem nem pra ela, nem pra ninguém aqui de casa, isso ela acaba distribuindo. Ela tem esse olhar também de não acumular coisas que a gente não vai usar.

Não é o primeiro trabalho seu em que você lida com memórias e histórias dos outros, seja por imagem ou relato. Como foi o contato com a(s) pessoa(s) dona desses objetos para compor a exposição? Quais são alguns dos cuidados e processos que você utiliza para lidar com coisas de outras pessoas?

Eu sempre trabalhei com minha família, com as pessoas que cruzam meu cotidiano. Acho que a diferença desse trabalho foi trabalhar com pessoas que não conheço tão bem. A “Coleção à brasileira” surge, na verdade, com minha mãe, da vivência com minha mãe, ouvindo as histórias dela como empregada doméstica, vendo as coisas que ela trazia, as situações que ocorriam no trabalho – em que, às vezes, a gente ajudava. A partir dessa vivência eu criei um livro, uma publicação de artista, que tem o mesmo nome da exposição, onde eu trago a experiência dessa primeira mulher. E, no lugar do nome da minha mãe, usei o da “colecionadora” com medo de ela se prejudicar caso algum desses livros caísse nas mãos de algum dos patrões dela – não que ela falasse mal desses patrões ou dessas pessoas com quem ela trabalha, mas, com o texto e uma entrevista que tem nesse livro, ficou muito claro a exposição de uma intimidade pro público, e tem pessoas que não gostam de ter essa intimidade exposta, né? Eu também sempre tomo esse cuidado quando tô trabalhando com esses limites entre privado e público, de não entregar toda a verdade. Acho que a arte também é sobre isso, sobre abrir lacunas pro público preencher também, né? É na falta que também se preenche a memória e a gente cria histórias e tudo mais. Quando eu pensei no projeto pra vitrine do museu, queria muito dialogar com a própria coleção do museu, que é uma coleção bem variada, mas que em sua grande maioria é de pessoas que pertenciam à uma história hegemônica da cidade, né? Essa história branca, masculina, das famílias ricas dessa cidade. A vitrine fica do lado da sala que tem moedas e medalhas, que são itens que as pessoas gostam de admirar e gostam de ver esse passado. E quando eu fui pra essa vitrine, apesar dessa experiência da minha mãe ser muito importante, eu queria trazer mais vozes. Então, conversando com ela, ela me indiciou mais quatro amigas que também trabalham como diaristas há mais de cinco anos e eu conduzi entrevistas pra conversar sobre essa profissão, sobre como é o dia a dia nessas casas, que histórias marcaram a vida delas, por que elas estão trabalhando com o trabalho doméstico…A partir disso foi se construindo a própria vitrine. Duas delas eu consegui visitar a casa, ver onde ficam os objetos que elas também ganharam de patroas, e duas delas foram por vídeochamada. Então, observar esses objetos e ouvir essas histórias me ajudou a construir a própria vitrine. No livro, eu já trazia a voz da minha mãe na voz da “colecionadora”, então eu quis ampliar essa voz da colecionadora adicionando a voz dessas quatro mulheres na narrativa, mas mantendo o nome da “colecionadora”. Essa escolha pelo o nome, como eu disse, foi pra burlar um pouco o sistema, pensando que quem visita o museu são, na maioria, os patrões dessas empregadas e que elas [as empregadas] foram ver a exposição porque houve um convite a partir de mim e porque os objetos delas estavam lá. Mas, eu fiquei com medo de represália… Foi uma coisa conversada com a curadoria, com amigos e com a minha orientadora do mestrado: pensar uma personagem pra dar voz a essas múltiplas vozes. E a exposição também é um resultado da minha visita à “coleção” dessa diarista. Então é o meu olhar sobre o olhar da diarista sobre esses objetos. É meio que um trabalho de curadoria artística, de olhar para esses objetos em cada detalhe e colocar eles em ordem. Então, além do cuidado de respeitar as vozes, as conversas, também tive o cuidado de não expor essas mulheres pra elas não serem prejudicadas pelo trabalho. A minha ideia era dialogar com o acervo do museu, com as memórias, e com esses objetos que marcaram minha rotina e estão integrados às nossas memórias, às memórias familiares. O que é bem diferente de quando eu produzo um trabalho sobre minha casa. Como eu já estou dentro de casa lidando com as memórias de família, as coisas vão surgindo mais fácil, porque já estou mais acostumado com isso. Quando eu trouxe as outras pessoas eu senti essa responsabilidade, de dar voz à elas, de colocar elas ali no espaço.

Sobre a escolha do nome, “Coleção a brasileira”, de onde veio essa escolha?

Vem da minha pesquisa com publicações artísticas. Nos últimos anos eu venho estudando a história do livro no Brasil, principalmente da enciclopédia, e analisando os primeiros catálogos, as coleções, as brasilianas que a gente tem no país. E essa “Coleção à brasileira” é uma sátira dessa coleção brasiliana, que é formada por objetos exóticos, estanhos, objetos da cultura originária, que tem haver mais com gabinete de curiosidades, né? O “Coleção à brasileira” é o contrário disso: são objetos comuns, que a gente encontra na maioria das casas brasileiras, mas aqui eles também são colocados com esses objetos que são considerados “merecedores de uma história”.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima