Cirurgia é o novo sexo em “Crimes do Futuro”, de David Cronenberg

Cineasta canadense parece ter sacado a humanidade como pouquíssimos conseguiram; filme está nos cinemas e estreia na MUBI dia 29

O primeiro impulso que alguém pode ter vendo “Crimes do Futuro”, de David Cronenberg, é o de encarar o filme todo como uma grande metáfora. O que significa aquele controle remoto de aparência orgânica que controla uma máquina bizarra com braços descarnados e lâminas do lugar de mãos? O que significa a pessoa deitar nessa máquina e se permitir ser operada diante de um público que parece estar no teatro? Que papel tem o artista que cria órgãos novos dentro do próprio corpo para depois tê-los removidos, tatuados e catalogados?

Pois a coisa mais incrível a respeito dos filmes de Cronenberg é que, apesar de serem bizarros – uns mais do que outros –, eles não funcionam como metáforas. Tenho a impressão de que Cronenberg quer dizer exatamente aquilo que ele está dizendo. Nada de alegorias, metáforas ou símbolos. Nas realidades imaginadas pelo cineasta canadense, as coisas são o que são.

Novo sexo

Em “Crimes do Futuro”, ou “Crimes of the Future” como prefere a distribuidora brasileira, a realidade é descrita em momentos diferentes por personagens diferentes e aos poucos você vai enxergando onde está pisando. A realidade é aquela em que “a cirurgia é o novo sexo”, e o sexo como conhecemos hoje é considerado o “velho sexo”.

É uma realidade em que a polícia tem um departamento de “novos vícios”, responsável por investigar um submundo onde as pessoas fazem intervenções no corpo por prazer, por ambição (de tornar o corpo mais evoluído), ou pela arte.

Os artistas Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux) o fazem pela arte. Saul é uma figura cultuada. Um artista que produz órgãos novos dentro de si, que crescem como uma forma de tumor, e depois são extraídos cirurgicamente por Caprice, em eventos abertos ao público.

Evolução

Já Lang Dotrice (Scott Speedman) é um proscrito, que vive no meio de outros proscritos, como quem faz parte de uma gangue. Todos os membros desse grupo têm algo em comum: eles se alimentam de plástico. Não se trata de uma alegoria. Eles de fato consomem plástico em nacos de uma apetitosa barra roxa, pela boca, como se fosse comida.

Lang acredita que o destino da humanidade está personificado nele e em outros como ele. “Chegou a hora da evolução humana alcançar a tecnologia desenvolvida pelos humanos”, diz Lang. E na sua opinião isso acontece quando os humanos começam a se alimentar do lixo industrial que eles mesmos produzem. Quando se tornam capazes de digerir plástico.

Por fim, Timlin (Kristen Stewart, que conseguiu a proeza de ser a personagem mais esquisita do filme) talvez seja uma das figuras que curtem as intervenções como um lance mais sensual e sexual. Ela trabalha em um escritório clandestino que cataloga os órgãos novos que surgem no corpo de Saul. É um trabalho mais laboratorial e burocrático, embora Timlin tenha uma queda pelo mundo da arte e, mais ainda, pelo artista de onde brotam os órgãos desconhecidos.

Uma chave para entender o que isso tudo quer dizer é dada pelo policial Cope (Welket Bungué), que trabalha no departamento de novos vícios. A certa altura ele diz que o nome do departamento é “new vice” porque ele não poderia se chamar “disfunção evolutiva”.

Cronenberg

David Cronenberg, o cara por trás de “Scanners” e “A Mosca”, é hoje um senhor de quase 80 anos que usa aparelhos auditivos e que acabou de operar os olhos da catarata. “Sou um ciborgue”, disse ele numa entrevista durante o Festival de Cannes 2022. Esse senhor octogenário conseguiu sacar a humanidade como poucos. De um jeito ou de outro, abraçamos uma disfunção evolutiva. Somos uma anomalia, um transtorno, um problema.

Onde assistir

“Crimes of the Future” está em cartaz nos cinemas e estreia na MUBI no dia 29 de julho. Prepare-se para cenas de lâminas abrindo corpos (às vezes calma e lentamente) e de sexo bizarro. Sem mencionar objetos e interações meio repugnantes. Numa palavra: Cronenberg.

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