Ela sempre soube que era uma mulher (embora ninguém acreditasse)

A fotógrafa Isabella Lanave conta em um ensaio-reportagem a história de Dionne Freitas, uma mulher intersexo que teve que lutar com problemas hormonais, com a falta de informação e com a aceitação da própria família.

Novembro de 2017. Dionne era uma das 20 candidatas ao Miss Curitiba Trans. Os cabelos ainda com bobes e o vestido rosa choque escondiam o nervosismo: ela não gosta de se atrasar. E estava atrasada. Na mente, o sonho de vencer o concurso. O vestido bordô da adolescência foi bordado para o desfile de gala e a pergunta dos jurados sobre a cura gay foi rapidamente respondida: “não existe cura para quem não é doente”. Dionne não venceu dessa vez e pretende, na próxima oportunidade, deixar claro que, além de ser uma mulher trans, é uma mulher intersexo; e que a sua luta é por essas duas causas.

Curitiba, 2017. Dionne e suas amigas no ensaio do Miss Curitiba Trans. O Brasil é o país que mais mata transexuais e a expectativa de vida para essas pessoas é de 35 anos. O evento é uma reunião de luta contra preconceitos à população LGBTIQ.

Conheci Dionne Freitas em um dos primeiros ensaios do concurso. Todas as participantes usavam saltos bem altos para testar suas habilidades na passarela improvisada em uma das salas na ONG Marcela Prado, a responsável pelo evento. Foi o primeiro desfile desse tipo de que Dionne participou. Para ela, a visibilidade da causa trans e as possibilidades para uma mudança na sociedade são papéis importantes do concurso, e, no fundo, ela sabia que o mais importante não era ser campeã, mas fazer parte.

O gosto pela cor rosa é uma lembrança que vem da infância. Em um episódio, aos cinco anos de idade, Dionne e o pai, Ataíde, discordavam sobre a escolha de um chinelo. Ele queria levar o chinelo azul do Pica-Pau, e ela, o chinelo rosa. Em outra ocasião, a mãe, Izaura, tentou levar o vermelho de presente, mas o pai optou pelo azul. Dionne não usou. A cor rosa era uma maneira para ela, ainda criança, chegar perto do que entendia ser o seu universo.

Curitiba, 2018. A passagem do tempo para Dionne. Ela com 10, 13, 14, 16, 20 e 25 anos.

Quando Dionne nasceu, a mãe sentia que ela era uma criança diferente. “Ela nunca foi um menino”, conta Izaura, que nunca quis ter um filho homem. Ela diz que “ser uma mãe de verdade é amar os filhos e as filhas como eles e elas são”. Ao dizer isso, olha para a filha e diz que sempre a amou e aceitou do jeito que ela é. Para o pai, foi mais difícil. Ataíde tratou a filha como um menino por muito tempo até conseguir compreender as mudanças que aconteciam.

Dionne cresceu sem entender o motivo de ser tratada como menino apesar de se compreender claramente como uma menina. Foi apenas aos 12 anos de idade, em uma lan house, que ela decidiu pesquisar mais sobre o que sentia. Jogou no buscador on-line da época: “meninos que são meninas”, e essa foi a primeira vez que leu sobre transexualidade. Se sentiu mais tranquila ao se identificar com o que lia. Mas, nessa mesma época, começou a ter um severo desequilíbrio hormonal e a sofrer com enjoos e desmaios sem saber o motivo.

Curitiba, 2018. A foto que Dionne deixa em sua sala é de quando tinha 2 anos de idade, com cabelo loiros e escondendo o seio com a mão direita. Mesmo quando o pai dizia que “homem pode ficar sem camisa”, ela nunca se sentiu confortável.

Dionne estava sofrendo pela falta de testosterona que a intersexualidade trouxe — em seu caso, devido à Síndrome de Klinefelter, uma das 40 variações possíveis na gama da intersexualidade. A Klinefelter é uma condição em que uma pessoa com cromossomos denominados masculinos, XY, nasce com um X a mais, o que afeta a produção de hormônios e o desenvolvimento do corpo. A Organização Mundial da Saúde estima em 1% a porcentagem de pessoas intersexuais no mundo, ou seja, pessoas que nascem com características genéticas, biológicas e/ou físicas dos dois sexos.

