“Conhecer Portugal é antes de tudo testar uma alteridade na própria língua”, diz Miguel Sanches Neto

Escritor publica o romance “O último endereço de Eça de Queiroz” e planeja se pacificar com a literatura

A trabalho, Miguel Sanches Neto teve chance de viver um ano em Portugal. “Foi uma outra vida e não uma viagem”, diz o escritor, em entrevista ao Plural. O período de um ano rendeu um “voluminho” chamado “O caderno português”, que é inédito e continuará assim, a depender do escritor. Mas a experiência portuguesa aparece, de certa forma, no seu romance mais recente, “O último endereço de Eça de Queiroz”, pela Companhia das Letras. Em Curitiba, o lançamento do livro será no dia 23, às 19h, na Livraria da Vila.

“Conhecer Portugal é antes de tudo testar uma alteridade na própria língua”, diz Miguel Sanches Neto, “pois precisamos nos ver como outro dentro de um idioma comum. Mas é também uma forma de nos conhecer como país, pois cada prédio, cada hábito, cada expressão tem uma conexão direta ou indireta com quem somos.”

No livro “O último endereço de Eça de Queiroz”, Rodrigo, o protagonista, deixa o Brasil para viver em Portugal e se dedicar à carreira de escritor. Porém, antes de se estabelecer e começar a escrever de fato, ele se entrega a uma viagem literária por endereços que vão de uma das residências de José Saramago até o túmulo de Eça de Queiroz. Este, autor de “Os maias”, é para ue Sanches Neto “o mais brasileiro dos ficcionistas portugueses”.

Miguel Sanches Neto

Na entrevista a seguir, feita por e-mail, Sanches Neto fala sobre como, em nome da vitalidade da cultura brasileira, é importante fortalecer os laços entre Brasil, África e Portugal. E fala também sobre os planos para o futuro, que incluem parar de escrever e se pacificar com a literatura.

Você viveu por um tempo em Portugal por causa de um pós-doutorado. E criou um personagem que faz uma viagem parecida. Mas primeiro queria perguntar como foi sua experiência em território português? Em outras palavras, vale a pena conhecer Portugal? (E por quê?)
Tive uma experiência portuguesa que não foi turística, pois vivi como um residente normal, levando filhos na escola, indo ao mercado, frequentando as repartições públicas para resolver problemas corriqueiros, então este período curto, de um ano, foi uma outra vida e não uma viagem. Até recolhi as anotações de meus diários deste período em um voluminho (que ficará inédito) que chama de “O caderno português”. Conhecer Portugal é antes de tudo testar uma alteridade na própria língua, pois precisamos nos ver como outro dentro de um idioma comum. Mas é também uma forma de nos conhecer como país, pois cada prédio, cada hábito, cada expressão tem uma conexão direta ou indireta com quem somos. Tanto que meu personagem sai do Brasil para fugir do Brasil e é em Portugal, em uma pequena aldeia, que ele deixa de fingir quem ele quer ser para se reencontrar com as raízes rurais. Fortalecer os laços de uma afro-luso-brasilidade é de extrema importância para a vitalidade de nossa cultura, e toda aproximação é válida.

Ao longo do novo romance, Rodrigo (o protagonista) vai adotando termos comuns em Portugal que soam estranhos para um brasileiro, como autocarro para carro, aportar em vez de levar. É um processo sutil e não sei se faz sentido, mas é como se ele fosse influenciado pela terrinha (as pessoas ainda se referem a Portugal como “terrinha”?). Minha pergunta: como escritor, qual é a sua relação com o chamado “português de Portugal”?
A expressão terrinha é pejorativa e o português se vê como parte da Europa, por causa da Zona Euro, mesmo quando ela está em crise. A Portugal de agora é uma nação cosmopolita, Lisboa com certeza está entre as capitais europeias mais internacionais, muitas aulas nas universidades são dadas em inglês, e se cultiva uma visão primeiro ibérica e depois continental. Tanto que meu personagem se vê como um pretenso europeu, por isso vai incorporando expressões, hábitos e memórias daquele país. Eu quis, por outro lado, demarcar uma fronteira de índole entre o português falado em Portugal e o falado aqui. Há uma formalidade maior lá, uma visão mais altissonante do idioma, em respeito à herança linguística, enquanto nós somos muito mais da oralidade. Na sua ânsia falseadora de ser europeu, o narrador assume uma linguagem que não é dele, e isso fica claro principalmente nos diálogos com os portugueses, momento em que mais se percebem as diferenças. Os lusitanos falam como quem escreve e nós brasileiros escrevemos como quem fala. Em geral, são ruins os diálogos escritos por ficcionistas portugueses por usarem uma língua que soa endurecida pela tradição literária.

