“A mesma parte de um homem” fala do medo que só as mulheres sabem

Filmado em São José dos Pinhais por Ana Johann, "A mesma parte de um homem" reproduz uma realidade que perpassa gerações

Se engana quem pensa que apenas mulheres que vivem no campo se identificarão com o novo filme da diretora paranaense Ana Johann, “A mesma parte de um homem”. Apesar de ficcional, a trama, que se passa em uma zona rural isolada, retrata um sentimento comum em mulheres de qualquer idade e lugar: o medo. 

“Parece contraditório, mas ‘A mesma parte de um homem’ conta a história de uma mulher. Eu não gosto de dizer que [o filme] é baseado em uma mulher, mas sim em mulheres da vila rural e fora dela, já que a gente tem uma temática de medo”, afirma a diretora e roteirista do longa que viveu durante 15 anos numa comunidade rural.

O medo

Carregada por uma tensão constante, a produção narra a história de Renata (Clarissa Kiste) e da filha adolescente Luana (Laís Cristina) que vivem num ambiente familiar abusivo por conta do autoritário patriarca Miguel (Otávio Linhares). O medo é um sentimento comum a elas até que Miguel morre e um desconhecido aparece desacordado na porta da casa de Renata. 

Logo, mãe e filha descobrem que o estranho Lui (Irandhir Santos) não se lembra quem é nem de onde veio e vêem na situação uma oportunidade para preencher o lugar desfalcado na família, “moldando-o” para ser uma figura masculina que não expresse ameaça. No entanto, à medida que Lui retoma algumas lembranças, o homem empático e amoroso começa a ser substituído por um violento e cínico. 

Construção

“A minha geração, da minha mãe e avó, aprenderam que as mulheres precisavam de um homem para viver e eu queria falar desse lugar de segurança, que é construído. A Renata vive numa situação abusiva, com muito medo, e quando o marido morre ela não pensa inicialmente que ela pode ter outro tipo de existência. Ela busca rapidamente ocupar esse lugar com outro homem”, explica Johann.

“Esse medo é totalmente presente e continua permeando as mulheres até hoje, independente se você tem 21, 40 ou 50 anos”, pontua Laís Cristina, que buscou referências da própria infância no campo para interpretar Luana. 

Para Clarissa Kiste, que vive a protagonista Renata, é como se o homem sem memórias não carregasse a bagagem patriarcal e todas as violências que vêm com ela. “É muito bonita essa imagem de que esse homem sem memória está livre.”

Clarissa Kiste, Laís Cristina e Irandhir Santos são os protagonistas do longa gravado em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba. Foto: Divulgação

Entregando personagens complexos, o longa questiona e desconstrói imaginários sociais pré-estabelecidos como os de gêneros, família e até mesmo o de espaço rural.

“Me interessa não só representar, mas subverter e colocar o homem num lugar que as mulheres sempre estiveram. Esse filme se passa muito na cozinha por ser um lugar de discussão, de ficção familiar e onde esses papéis vão sendo trocados”, diz Johann.

Descoberta

Sem verbalizar e mostrar o óbvio, o filme não pretende explicar tudo ao público. Pelo contrário, mantendo elementos velados, “A mesma parte de um homem” abre possibilidades para que o público complete as lacunas, inclusive sobre o processo de libertação da protagonista através da descoberta e exploração do próprio corpo e desejo.

“A trajetória da Renata não é de começo, meio e fim. É começo e meio. O fim a gente não sabe, é como se ela se despertasse para poder ter um desejo, para poder escolher um futuro, mas a gente não sabe qual vai ser essa escolha”, interpreta Kiste.  

Um projeto coletivo e feminino

Embora a presença masculina ainda seja predominante na indústria cinematográfica, Johann conta que “A mesma parte de um homem” é uma produção coletiva e, principalmente, feminina.

“Esse filme surge para mim em 2012 como uma intuição, como um sentimento de incômodo, mas eu não tinha toda a percepção de gênero que eu tenho hoje. Foi muito importante ter essas mulheres [na equipe] porque quando a gente fala de medo elas já sabem o que é. Para os homens a gente tem que explicar.” 

Na visão de Kiste, ter uma equipe formada majoritariamente por mulheres foi um fator determinante justamente por ser uma história contada e realizada por mulheres que trata de uma realidade feminina. “É uma chance para mulheres e homens verem esse ponto de vista, como a gente conta essa história.”

Onde assistir

“A mesma parte de um homem” estreia no Cine Passeio, com sessão diária às 20h, e na plataforma on-line da distribuidora nesta quinta-feira (7). 

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