É impossível passar ileso por “Destransição, Baby”

Transicionar é sair do lugar de uma forma definitiva, mas destransicionar não significa voltar para o lugar de onde se saiu

O fio que conduz “Destransição, Baby”, o romance de estreia de Torrey Peters, é uma gravidez inesperada. Ames, um funcionário subordinado a Katrina, acreditava ser estéril após alguns anos aplicando-se estrogênio regularmente e vivendo como Amy. Até então, apenas a suposta esterilidade era do conhecimento de Katrina, não a ex-transexualidade.

Katrina precisa de estabilidade e, ao contar sobre a gravidez, não sabe o que fazer. Ela queria poder contar com Ames. Como um castelo de areia desmoronando em câmera lenta, Ames passa dias sem conseguir demonstrar qualquer reação.

Ames não sabe como falar com Katrina – nem sobre o seu passado como mulher trans, nem sobre a ideia de coparentalidade com Reese, sua ex-namorada também trans que desejava ser mãe mais do que tudo. A coparentalidade queer se apresentou para Ames como uma alternativa de ter um filho sem ocupar o lugar de pai pressuposto pela normatividade. A paternidade padrão não era um lugar que ele almejava.

Reese havia se ressentido com a destransição de Amy, razão pela qual eles terminaram o relacionamento três anos antes. Para ela, a separação acabou com o sonho de um relacionamento estável e de uma rotina banal – algo que parecia tão inatingível para a maioria das mulheres trans. Agora, Reese ouve a proposta de Ames e sente tudo aquilo que a fazia desejar ser mãe voltar à tona: a validação de quem ela era, uma mulher, e a possibilidade de ser para um pequeno ser humano aquilo que a própria família não havia sido para ela.

Para Katrina, uma avalanche queer desestabilizou o binário de possibilidades que ela pensava que encararia diante da gravidez: ou Ames a apoiaria e ela prosseguiria com a gravidez, ou não haveria apoio e a gravidez seria interrompida. Ainda que não fosse a coisa mais simples do mundo, as possibilidades eram essas.

No entanto, a revelação de que Ames era um ex-transexual e a proposta de coparentalidade com uma mulher trans abriu a porta para um mundo do qual era impossível desviar o olhar. Aos trinta e cinco anos de idade, Katrina nunca tinha tido uma perspectiva queer para a própria vida.

A obra se divide em 11 capítulos, todos marcados temporalmente em relação ao momento da concepção, mas divididos em partes menores que vez ou outra escapam num devaneio, numa reflexão sobre algum acontecimento passado, como um parêntese que precisa ser aberto antes que a cena continue. Os capítulos, apesar de estarem temporalmente marcados, não tem uma linearidade cronológica, então ora transportam-se para o tempo presente da narrativa, ora transportam-se para anos antes na vida de Ames ou Reese.

A forma que Torrey Peters escolheu para contar a história de Reese, Ames e Katrina é como um vaivém, deixando pistas pelo caminho no decorrer das cenas presentes que depois são retomadas em flashbacks breves ou capítulos inteiros dedicados a períodos anteriores àquele momento e que, a cada parágrafo, mergulham mais profundamente nos anseios e vulnerabilidades dos três personagens.

“Destransição”

Quando peguei o livro pela primeira vez e vi a palavra “destransição” em letras grandes no centro da capa, admito que fiquei com um pé atrás. A palavra que já vi em tantos contextos conservadores – tanto entre defensores da virilidade patriarcal quanto em contextos feministas trans-excludentes – não soou como o convite mais amigável e eu logo me preparei para estereótipos, arrependimentos e uma vitrine sobre o sofrimento que a transição de gênero proporciona. Mal sabia que estava caindo na armadilha de Torrey Peters: o perigo da simplificação, do estereótipo, da perspectiva única.

As histórias a que tive acesso sobre destransição foram contadas por grupos hegemônicos, aqueles mesmos que acreditam que ninguém deveria transicionar, para começo de conversa, e que celebram a destransição motivada pela violência com que eles mesmos tratam as pessoas trans. A destransição contada por pessoas cis é uma vitória da história única, sobre como ser cis é a melhor – e única – alternativa.

Ainda que o título da obra nos dê uma impressão de que essa será uma história de destransição, na realidade o momento presente se passa anos depois da destransição de Ames. Toda aquela narrativa clichê sobre pessoas trans se questionando, se descobrindo, enfrentando os males de uma sociedade cisheteronormativa no início de transição, o enfrentamento da família e a perda das redes de apoio não faz parte dessa história. Os personagens tem uma construção impecável e são absolutamente cientes do que os movem – ainda que nós, leitores, nem sempre estejamos de acordo com essas motivações.

A narrativa se abre como uma semente que germina e cria galhos de formas inesperadas. Uma cena se passa, mas entre um olhar e outro, abre-se a complexidade de um personagem, a complexidade de uma situação. Essas complexidades são tratadas pela autora de formas muito honestas, sem pudores.

Peters, ao abrir espaço para duas protagonistas trans absolutamente diferentes – e uma maioria de personagens secundários também trans – nos convida a pensar sobre como qualquer tentativa de homogeneizar a experiência da transexualidade, ou a experiência queer como um todo, é tarefa impossível. Queer é sobre criar narrativas que rompem com a hegemonia, sobre criar um lugar para si num mundo que tem contornos e expectativas muito limitantes e estáticas de identidade, gênero, papéis de gênero, família e maternidade. Romper com a hegemonia não é tarefa simples, mas, quando a possibilidade se abre, é algo que não pode ser ignorado.

Talvez seja exatamente esse o fio que une todos esses personagens: o desejo de criar espaço. Cada um à sua maneira: a mulher cis-hétero que não atende às expectativas da cisheteronormatividade, o homem cis que viveu algum tempo como uma mulher transexual, mas não se contenta com a cisgeneridade; a mulher trans que busca a maternidade a todo custo. Num mundo binário e limitante, não havia espaço para os anseios desses personagens, como uma árvore que cresce num vaso pequeno demais. Mas e se quebrarmos esse vaso e descobrirmos que o que há em volta é uma floresta de possibilidades?

“Destransição, Baby”

Livro de Torrey Peters. Tradução de Luisa Geisler. São Paulo: Tordesilhas, 318 páginas. R$ 54,90.

Algumas indicações

Quer ampliar a discussão? O influencer Jonas Maria (@jonasmariaa) tem um clube de leitura chamado Testo Junkies que procura ler e discutir obras que envolvam pessoas trans com encontros on-line abertos para o público em geral, não é obrigatório ser LGBTI+. A próxima obra discutida será a “Destransição, Baby”.

Outros perfis de pessoas trans que procuram romper com a normatividade em campos diversos:

Nick Thomás (@nicknagari): transexualidade e bissexualidade

Geni Nuñes (@genipapos): não monogamia e arranjos familiares/ afetivos não hegemônicos

Helena Vieira (@helena.vieiras): teoria queer e transfeminismo

Leandrinha Du Art (@leandrinhadu): sexualidade e ativismo LGBT&PCD

Mar Facciolla (@mardemar.nb): saúde mental e não binariedade

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