Ao ouvir o escritor Valter Hugo Mãe falando sobre o Brasil numa entrevista do “Roda Viva”, fiquei com a impressão de que os portugueses olham mais para o Brasil do que os brasileiros para Portugal. Parece que eles pensam mais no Brasil do que nós pensamos neles. O que você pensa disso? Como foi para você olhar para Portugal ao escrever “O último endereço de Eça de Queiroz”? 
Parece ser mais natural o escritor que está na matriz da língua olhar para as ex-colônias e pensá-las de forma a entender suas grandezas e suas misérias. Há uma vetorização natural, e ele se sente parte deste todo que é a nação criada pelo idioma mais ou menos em comum. O sentido inverso me parece mais antinatural, um escritor brasileiro se apropriar de imagens, paisagens, autores e experiências lusitanas e tentar pensar o país-mãe de uma maneira crítica ou pelo menos desabusada. Na busca do Nobel para a língua portuguesa, o mais cotado sempre foi Jorge Amado, mas seria uma heresia conceder a um brasileiro antes de se conceder a um português. O nucleamento literário do idioma ainda é português, e eu quis deixar isso claro no romance pelo fascínio que a literatura portuguesa cria no narrador. Ele é um deslumbrado com uma tradição da qual faz parte a distância.

Por que você decidiu destacar Eça de Queiroz no título do livro? Fiquei com a impressão de que o livro, em alguma medida, poderia se chamar “Um dos primeiros endereços de José Saramago” ou “O bar favorito de Fernando Pessoa”.
O primeiro título deste romance era “Guia dos lugares literários de Portugal”, mas o livro poderia acabar na estante de viagens e este uso de outros gêneros de escrita para definir romances está batido. Então optei pelo título que saiu porque no final o narrador incorpora a identidade de Eça, e porque Eça foi o mais brasileiro dos ficcionistas portugueses, com uma visão crítica em relação ao povo lusitano que contribui para a independência cultural do Brasil a partir de Lima Barreto e dos modernistas. É um autor-chave. Ele ajuda o narrador a parar de fingir-se europeu. Eça e sua terra imaginária, Tormes, desnudam as pretensões de Rodrigo e ele enfim deixa de ser um arremedo literário para ser quem ele de fato é. Do ponto de vista estético, a sonoridade do título também contribuiu. Um título tem que ficar preso na memória do leitor, e o que eu escolhi é quase um verso.

Você anunciou que pretende parar de escrever em breve. É, de certa forma, uma aposentadoria prematura, se considerarmos que você está com apenas 57 anos e alguns escritores seguem escrevendo por muito mais tempo – Cormac McCarthy acabou de publicar um livro novo aos 89 anos e Don Delillo fez o mesmo com 85. Depois de “O último endereço de Eça de Queiroz”, você deve publicar mais um romance, um volume com sua poesia reunida e fim. Por que você decidiu parar? E como você acha que será sua vida sem esse compromisso com a literatura?
Eu escrevi muito nos últimos 30 anos, sempre em paralelo com minhas atividades como professor ou como gestor público. Usava as madrugadas, é numa madrugada de domingo que estou respondendo estas perguntas, e meus finais de semana para poder manter uma continuidade na escrita, principalmente quando se tratava de romances. Para mim, os anos-chave de um escritor vão dos 35 aos 55. Aos 35 temos uma percepção madura da vida e muita energia física. Uma energia que conseguimos manter, pelo menos para os que trabalham em outras profissões, até os 55, talvez 60 anos. Em breve me aposento, e quero apenas cuidar de meus livros já escritos ou publicados, e ter uma vida sem maiores tensões literárias. Faz parte de meu projeto de pós-aposentadoria desarmar todas as expectativas. Quero me pacificar com a literatura, pois escrever um romance novo é um confronto com o mundo e suas prioridades. Também contou para esta decisão eu ter escrito os livros que eu queria ter escrito, o que julgo ser um privilégio. Há o que poderíamos chamar uma prateleira de livros do Miguel Sanches Neto. Para contrapor aos autores ativos bem depois da andropausa, há os que morreram cedo e deixaram uma grande obra, como o Roberto Bolaño. Então eu estou me matando enquanto escritor. Também há um projeto mais político de abrir caminho para grupos sociais que nunca tiveram espaço, como as mulheres, os negros, os indígenas e os e as artistas trans. Desocupar o campo literário, depois de ter tentado uma obra, é também reconhecer a necessidade de que outra produção, diversa da que eu represento, possa aparecer como central, ampliando a compreensão do humano pela literatura. Esta tentativa de sair de cena está baseada em todas essas razões e não tem o menor resquício de ressentimento. Sempre fui muito bem tratado pelos operadores do meio editorial, principalmente para uma pessoa que vive no interior do Paraná.

Serviço

“O último endereço de Eça de Queiroz”, de Miguel Sanches Neto. Companhia das Letras, 182 páginas, R$ 64,90. Romance.

O lançamento do livro, com sessão de autógrafos, será no dia 23 de novembro, às 19h, na Livraria da Vila, dentro do shopping Pátio Batel (Av. do Batel, 1.868), em Curitiba.

Nesta quinta-feira (17), o autor faz também uma sessão de autógrafos em Ponta Grossa, na Livrarias Curitiba do Shopping Palladium (Rua Ermelino de Leão, 703).

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