Carol Rodrigues escancara o quão desconfortável foi crescer nos anos 90

"A mulher do padre" tira o verniz de ternura da passagem da infância para a adolescência durante os anos 90

No romance “A mulher do padre”, Carol Rodrigues conta a infância e a adolescência de uma menina que cresce ao longo dos anos 90. O ponto de vista é o da protagonista Lina, com uma narrativa em primeira pessoa que se torna uma das coisas mais bacanas do livro: uma voz que consegue nos lembrar como era encarar o mundo quando crianças e como isso vai mudando com a passagem do tempo, como a confusão adolescente vai piorando tudo certas horas. Você vai lendo e, de repente, se dá conta que não são só as questões de Lina que são outras, a prosa também amadurece na velocidade em que o pensamento da personagem muda.

No livro, dá para ver muito do que vem com a gente (principalmente quando se trata de gente com 40 anos ou mais, como eu) ao longo da vida, até porque um bom pedaço do que se leva para a análise na fase adulta é algo de embaraçoso que não foi esquecido, no máximo deixado de lado como mecanismo de defesa. 

Tem gatilhos para quem não foi do time dos mais lindos, ou não era um dos mais inteligentes, ou não tinha aquele traquejo social, ou ainda foi negligenciado; o texto revisita esses desconfortos que a maioria de nós viveu em alguma medida. (Ou vive, não dá para restringir os leitores possíveis na caixinha dos quarentões.) A menina ser forçada a passar longos períodos em frente ao prato de comida, na insistência inútil da mãe para que a criança comesse algo de que não gosta, me fez voltar no tempo: eu também fiquei horas de castigo por não topar determinados menus, acabava desenhando com a comida até minha mãe desistir.

Deslocamento e constrangimento

Lina vive uma parte da infância na Inglaterra e volta com a família para o Brasil. Isso intensifica nela o sentimento de falta de pertencimento e ainda serve como ponto de partida para a autora rechear o livro com referências históricas e comportamentais da época. Elas vão da doença da vaca louca ao Backstreet Boys, da arquitetura da casa inglesa ao assassinato de PC Farias, e assim por diante. 

Mas o que dói é o constrangimento de ler sobre outros fatores envolvidos no deslocamento de Lina. O bordão “A mulher do padre”, que aparece no título, é uma ironia astuta sobre a obra. Hoje, a infância e a adolescência mudaram um tanto e parece que existe mais cuidado com os perigos e violências que rondam esses anos da vida. 

O texto chega a dar uns socos no estômago do leitor, como quando dois amiguinhos da protagonista mostram que de príncipes só têm os nomes. Crianças podem ser cruéis e/ou curiosas, contudo, ali está retratada a falta de um olhar adulto atento e dedicado à infância. Nos capítulos seguintes, quando a protagonista está mais crescida, a escritora consegue jogar esse constrangimento no colo do leitor várias outras vezes. Talvez os adolescentes sejam, ou fossem, realmente desprovidos de empatia. Não há ternura e – mesmo assim – não dá para largar o livro antes do fim.

Carol Rodrigues

“A mulher do padre” é o terceiro livro de Carol Rodrigues, escritora que nasceu em 1985, no Rio de Janeiro, e hoje vive em São Paulo. A autora é Mestra em Estudos de Performance pela Universidade de Amsterdã, e também trabalha como roteirista, curadora e professora. 

Os contos de seu primeiro livro, “Sem vista para o mar” (Selo Edith, 2014), garantiram à escritora os prêmios Jabuti e Clarice Lispector da Biblioteca Nacional. O romance “O melindre nos dentes da besta” (7Letras, 2019), segundo livro da autora, foi finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura e do Jabuti. 

Livro

“A mulher do padre”, de Carol Rodrigues. Todavia, 208 páginas, R$ 69,90. Romance.

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