Quando Dionne descobriu a alteração hormonal, o médico recomendou o uso de testosterona para que seu corpo se desenvolvesse como o de um homem. Não era o que ela queria, porém o médico e o pai não aceitaram que ela ingerisse hormônio feminino. Dionne retornou, então, à mesma lan house em que buscou sobre transexualidade, agora para descobrir onde poderia encontrar estrogênio. Decidiu se automedicar, e, por dois anos, tomou anticoncepcionais escondida da família.

Campo Magro, 2018. Dionne no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na região metropolitana de Curitiba. Ela atende como terapeuta ocupacional pessoas que sofrem de dependência química e transtornos mentais.

No início teve uma melhora nos desmaios e seu corpo começou a se desenvolver, mas com o passar do tempo foram aparecendo outros problemas. Por conta disso, no final da adolescência a família apoiou a ingestão de estrogênio. “A minha infância foi triste por eu não viver como gostaria, mas a família e os amigos foram uma grande ajuda”, relembra.

A descoberta da intersexualidade só veio durante a faculdade de Terapia Ocupacional na Universidade de São Paulo (USP), depois de exames genéticos mais detalhados. Foi nessa época que conseguiu passar pela cirurgia de redesignação sexual. Hoje Dionne se sente livre para poder ser quem é e sonha em entrar numa sala de aula como professora universitária. Quando pensa sobre o Brasil, deseja um país em que os tratamentos para pessoas intersexo e transexuais sejam pautados nos direitos humanos, para que outras pessoas não passem pelas dificuldades que passou.

Curitiba, 2017. Dionne na sua casa. Ela estava esperando um uber para o Aeroporto. Nesse dia, viajou até Brasília para participar de uma discussão sobre a legislação para pessoas trans e intersexuais.

A Associação Brasileira de Intersexuais (Abrai) busca o reconhecimento da existência do gênero neutro e o estabelecimento de bases para o tratamento adequado de bebês e adolescentes, para que no futuro cada criança possa decidir sobre seu sexo — como aconselha a cartilha da Organização das Nações Unidas (ONU).

Quando uma criança intersexual nasce com dois órgãos genitais aparentes (o que representa apenas uma das inúmeras variações da intersexualidade), o método aplicado em grande parte dos casos é a cirurgia precoce, onde o médico e os pais da criança escolhem qual sexo vão manter. As consequências psicológicas que isso acarreta na vida dessa criança quando adulta são enormes.

Curitiba, 2018. Dionne em um supermercado próximo de sua casa. Ela passou o ensino médio sem contar a ninguém sobre sua condição. Quando se mudou para Curitiba, há 5 anos, se afirmou publicamente como uma mulher trans e intersexual.

O Chile é o primeiro país da América Latina a proibir cirurgias precoces em crianças intersexo e, em relação aos transexuais, o Brasil é um dos poucos países da América Latina que não têm leis específicas para a população transgênero. Atualmente, segundo Dionne, existe apenas um ambulatório especializado e com atendimento humanizado para pessoas intersexuais no Brasil, na Universidade Federal da Bahia. “Os outros ambulatórios que existem pelo país sempre optam por empurrar a cirurgia precoce para crianças intersexo”, justifica.

Além disso, há seis hospitais que fazem a cirurgia de redesignação sexual para pessoas trans e trans-intersexo no Brasil. Ainda é muito pouco e Dionne segue com sua luta e sonhos para que não apenas ela, mas toda a população LGBTIQ+ tenha seus direitos e liberdades garantidos.

Curitiba, 2017. Dionne e sua mãe. Elas moram juntas desde 2013, quando saíram do interior de São Paulo, Ribeirão Preto, na cidade onde Dionne cresceu e viveu os momentos de maior sofrimento em sua adolescência.

Para entender um pouco mais sobre a interesexualidade, sugiro acompanhar o canal do Youtube de Dionne Freitas, em que ela explica com muitos detalhes e propriedade sobre cada um dos termos aqui mencionados.

https://www.youtube.com/watch?v=nM7hqL4RF8I&list=PLyJPAeUgMdP03_74mSt-fWyGdATlf2EcR

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